O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 10
Capítulo 10




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Selma entrou na casa como se a conhecesse muito bem. Seguiu o eco daquela voz de trovão e se deparou na entrada de um quarto. Dali de fora dava pra ver o que se passava lá dentro. De costas, Franco de pé, vestido de padre outra vez para o seu terror pessoal, sentada na borda da cama, atrás de um móvel de madeira estava uma mulher vestida de noiva. Não, não era uma pessoa, era uma, era uma.... boneca? Era isso mesmo que os seus olhos estavam confirmando?

 

Nesse momento o ex-padre se vira e vê a mulata caindo desmaiada no chão, com Diolindo correndo em seu amparo. Ambos os homens pegaram a mulher do chão e a levaram para a cama onde a deitaram com conforto.

— Se eu fosse você aproveitava que ela tá desmaiada e dava uns cheiros nesse cangote de chocolate.

 

Diolindo lhe lançou um olhar de fuzilo fazendo o homem lembrar que estava lidando com alguém bastante transtornado e capaz de tudo para realizar seus intentos. Tornou-se a calar e sem ter onde pôr as mãos, já que a pinga tinha acabado, começou a folhear a bíblia, lançando olhares furtivos para o trio que estava sobre a cama e sabendo que logo iria precisar de algo que lhe desse barato assim que o efeito da pinga de jaca passasse.

 

Enfim, a mulata foi se recobrando do apagão e abriu os olhos para ver a sua paixão platônica diante de si. Além dele, a boneca sentada de costas para ela e Franco enrolando uma folha de papel arrancada da bíblia.

 

Ele então se decidiu por contar tudo, como fizera com a garota morta, no cemitério. Não tinha coragem de esconder nada daquela mulher que sempre o tratara como gente de verdade, como ser humano digno. E assim o fez por quase meia hora sob protestos, caras zangadas, de espanto, e finalmente boquiaberta, ele arrematou com o dia corrente quando cremou o seu pai e misturou as cinzas. Apontando para a caixa, a viu aberta. Franco havia feito uma carreira de cinzas, como fazia com a cocaína barata que consumia, em cima da penteadeira e estava aspirando pela narina no seu desespero por entorpecentes.

 

— Seu desgraçado, esses são meus pais! – Disse o homem correndo pra pegar a pá.

— Sou o seu algoz, sou o dono de suas almas, de suas cinzas ou do raio que o parta – Proclamou o velho viciado enquanto levava uma porretada por trás do pescoço, caindo pesado no chão ainda com o canudo improvisado a lhe abastecer das cinzas dos mortos.

 

Diolindo varreu com as mãos as cinzas que cairam da caixa e as devolveu ao seu lugar sob os olhos marejados de Selma que nada dizia, apenas observava como uma criatura de Deus pode chegar naquele estado de perturbação. Lançou um olhar de esguelha para Desirée, tocou-a e puxou para si, percebendo o quanto era ela realista na textura da pele, no peso, nas feições. Ficaram abraçadas por muito tempo como velhas amigas. Ele arrastou o corpanzil do ex-padre de volta para a sala depois de pegar o seu pulso e vê-lo funcionando, sem esquecer de amarrá-lo. Buscou água na geladeira e trouxe para o quarto, servindo a si e as duas mulheres que choravam em uníssono. Pousou os copos no chão e as abraçou também começando a chorar.

 

Com os nervos no lugar, foram se recompondo.

— Vou precisar ir ao banco amanhã abrir um cofre onde a minha mãe deixou alguns documentos e não sei o que mais lá. Tenho medo de ir ao centro sozinho. Há anos sofro só de pensar em ter que um dia resolver algo ali. Será que....você... poderia ir comigo?

 

Era um homem indefeso e com medo de coisas básicas, ela pensava. Não iria deixá-lo na mão ou que caísse em mãos erradas como as de Franco.

 

— Meu pai chegou de viagem hoje, da casa da minha irmã que te disse que pariu há um mês. Ele me deu o carro para ir visitá-la amanhã. Vou passar uns dias por lá. Se você quiser te levo no banco e te deixo aqui de volta – Falou a mulata com um carinho do tamanho do que sentia por ele.

 

Viu os seus olhos sorrindo sem parceria com os lábios, mas era o suficiente para ela perceber o quanto ele estava grato e gostava dela também. Tinha vontade de fazer mil perguntas sobre a Desirée, Franco, a mãe e o pai, e sobre eles dois. Mas sabia no seu íntimo que deveria se manter observando apenas. Ainda mantinha as lembranças do beijo que ele lhe dera no bar e aquilo a fazia transpirar além do normal, já que havia tempo que tivera um namorado que a fizesse se sentir mulher.

 

— O problema é que não posso perder aquele traste de vista.

— Mas porque você ainda acha que depende dele?

— Tenho que arranjar um jeito de fazer ele pagar por tudo o que fez.

 

Selma viu ódio nele pela primeira vez e entendeu o significado de ter ao alcance das suas mãos o assassino confesso de seus pais, da garota e da cadelinha. Isso era o que se sabia.

Diolindo enfiou a mão no bolso da calça que vestira apressado para recebê-la, e de lá retirou a foto e a entregou.

— Isso estava entre as coisas dele lá na barraca do campinho.

Ela viu a sua imagem refletida naquele papel quando ainda era um bebê de tres anos, esparramando ingenuidade. Não lembrava daquilo de forma alguma, mas sabia que era ele que estava por trás da câmera. O pérfido que ia visitar a sua mãe quando estava doente e lançava olhares lascivos a ela, que por sua vez não poderia nunca entender o que estava além da lassidão naquele momento. Ela havia sido abusada enquanto criança. Agora entendia Diolindo quando dizia que deveria haver um jeito de punir aquele safado.

 

As lágrimas voltaram a escorrer do seu rosto e novamente os tres se abraçaram, agora com um grau de intimidade que levaria anos para se alcançar. De forma instintiva, Selma desamarrou a pequena bulsa e expôs os seios fartos e rijos, enquanto tirava a camisa de Diolindo que estava de costas para ela e que por sua vez desnudava Desirée. Em segundos estavam nus e entrelaçados, usando seus corpos como o último bastião da sanidade e o invólucro da esperança maior, onde nunca haveria reticências. Fizeram amor despidos não somente de roupas, mas de preconceitos, sublimando apenas o que sentiam dentro de si. O nome daquilo, tanto na cabeça salubre de Selma, quanto no juízo torto de Diolindo, ou na cabeça ôca de Desirée, era amor.

 

###

 

O tribunal estava lotado. Ele entrou com as mãos seguras por soldados e foi levado até a bancada mais alta ao lado do juiz, sob vaias homéricas dos presentes. Um homem de porte imperioso, de longas barbas e aparência severa era a autoridade do lugar e portava em uma das mãos um martelo que mais parecia um cajado de tão grande.

— Silêncio no tribunal! – Vociferou com uma voz gutural o juiz – Aqui temos um caso sui generis, quero dizer, incomum. Um homem que se diz apaixonado e casado com duas mulheres pleiteia entrar no céu.

Toda a platéia gargalhava em altos brados.

— Silêêêêncioooo! – O que tens a dizer em sua defesa rapaz?

— Sou inocente . Quando se trata das coisas do coração temos que relevar Excelência – Disse o pobre homem.

— O que o seu coração pode provar pra nós aqui? Que ele bate?

Novos risos.

— Não meretíssimo. Sou um homem privilegiado e de coração grande, onde cabe amor para duas mulheres na minha vida.

— Blasfêmia! Blasfêmia! – gritavam da platéia – Isso é adultério consentido!

— O senhor pode provar que tens um coração tão grande assim? – Perguntou o juiz de maneira capciosa.

— Excelência, nesse caso o senhor teria que conviver um tempo comigo e com as minhas mulheres. Levaria tempo para perceber o quanto nos damos bem e nos amamos.

— Como não temos tempo procederemos a uma incisão aqui mesmo e agora. – Disse o barbudo estalando os dedos para a entrada de um médico portando uma malinha preta.

Dois soldados seguraram ele pelas mãos enquanto o médico abria a mletinha e tirava de lá um bisturi. Um enfermeiro apareceu e abriu a sua camisa passando um pano embebido em álcool no seu peito esquerdo.

— Nãããããããããoooooooo!

 

#####

 

Selma que estava dormindo com o rosto pousado no peito de Diolindo se assustou.

— Calma, somos nós – Sussurou tirando delicadamente o rosto de Desirée do peito direito - Pesadelos?

— Os mesmos de sempre que tomam conta do meu sono desde que eu me entendo como gente – Replicou levantando-se vendo a luz do dia ir embora – Você pode dormir aqui com a gente?

— Não. Preciso ir embora arrumar uma mala. Amanhã venho buscá-los – Disse vestindo a calcinha e sentando para pôr a calça apertada ainda com um resquício de pudor a incomodá-la.

— Tudo bem – Balbuciou querendo dizer um milhão de palavras que não lhe chegavam à boca, mas que já tinham tomado conta da sua mente.

 

Se entreolharam e não havia qualquer necessidade de falar nada. Ali enxergaram, cada um a sua maneira, o poder que um sentimento fossilizado pela banalidade da vida mundana podia fazer quando almas trigêmeas, no caso deles, se encontravam . Um engavetamento de caminhões não teria força para deixar nenhum arranhão ali. E assim ela saiu pela porta, mas não sem antes Diolindo devolver-lhe o buquê, o grande instrumento portador de boas novas.

 

Teria que se preparar para enfrentar o centro da cidade e os boçais que caminhavam como garças reais nas suas calçadas. Seu objetivo era ter acesso ao cofre de sua mãe e os pertences que estavam contidos nele e voltar rapidamente. Depois pensaria no seu futuro, e porque não no futuro daquela bosta paramentada de padre que infestava o seu lar com suas blasfêmias, homicídios e psicopatias. Aquele desgraçado comera a sua mãe e molestara Selma e Desirée!


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