As Desventuras do Caos escrita por Reet


Capítulo 10
CAPÍTULO X — DUPLICANDO MINHA PACIÊNCIA


Notas iniciais do capítulo

OLÁ, LEITORAS E LEITORES!!!!
Quero agradecer a todos e todas que comentaram! Muito obrigada! O comentário de vocês é meu incentivo a continuar, vocês não imaginam o quanto isso significa para mim! Vocês são ma-ra-vi-lho-sos!

E essas duas recomendações que me desfizeram em farelos? Smikas (ID: 459909) e Allana (ID: 689685) - a verdadeira Dawn da nossa república -, MUITO OBRIGADA PELO CARINHO! Esse capítulo é dedicado a vocês!

Betagem feita por Ladybug (ID: 693356).

Para quem gosta de CoDa e para quem gosta de Shawn, boa leitura, porque tem os dois ♥

(06/12/16) Adicionado uma cena.



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Um ligeiro formigamento se alastrou por todas as minhas terminações nervosas, resultado de um surto de adrenalina inconveniente. Eu senti minha cabeça rodar. Olhei em volta mais uma vez, procurando por Shannon. Apertei as pálpebras enquanto fazia uma checagem de que todos os meus movimentos motores funcionavam perfeitamente bem, então ergui minha coluna, consciente de que isso poderia não ter acabado assim.

— Mas que porra — esbravejei, engatinhando na sua direção. O rapaz tentava se sentar, sem sucesso. Seus olhos estavam apertados em uma clara expressão de dor. — Você está bem?

Claro, só estou fazendo meu exercício rotineiro de meditação, quer tentar? Primeiro você quebra o braço, depois... — Shannon deixou escapar um gemido sôfrego. Ele mirou na minha direção e revirou os olhos em seguida. — Eu pareço bem, porra? — Ofegou. — Acho que desloquei meu ombro quando tentei poupar sua coluna vertebral do impacto.

Puta que pariu. Eu olhei em volta, em pânico. Uma risada nervosa saiu de mim antes que eu pudesse contê-la.

— Ao menos não é o braço que você usa para escrever — comentei, curiosamente me lembrando de que Cold sempre segurava o cigarro com a mão esquerda.

— Eu sou destro — contestou com um prolongado gemido de dor. Ele enfim conseguiu se sentar, segurando o ombro, e eu percebi que ele suava frio. — Caralho, isso dói!

— Ok. Merda. Não acredito, ai, não, Shannon, calma, deixa eu ver... — gaguejei, sem conseguir conter meu nervosismo. Minhas mãos começaram a estremecer e suar. Eu avancei na sua direção sem saber o que fazer. — Eu não queria que você se machucasse, deixe-me te ajudar com-

— Acho que você já ajudou bastante. — Ele esticou o outro braço na minha direção, afastando-me. Meu coração acelerou.

— Droga. Ok. Você está certo. — Meus ombros caíram como se um saco de cimento houvesse sido jogado em cima deles. Era minha culpa. É claro que era minha culpa. Eu mordi o lábio inferior, nervosa, enquanto levantava-me do chão.

Eu estava sendo inútil ali. Nada iria adiantar se não desse um jeito de sair do elevador. Voltei-me para a porta e esmurrei seguidas vezes.

— SOCORRO! ESTAMOS PRESOS!

Achei que já estivesse começando a alucinar quando um barulho de passos pesados entrou no ambiente, então escutei:

Dawn? — A voz era familiar.

— Estou aqui! — gritei de volta, aflita. Encarei Shannon por alguns segundos. Seu rosto contorcido me deixava cada vez mais nervosa. — Shannon está machucado! Rápido!

Eu vou buscar ajuda!

Afastei-me da porta e com a respiração ofegante. Coloquei as mãos na frente da boca, na cintura, nuca. Céus. Eu estava tão fodida. Andei pelo elevador por alguns minutos, olhando Shannon de soslaio — ele parecia que ia desmaiar a qualquer momento.

Ouvi um barulho de ferro sendo arrastado e ganchos de metal se esgueiraram na porta fechada, puxando-a. A porta foi aberta, e notei que o foço ia até um pouco abaixo do prédio, fazendo com que a abertura de saída do elevador fosse alguns metros acima. Esgueirando-me conseguiria passar. Acima, estava Cold, Hans e um terceiro garoto que me parecia desconhecido, sendo que o gêmeo segurava o tão útil pé de cabra de Jeffrey. Havia servido para alguma coisa, afinal.

— Vocês estão bem? — Hans perguntou, examinando o elevador. Eu virei os olhos na direção de Shannon e torci para que ele não fizesse mais uma daquelas piadinhas naquele momento, mas parecia que ele estava sofrendo demais para isso.

Ajudei Shannon a se levantar e ele, tentando se controlar, foi até a porta do elevador. Hans logo entendeu que ele precisava de mais que ajuda — ele precisava de um resgate. O ex-namorado se apoiou quase deitado na borda do chão e agarrou Shannon pela cintura, puxando-o com a ajuda de Cold. Shannon grunhiu de dor durante todo o processo.

Cold me ajudou a subir com a mão estendida e assim que saí do elevador, ele segurou meus ombros, tirando os fios de cabelo bagunçado do rosto. Por um instante, eu apenas o encarei confusa com aquele gesto, então ele disse:

— Está tudo bem com você?

— Sim. — Suspirei, olhando para Shannon sentado no chão do hall de entrada do prédio. — Mas não com ele.

O silêncio instalado no ambiente estava carregado de tensão. Shannon não me encarou, mas Hans arqueou as sobrancelhas como se estivesse falsamente surpreso. Após isso, me afastei de Cold, que ainda trajava as vestes formais. Hans, por outro lado, vestia uma jaqueta de couro e uma calça um pouco surrada, completando o estilo com botas militares. Parecia ter se recuperado bem do choque anafilático.

Eu notei que o terceiro rapaz parado no canto era razoavelmente tímido. Ele tinha altura mediana, a pele amarelada e feições orientais. Ele tinha também cabelos escorridos e grandes, mas estes eram da cor preta.

— Quem é esse? — perguntei baixo para Cold.

— Ah, esse é o... — Antes que Cold pudesse terminar de responder, o próprio asiático disse:

— Eu sou Akira, mas acho que esse não é o momento mais apropriado para apresentações — murmurou. — O que aconteceu com vocês?

— Acho que esse não é o momento mais apropriado para você se meter na vida dos outros — Shannon ganiu. Pela forma que ele disse, eu parecia ter sido a única a ficar assustada com a situação. Todos os outros suspiraram de tédio. — Eu desloquei o ombro, vocês estão cegos?!

— Precisamos... — comecei, mas fui interrompida por Hans.

— Colocar o ombro no lugar — disse — e levá-lo para o meu apartamento, tenho algumas ataduras para emergências.

— Não vou para seu apartamento! — vociferou o loiro gêmeo. — Eu não quero ficar sob o mesmo teto que você e o Takigawa!

— Estamos tentando te ajudar! — Hans e Akira responderam em uníssono.

Shannon era impertinente até mesmo quando ele próprio precisava de ajuda. Era muita idiotice da parte dele, e mesmo que Hans fosse seu ex, era só uma atadura! Caminhei até onde os quatro homens estavam, alguma força de vontade tomou conta de mim e quando eu apontei o dedo para o loiro, minha voz saiu autoritária e agressiva de uma forma que eu nunca tinha sido:

— Presta atenção: você não está na posição de decidir para onde vai ou não — grunhi e Shannon se fingiu de surdo no que eu continuava a proferir. — É o apartamento dele ou o hospital! E eu não quero saber que ele é seu ex ou que está comendo outra pessoa e você é um encalhado, anda logo com isso ou eu vou quebrar o que falta para você calar a boca!

Hans arregalou os olhos com o que eu acabara de falar e virou para Cold, levando a boca até a orelha do outro, sussurrando algo que eu mal consegui ouvir direito, mas distingui algumas palavras:

Ela é igual à Hope...

Algo me incomodou ao ouvir aquele nome de novo, mas eu ignorei, vendo que Shannon estava visivelmente irritado e suspirando como se aceitasse as condições contra a própria vontade.

— Que seja — murmurou.

Prontamente, Hans ficou de joelhos de frente para o gêmeo machucado, retirou o casaco de couro e pediu:

— Alguém pode me ajudar aqui?

Eu assisti de longe Cold segurando o braço do irmão para impedi-lo de fazer movimentos bruscos, enquanto ele lacrimejava. Eu estava com pena de Shannon, que estava cercado por três caras e completamente rendido ao seu ex-namorado. Então Hans puxou a camisa de Shannon pela cabeça da forma mais cuidadosa possível, ou seja, arrancando grunhidos de dor e inúmeros xingamentos.

— FILHO DA PUTA! ISSO DÓI, DESGRAÇADO!

Hans ignorou os gritos — eu não sei como ele tinha controle mental para isso. A blusa foi jogada na minha direção e eu a peguei, colocando debaixo do braço.

— Inspire fundo contando até cinco, e expire da mesma forma. — Hans informou e o gêmeo balançou a cabeça como se houvesse entendido. Eles entraram em uma sintonia, mas apesar de ele ter ficado mais calmo, isso não o impediu de sentir dor. — Isso vai doer um pouco.

Quando Hans empurrou seu ombro para o lugar, ele gritou. Eu pude sentir o quanto aquilo fora doloroso. Ele ficou um pouco vesgo, como se estivesse tonto e sua cabeça tombou para um lado ao mesmo tempo em que seu corpo amoleceu. Hans e Cold o seguraram rapidamente.

— O que aconteceu? — perguntei. Avancei na direção dos meninos com meu coração saindo pela boca.

— Calma — disse Hans. Ele suspirou demonstrando cansaço. — Articulações deslocadas podem causar inconsciência ao serem forçadas no lugar. Isso acontece por causa da dor.

Eu respirei fundo e tentei me acalmar. Não acreditava que tudo isso estava acontecendo por minha culpa.

— Precisamos carregá-lo para o meu apartamento. — Hans pegou seu casaco no chão e se levantou.

— Eu posso ajudar — anunciou Akira que logo se abaixou e passou o braço pela cintura de Shannon. Cold o amparou pelo outro lado.

Os garotos o levaram e subimos as escadas até o quarto andar. O apartamento de Hans era o 403 e após abrir a porta, senti inveja de não ter pedido para morar com ele. Tudo estava no lugar, extremamente organizado e arrumado, o cheiro de desinfetante ainda estava no ar. O modelo do apartamento era o mesmo, apenas a limpeza fazia toda diferença.

— Joga esse idiota no sofá — avisou Hans enquanto disparava na direção de um corredor —, vou pegar as ataduras.

Foi exatamente isso que Cold fez — jogou o irmão no sofá sem a menor delicadeza.

— Então você é a Dawn de quem Hans falou — disse Akira com a voz carregada de sotaque oriental, embora eu não soubesse qual era a sua origem.

— A nova empregada, sim — respondi com um aceno irônico.

— Ele disse exatamente com essas palavras: o novo problema de Cold e Shannon. — Akira sorriu torto e depois da minha cara de confusão, trocou de assunto. — Eu sou Takigawa Akira. Intercambista japonês.

— Eu acho que Cold e Shannon que são meus novos problemas — revelei, fazendo Cold soltar uma risada como se concordasse com o que eu estava falando.

Ouvi um gemido de dor e notei que Shannon estava acordando. Parecia estar sendo alfinetado por centenas de agulhas com todas as caras e bocas que fazia.

 Hans entrou na sala, trazendo rolos de atadura de cor bege. Ele se aproximou de Shannon mesmo que o gêmeo recuasse com aspereza. Começou a desenrolar a atadura e passar em volta do corpo do garoto. Eu reparei que a forma como o barbudo se disponibilizava a tratar de Shannon era extremamente especial e delicada. Ele o xingava e parecia o detestar, mas fazia o que era necessário. E Shannon parecia ainda guardar alguma mágoa de Hans.

De repente, senti um vento quente ser soprado no meu pescoço e a boca de Cold encostou-se à minha orelha sorrateiramente, quando os outros estavam prestando atenção apenas aos grunhidos de Shannon.

— Posso saber por que você está sem blusa? — sussurrou.

Meus pelos da nuca se arrepiaram e eu cruzei os braços na frente dos seios, que responderam da pior forma possível ao arrepio causado pela voz arrastada de Cold na minha orelha. Droga. Aquele era um momento deliberadamente inoportuno para que meus mamilos ficassem rijos na rendinha do sutiã.  Senti meu rosto ficando todo quente e avermelhado. Usei a única coisa que tinha em mãos para me cobrir, e antes de me lembrar de que a camisa preta pertencia a Shannon, eu já estava vestida com ela, que em mim o caimento ia até a metade das coxas.

— Como eu vou tomar banho com isso? — Shannon resmungou ao olhar para seu braço esquerdo que, dobrado em 90°, estava preso na atadura que cobria o ombro e um pouco do peito, de um lado ao outro.

— É apenas uma luxação, você estará perfeitamente desprezível como sempre amanhã de manhã.

* * *

Meu celular começou a vibrar ao se conectar à rede do apartamento. Eu sabia que teria mais de mil mensagens de Gail esperando por mim, sabia que ela consideraria meu sumiço como um vacilo da minha parte e sabia que estaria furiosa. Desliguei o celular. Eu cuidaria disso depois — naquele momento, meu estômago deixou escapar um ruído alto. Cold soltou uma risada.

— Sabe cozinhar? — indagou.

— O quê? Além de empregada você espera que eu seja sua cozinheira? — perguntei com um tom irônico. — Qual a próxima? Escrava?

— Eu não reclamari-

— Cold — interrompi antes que ele falasse algo constrangedor. Eu deveria me lembrar de que ainda hoje cedo eu fui caçada dentro de sua zona proibida.

— Tudo bem. É meu dever te alimentar, já que você está sob meus cuidados — disse com um sorriso escondido. — Sob a condição de que você faça o jantar comigo.

Revirei os olhos.

— Eu não vou me prestar a passar por essa humilhação. — Balancei a cabeça. Cold iria rir das minhas habilidades desastrosas na cozinha. Por isso eu preferia sobreviver de macarrão instantâneo. Então, meu estômago roncou, tão alto que eu podia jurar que o andar de baixo inteiro ouviu. — Você me convenceu. Me alimenta — sussurrei de uma forma suplicantemente engraçada.

— Só se você for uma boa garota — respondeu baixo.

Os pelos da minha nuca se arrepiaram e eu tentei, falhando miseravelmente, esconder minha reação. Senti que meus olhos estavam quase revirando nas órbitas e fechei-os, respirando fundo. Controle-se, idiota.

Logo um detalhe importantíssimo me ocorreu, e aquele parecia o momento perfeito para arrancar a verdade de Cold Lane.

— Sob a minha condição — exigi. Ele arqueou a sobrancelha enquanto desabotoava seu colete azul marinho. — Você vai me contar o que aconteceu entre Hans e Shannon. O motivo de se odiarem e de Shannon não gostar de Akira. Agora.

— Sob a minha condição apenas sob a sua condição? Isso não me parece lógico.

Bufei e cruzei os braços. Fiz a minha melhor cara de indignada. Cold e eu ficamos naquele jogo de olhares até ele piscar e dar de ombros. Cold olhou ao redor, como se certificasse que o irmão gêmeo não estava por perto. Que mistério todo era esse?

— O que eu ganho com isso? Sabe que não é da minha conta.

Eu mordi a boca, encarando Cold dos pés à cabeça. Os dois primeiros botões de sua camisa estavam desabotoados e seu cabelo solto — bagunçado — o deixava um pouco irresistível. Eu tinha que me controlar.

— O prazer da minha companhia — respondi, embora tenha soado como uma pergunta. Soltei uma risada nervosa. — É uma oferta irrecusável.

— Tudo bem. — Soltou um suspiro — Na época em que eles namoravam, Akira aceitou a proposta de intercâmbio e se mudou para o apartamento de Hans. Shannon ficou paranoico e começou a achar que Hans o estava traindo.

— Com Akira? — indaguei.

— Sim.

— E estava?

— Não é da minha conta — cortou. Seus olhos correram dos meus, ele coçou o nariz rapidamente. — Então, quando Akira e Hans vieram ao apartamento, Shannon enfiou um soco em Akira e foi quando tudo isso começou.

Franzi a testa. Hans não tinha cara de quem trairia Shannon. Não tinha cara de quem trairia ninguém, ele não machucava uma mosca. Toda aquela história parecia mal contada, mas antes que eu pudesse perguntar algo, Cold me interrompeu apontando para o armário de panelas.

— Você vai precisar do escorredor, está embaixo da pia. Massa de lasanha no armário, um pote fechado de requeijão — disse Cold, que agora já desabotoava a camisa social, mas não por inteira. Ele ergueu ainda mais as mangas, como se fosse colocar a mão na massa junto comigo. — Alho e cebola e o liquidificador para bater os ingredientes do molho.

— Eu não sei se isso vai ficar bom. É sério, eu não sei fazer nada direito.

— É muito simples. Sabe picar a cebola, ao menos?

Balancei a cabeça negativamente e Cold soltou uma risada. Ele pegou a tábua de cortar e a faca, e me guiou segurando ambos os meus pulsos até a pia de mármore. O loiro ficou por trás de mim e colocou a faca na minha mão, a cebola na outra.

— A dica é que você não tire um dos cabos, pois ele te garante a sustentação — explicou com a boca perto do meu pescoço. Ele segurou minha mão e passou a faca por uma das extremidades da cebola. — Corte pela metade na horizontal e vertical, agora passe nesse sentido para que saiam os quadradinhos. — Ele passou a lâmina com facilidade e os pedaços de cebola se destacaram em cima da tábua. — Para facilitar o corte, segure a faca como se fosse apertar a mão dela. O seu dedo indicador fica na parte superior. A mão direita mantém a faca reta, com a ponta abaixada, e desliza a base da lâmina na cebola, assim... O dedo médio da mão esquerda fica curvado e a lâmina passa rente a ele, enquanto o dedão empurra a cebola, como um gancho.

Ele corrigiu a minha mão e me soltou, deixando-me fazer sozinha. O problema era que daquele jeito ficava muito difícil de segurar a cebola, e com ela escorregando facilmente pela minha mão parecia que a faca iria cortar meu dedo a qualquer momento. Cold fez uma careta como se eu fosse retardada. Ele pegou minha mão mais uma vez.

— A mão direita só precisa se preocupar em mantê-la reta! Faça uma garra com a mão esquerda! Ela segura a cebola e empurra, você não está segurando direito.

— Eu não consigo fazer isso! — resmunguei. — Minha mão esquerda não tem força suficiente, eu sou destra.

— Isso porque você não treina.

— Treinar a mão esquerda? Por acaso você conhece técnicas ninjas para cortar cebola? Não é minha culpa se é necessário ser ambidestro para cozinhar bem! — Soltei a faca e bufei. Tentar fazer coisas que eu não conseguia me deixava frustrada. Eu odiava me sentir inútil. Sempre tive mania de fazer tudo com perfeição.

Cold me encarou enquanto eu cruzava os braços e emburrava a cara. O rapaz deixou os ombros caírem, com um suspiro, e encurtou o espaço entre nós, segurando meu ombro. Seu indicador puxou meu rosto para cima delicadamente.

— Não precisa ser ambidestro para isso, eu também sou destro. — Deu de ombros. — Vamos, eu deixo você cortar do jeito que quiser.

— Como você pode ser destro se fuma e come com a mão esquerda?

— Eu faço isso? Você anda me observando então... — Arqueou as sobrancelhas com um sorriso de lado. — Anda, corte a cebola, estou com fome.

Cold me entregou a faca e eu voltei a cortar a cebola. Ele colou seu corpo contra minhas costas. O cheiro de cigarro impregnando meu cabelo era gostoso. Eu não era fumante, mas sentia cada vez mais vontade de cheirá-lo. Mesmo que a fumaça ambulante estivesse com um pouco de perfume, ainda podia sentir a essência. E como se eu pudesse ler mentes, Cold se afastou e tirou a caixa de cigarros do bolso, prendendo um entre os lábios e acendendo.

A visão era estonteante. A boca franzida sobre o cigarro e a fumaça se expandindo na cozinha. O cabelo loiro e grande ficava a maior parte do tempo como se ele tivesse acabado de sair de uma transa: apesar de liso escorrido, um pouco despenteado. Sem falar que a blusa levemente desabotoada estava acabando comigo. Eu quase cortei meu dedo ao observá-lo de soslaio.

Ele continuou a me explicar sobre o que eu estava fazendo, só que de longe, sentado na bancada. E eu deveria dizer, ele estava extremamente sensual. Cold marcava presença de uma forma misteriosa e atraente.

A lasanha ficou pronta. Retirei o refratário do forno com panos e o cheiro estava me matando de fome, eu não havia comido nada durante a tarde. Servi meu prato e me sentei no banquinho. Enquanto Cold se servia, peguei um tubo de molho jogado na bancada que parecia relativamente vazio. Depois de alguns pingos em cima da massa, balancei o pote e quando me dei conta de que primeiro deveria ter fechado a tampa, já era tarde demais.

Cold virou-se e abafou uma risada, colocando o prato no lugar ao meu lado.

— Sua cara está um pouco suja.

Passei a mão pelas bochechas e procurei rapidamente um guardanapo para limpar a sujeira do molho, mas... Eles não tinham guardanapos. Onde já se viu uma casa sem guardanapos?! Enquanto a angústia me atingia e meu olhar inspecionava a cozinha para me certificar de que aquele absurdo era real, não notei a aproximação de Cold, que me avaliava com os lábios franzidos em um sorriso de quem estava achando graça do desespero alheio.

Ele segurou meus pulsos, deixando-me estática quanto ao que estava prestes a fazer. Cold se aproximou do meu rosto e deliberadamente lambeu minha bochecha. Eu entrei em pânico.

— Não entre em pânico — murmurou, lendo meus pensamentos.

— O quê?

Cold soltou meus pulsos e levou suas mãos até minha nuca, intercalando seu olhar entre meus olhos e minha boca de forma invasiva que me fez imediatamente esquecer do quanto aquilo havia sido nojento. Eu estava quase segurando seu pescoço até lembrar que minha mão estava toda suja de molho. Foi quando eu vi seu doppelgänger a alguns metros distantes, com a atadura cobrindo o peito e uma feição bem irritada.

— Eu iria pedir minha camisa de volta — murmurou —, mas acho que você e ela estão bem ocupadas.

Shannon deu as costas e saiu da cozinha. Aquilo era ótimo. Ótimo. Maravilhoso. A aparição do irmão gêmeo de Cold trouxe à tona tudo o que acontecera no elevador. De alguma maneira, eu estava me sentindo egoísta.

Afastei-me de Cold bruscamente e desci do banquinho. O garoto não expressou uma reação imediata, apenas balançou a cabeça e encostou-se à bancada onde eu estava no instante anterior, como se dissesse: "entendo perfeitamente bem porque você está me afastando".

— Ele está certo — disse, sem encará-lo. — É a camisa dele.

Lavei as mãos com pressa. Não bati na porta do quarto de Shannon quando entrei. Ele parou onde estava — no caminho entre a porta e a cama — e se virou para me encarar com a testa franzida, irritado.

— Cai fora do meu quarto — começou, mas antes que ele dissesse mais alguma coisa, eu o interrompi.

— Aqui está sua camisa. — Eu puxei a camisa preta pelo pescoço, por onde ela saiu com extrema facilidade e arremessei na sua direção. Danem-se os mamilos e as rendinhas. Ela bateu em seu rosto e ele puxou com o braço que ainda funcionava.

— Parece que eu estava certo — murmurou encarando a camisa em sua mão.

Num impulso de raiva, me joguei em sua direção, esquecendo-me completamente daquele ombro idiota.

— Imbecil! — grunhi.

Estendi as mãos em seu peito e o empurrei — como se isso fosse lá grande coisa contra um cara de mais de 1,80m, e eu só me dei conta de que minha atitude infantil não surtira efeito nenhum quando Shannon agarrou meu braço, impedindo de me distanciar. Ele ofegou, controlando a dor. Ergui o rosto e o olhar duro de Shannon foi de encontro ao meu, seu peito subia e descia de acordo com sua respiração pesada e não havia mais espaço entre nossos corpos.

Eu havia passado dos limites e tudo que eu conseguia assimilar era o quanto os traços de sua boca se tornavam uma visão magnífica quando entreaberta. O contorno dos ossos em seus ombros largos fazia de seu corpo uma escultura incrível e eu havia acabado de perceber de que sua tatuagem abaixo da clavícula estava escrito algo como “segure-se a qualquer coisa”, mas parecia faltar o final da frase. Arfei antes que pudesse me controlar e meu rosto tomou uma coloração avermelhada.

Céus... Aquilo era ridículo. Não se tratava mais de medo, raiva e desgosto e sim do quanto ele conseguia ser estonteantemente irritante e até onde minha falta de controle ia próxima a Shannon. E a Cold.

O olhar de Shannon desceu do meu rosto ao meu busto, e sua expressão de dor misturada com raiva se desfez em surpresa.

Puta merda. Os mamilos estavam fazendo aquilo de novo.

Tomando as rédeas dos meus hormônios, balancei meu braço e me afastei enquanto Shannon tropeçava de costas para a cama.

— Aquilo não era nada do que você está pensando! — Eu sabia que era exatamente o que ele estava pensando, mas eu não iria dar o braço a torcer. Nem o ombro.

— Você está se explicando para mim? — perguntou, arqueando uma sobrancelha com uma expressão irônica e duvidosa. — Por que você está se explicando?

Aquela era uma ótima pergunta. E eu abri e fechei a boca várias vezes antes de me estressar profundamente e me dar conta de que ele havia se esgueirado em uma das minhas brechas argumentativas. Minha cara demonstrava a confusão mental que se passava dentro de mim.

— Cala a boca.

Eu dei as costas para o rapaz antes que pudesse ver o sorriso de satisfação em sua cara. Bati a porta do quarto, indo em direção ao banheiro.

Não tinha como negar, eu estava confusa. E Shannon estava certo.

O ódio movido pelo comportamento que ele tinha me tirava do sério e estava me fazendo a agir e dizer coisas totalmente incoerentes. Eu não estava me explicando para Shannon. Eu não queria provar nada e nem me importava com o que ele havia dito no elevador. Só não queria que ele passasse por cima do meu orgulho.

E como ele conseguia ser tão irresistível? Devia ser um tipo de praga na genética Lane que tinha o efeito colateral de me deixar louca. Eles eram o meu problema e não eu, o deles.

* * *

Abri os olhos, ainda era madrugada. Oh, merda. Eu odiava quando aquilo acontecia e eu não conseguia voltar a dormir. Qual era o problema com meu relógio biológico? Coloquei-me de pé em um minuto e fui até a cozinha com a única intenção de pegar um copo de água, mas ao me deparar com a quantidade de copos e pratos sujos que brotaram, não pude resistir. Eu já estava arrumando tudo quando me dei conta.

Meu estômago roncou quando terminei. Peguei na geladeira uma embalagem de brioches com uma etiqueta escrito “Cold” em cima e uma geleia de frutas vermelhas, e me sentei na bancada com os pés balançando no ar. Ele não iria se importar, iria? Ele era um cara legal, embora um pouco misterioso e sem noção de espaço pessoal e higiene. Eu não podia negar que ele também era extremamente atraente, e sua boca chamava minha atenção, seu corpo me deixava um pouco nervosa e... Uma silhueta masculina se moveu pela cozinha escura, uma silhueta que era exatamente igual a quem eu estava imaginando no segundo anterior e o sobressalto me fez cortar o brioche com força demais, a lâmina da faca alcançou a palma da minha mão e eu deixei tudo cair com um gemido alto e agudo.

Merda. Era uma droga de um corte superficial e aquele caralho não parava de sangrar e arder. Fechei a mão com força, eu nem ao menos percebi que estava xingando descontroladamente até o dono da silhueta agarrar meu pulso e eu ergui o rosto para descobrir que o culpado da minha distração era ninguém menos que Shannon com as ataduras em torno do ombro. Seu cabelo estava uma bagunça e ele estava, oh, merda, ele estava sem camisa.

Ele colocou minha mão debaixo da água corrente e eu praguejei alto.

— Por que você está fazendo isso? — indaguei, nervosa com sua tranquilidade visto que eu estava surtando de dor. Shannon sequer olhou na minha cara ao enrolar o corte com um pano de prato e dar um nó forte, estancando o sangue, e eu quase não me contive quando senti vontade de gritar o quanto aquilo era anti-higiênico, mas eu estava surpresa que ele fosse tão habilidoso com um braço atado e aquilo era... Eu nunca o tinha visto agir assim. Era gentil.

Eu olhei para minha mão e em seguida para ele. Seu olhar estava quase sem foco, era como se ele fosse sonâmbulo. Ele encheu um copo de água e saiu.

* * *

Acordei cedo e pouco disposta ao perceber que havia esquecido uma pequena sujeira na cozinha durante a madrugada, enquanto eu estava ocupada demais trocando um pano de prato sujo de sangue por uma bandagem adesiva adequada.

Tomei coragem e comecei a preparar uma tigela de cereal com uma caixa que havia achado dentro do armário, que expirava o prazo de validade em cinco dias. Eu teria que fazer muita força para comer aquilo.

Ouvi alguns passos atrás de mim e olhei de soslaio para reconhecer Cold, trajando uma calça de moletom preta, uma camisa branca e justa com o físico exposto, nenhuma atadura. Desviei o olhar, eu não sabia muito bem como reagir após o quase-beijo da noite anterior.

Crente que ele estava prestes a voltar a dormir, me assustei quando senti um corpo se encostar ao meu, colando toda a superfície frontal com as minhas costas. Eu soltei o ar com a boca, surpresa. Parei de mexer a colher na tigela de leite e cereal que eu segurava.

Cold passou um braço direito para a minha frente e capturou minha tigela de cereais, arrastando-a pela bancada. Ele me virou e ficamos cara a cara, em uma situação que seu rosto invadia demais o espaço do meu. Nenhuma noção de espaço pessoal. Pela lacuna de altura que me faltava, sua cabeça inclinada me permitia sentir até o ar quente de sua respiração, e por alguns segundos, eu achei que fosse ficar só nisso. Ele abaixou o olhar, reparando na bandagem que cobria minha mão, e a tomou, virando-a e arrastando o polegar por onde o corte se encontrava. Então Cold encurtou o espaço entre nós.

Ele avançou com agressividade, esmagando meus lábios contra os seus. Senti minha respiração travar e meu peito apertar com a impulsiva emergência de retribuir seu beijo, estremecendo meu corpo e aumentando minha frequência cardíaca exponencialmente. Sua boca era como uma almofada, moldando-se à minha de uma forma que me fazia derreter por dentro. O gosto quente e o cheiro me tomaram por inteira atiçando meus hormônios e de alguma forma criando em mim um súbito desejo e necessidade de toque. Ele me beijou como se eu fosse ar e ele não conseguisse respirar, sedento. Era sensual e provocante de um jeito absurdo, pois parecia que eu estava esperando aquilo desde sempre e eu não tinha a menor pretensão de parar...

Cold recuou, piscando de uma forma pensativa com os lábios desgraçadamente molhados e entreabertos. Alcancei seus olhos e tentei decifrar se a imprecisão castanha significava desaprovação, excitação ou confusão.

Não pode ser desaprovação, pensei quando Cold deixou escapar um rouco som de sua garganta e acabou com a distância entre os rostos, prosseguindo com um beijo menos agressivo, mais confiante, acariciando minha boca com a sua e provocando reações em mim que eu não fazia ideia de como controlar. Minha pesada blusa de pijama não era capaz de esconder a rigidez dos meus mamilos e a repentina tontura que me atingiu após Cold quebrar o contato era quase suficiente para me jogar ao chão. Ele se afastou, virando-se, desaparecendo no corredor.

Meu coração estava acelerado e eu queria acreditar que aquilo havia sido mais do que aparentemente foi. Não. Eu queria pedir para ele fazer aquilo de novo. E de novo. Levei os dedos até meus lábios, ainda sentindo o formigamento de ter algo de encontro a eles. Desde quando eu ajo como uma menininha virgem? A última vez que chequei, de virgem, só tinha o signo.

E ele levou meu cereal.

Com as mãos trêmulas e o coração acelerado, com pensamentos martelando em minha cabeça, preparei mais uma tigela e nem vi quando o cereal acabou, apenas jogando o pote dentro da pia e indo em direção ao corredor. Eu tinha que fazer alguma coisa, qualquer coisa.

Ao chegar à porta do quarto de Cold, ela se abriu antes que eu pusesse a mão na maçaneta. Ele estava com cara de sono e a blusa justa parecia mais amassada e o cabelo solto mais embaraçado. Eu estava prestes a dizer algo em relação a sua cara de quem não estava entendendo nada. Entretanto, naquele mesmo instante, a porta do banheiro se abriu e Shannon apareceu, com uma toalha de banho envolta da cintura, sem suas ataduras e... uma calça de moletom preta e uma blusa branca pendurada no braço bom.

Eu teria me parado de qualquer forma, para, dessa vez, não dar a Shannon o gostinho de passar por cima do meu orgulho, mas acontece que algo mais intrigante havia me segurado e era o fato de Shannon estar sem as ataduras.

Meu olhar recaiu sobre um gêmeo e depois sobre o outro, alternando conforme minha mente rodopiava e eu via minha vida cair aos pedaços como migalhas de pão de forma dada aos pombos. Shannon não deveria tirar as ataduras, pois eram elas, naquele exato momento, a minha única forma de diferenciá-los. Mas esse não era o maior problema.

Oh, merda. Qual deles eu havia beijado?


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Notas finais do capítulo

A GRANDE PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR É:

QUEM A DAWN BEIJOU?

E qual foi o melhor capítulo até agora na sua opinião?

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