As Desventuras do Caos escrita por Reet


Capítulo 11
CAPÍTULO XI — REBELDE SEM CAUSA


Notas iniciais do capítulo

OLÁ, GALERA, EU CHE- *desvia de pedras* POIS É, DEMOROU, MAS- *desvia de uma bigorna* TÔ VIVA (ou quase).

Queria agradecer a todos que comentam!! Muito obrigada a todos, vocês são sempre MUITO lindos ♥

E essas recomendações? Meu coração falha uma batida sempre que chega uma. Quero agradecer à Mayra Collins (626792), Della (654651) e a lindona da Starsky (620133)!!! Me segurem senão eu morro de tanta fofura. Esse capítulo é para vocês.

Betagem: Ladybug (ID: 693356). Agradecimentos especiais a Hiro (645114) por me ajudar com os diálogos, e Candweet (288672) por me emprestar a ideia da fobia.

Edição: 09/11/16: talassofobia foi mudada para hidrofobia. 08/12/2016: adicionado cenas e alteração de diálogos.



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Por longos segundos permaneci calada, minha boca estava aberta. Meus olhos intercalavam entre Cold, de moletom preto ao sair do quarto, e Shannon, segurando um moletom preto ao sair do banheiro. O que significava que os dois estavam vestidos da mesma forma.

Eu tentava repassar na minha cabeça cada detalhe da cena vivenciada nos últimos minutos, tentando me lembrar de qualquer coisa que pudesse diferenciá-los. As tatuagens... Não! Droga! Ele estava vestido. Ou... O ombro machucado! Merda. Eu não me lembrava qual braço ele usara para pegar o cereal. Meu coração começou a acelerar e eu senti meu rosto esquentar a tal temperatura que poderia fritar um ovo na minha própria testa.

— Você está bem? — Cold perguntou, esfregando o rosto e jogando o cabelo para trás. — Está fazendo uma cara estranha.

— Ela nasceu assim — Shannon murmurou, passando por mim e abrindo a porta do seu quarto.

— O quê... O quê... — Não conseguia encontrar meu cérebro, muito menos minha voz. Alguma conexão neuronal estava abalando minha habilidade de comunicação. — O que você está fazendo sem as ataduras?! — perguntei a Shannon, indignada.

— Tomando banho — respondeu entredentes. — E eu não acho que ainda preciso usá-las, meu ombro está ótimo.

— Você... — Minha voz se perdeu, pois, a verdade era que eu não sabia o que falar sem admitir em voz alta que algum dos dois havia me beijado.

Tinha que ser o Cold! Afinal, Cold é... safado. Isso. Cold era safado e, portanto, estaria concluindo o que não foi feito na noite anterior. No entanto, Cold não tem cara de quem ficaria tão... sedento e... calado... Não! Esfreguei os olhos, o rubor havia se espalhado para as orelhas e pescoço. Shannon tinha um total de zero motivos para me beijar. Era óbvio que fora Cold. Cold. Cold. Cold, repeti mentalmente tentando convencer-me, embora todos os fatos apontassem o contrário. Cold não era nada calado.

— Já que está de pé tão cedo, fez algo de útil como... café da manhã? — Shannon indagou. — Meu estômago não vai se encher sozinho.

— Eu tenho cara de empregada? — grunhi. Agora eu tinha certeza. Meu rosto estava em chamas. Se era raiva ou vergonha, eu não podia afirmar.

— Ela não sabe cozinhar — interrompeu Cold, pondo-se entre mim e Shannon, levando a mão esquerda ao meu rosto. Ele agarrou minha bochecha com o dedo indicador e médio com um sorriso no canto do rosto. Oh. Céus. Era ele. Eu sabia. — Você está com febre?

 — Ela está ótima — Shannon passou entre mim e Cold, fazendo questão de esbarrar o ombro em nós dois. Contive um grito de raiva. Como era possível uma pessoa encher tanto o meu saco? — Não vai perder um dedo se fizer algumas tigelas de cereais.

Prendi a respiração. Ou ambos estavam blefando, ou estavam brincando comigo. Ou havia um terceiro gêmeo chamado Dark Lane ou Hot Lane escondido. Eu não me surpreenderia.

Fechei os olhos por alguns segundos, tentando canalizar minha raiva para longe do meu corpo, mas com Shannon por perto, isso era impossível.

— Eu vou acabar pregando placas de identificação em suas testas. — Tapei a boca ao me dar conta de que o pensamento havia escapado de mim.

— Por quê? — as duas vozes saíram em sintonia.

— Por... Por... — gaguejei. Mordi os lábios e respirei algumas vezes para me acalmar. Eu iria sofrer um acidente vascular cerebral a qualquer momento. — Vá se vestir! Agora!

Apontei para Shannon, irritada. Ele arqueou as sobrancelhas, cínico.

— Você é quem manda, mãe.

* * *

— Onde está a droga do liquidificador que eu deixava aqui? — reclamou Cold, na cozinha, espalhando as coisas em cima da bancada e bagunçando tudo que eu havia arrumado. Contudo, o liquidificador estava diante dele.

— Serve esse? — perguntei retoricamente, pegando o objeto.

— Esse não é o meu liquidificador — respondeu. — Meu liquidificador é verde.

— Cold. — Eu engoli em seco, pensando em como eu diria isso a ele. Resolvi que era melhor falar a verdade. — O liquidificador sempre foi branco. Acontece que ele estava sujo.

Senti nojo de ter tocado naquele objeto no dia anterior, mas, felizmente, ele estava limpo agora. O loiro pegou o eletrodoméstico da minha mão, ligando-o na tomada.

— O que eu faria sem você? — murmurou, rindo.

— Provavelmente, acordaria um dia parte da fauna e da flora de musgos da sua própria casa. — Eu me aproximei do gêmeo e imediatamente, senti um tipo de insegurança e desconforto. E se não tivesse sido Cold?

— O que aconteceu com sua mão?

— Ah! — Olhei momentaneamente para a bandagem que cobria o corte, lembrando-me de quando Shannon amarrara um pano de prato no machucado. Aquilo me fez corar. — Eu me machuquei, não foi nada. Eu estava passando geleia em um de seus brioches de madrugada.

— Foi um castigo por roubá-los. Bem feito.

— Eu aprendi a lição. — Sorri, mas Cold nem olhou na minha cara, ele digitava alguma coisa em seu celular. — O que está fazendo?

— Vitamina. Quer um pouco?

— Você ainda está com fome? — perguntei, surpresa.

— Ainda? — retrucou. — Eu estou morrendo de fome. Está pronta para nossa segunda aula de culinária hoje à noite? Podemos fazer um risoto de bacon.

Antes que eu pudesse dizer algo, a porta da sala se abriu como se alguém houvesse arrombado e isso me fez perceber que ela havia estado destrancada a noite inteira. Na verdade, eu nunca me lembrei de ela ter sido fechada. Aquelas pessoas tinham um sério problema com portas nessa casa.

Hans passou pela porta junto com Takigawa. O asiático vestia um casaco de couro e jeans, enquanto o castanho trajava uma calça de pescador e moletom cinza, trazendo em suas mãos três sacos de papel reciclável com logomarcas do Café Retrô. Os sacos exalavam um cheiro de café da manhã que me fez esquecer totalmente do cereal engolido.

— Só passei para ter certeza de que as coisas estão sob controle — disse. Ele colocou os três sacos na bancada e olhou em volta. — Essa casa está brilhando. Quem arrumou isso aqui?

— Fui eu. — Levantei a mão e acenei com um sorriso forçado estampado na cara.

— Eu quase achei que estivesse no apartamento errado. Meu Deus, você realmente era tudo o que eles precisavam.

— Achei que eu era o novo problema — retruquei.

— Um pouco dos dois.

Shannon irrompeu na saleta com um jeans muito, muito velho e surrado nos joelhos, trajando uma blusa de manga comprida, listrada em preto e branco. Ele estava tentando prender o cabelo sem erguer demais o ombro, quando se deu conta de que aquilo seria difícil de se realizar. Passando direto por Hans e Akira, ele pegou uma sacola no balcão, dizendo:

— O que eu fiz para ter meu ex-namorado o tempo inteiro na minha própria casa?

— Você deveria agradecer por ele ter trazido o café da manhã — respondeu Cold com um tom sarcástico.

— Eu não pedi sua opinião, Cold.

— E alguém pediu a sua? — respondi, virando-me para Shannon com os braços cruzados.

— O que você é, algum tipo de defensora dos fracos e oprimidos? — Shannon revirou os olhos e se jogou na poltrona, pegando um livro para ler.

— Shannon, mamãe está puta com você — anunciou Cold para seu irmão.

— Oh — Hans se levantou da cadeira. — Assuntos familiares. Estou fora. Até mais! — Hans e Akira saíram do apartamento e bateram a porta logo atrás deles. Com essa quantidade de vezes que batem a porta por aqui, está explicado porque não têm trincos.

— Me conte uma novidade — respondeu Shannon com pouquíssimo interesse.

— Ela mandou avisar que espera que você se esforce para comparecer às próximas reuniões, caso contrário... — Cold balançou a cabeça com um pouco de desdém enquanto colocava um pouco de vitamina em seu copo, tentando não encarar o irmão. — Você-sabe-quem vai me tornar filho único.

Ao menos Voldemort sabia o que estava fazendo, pensei.

— Seria tudo o que você sempre quis — Shannon debochou.

— Eu não tenho como negar isso. — Cold terminou sua vitamina e limpou as mãos, digitando freneticamente no celular e avisando que iria sair.

Eu fui fazer a única coisa que me restava. Sim. Dois séculos de feminismo para acabar lavando a louça. Eu era um pedaço de desgraça atirado nesse mundo e era por isso que o azar conspirava para mim.

* * *

— Aconteceu uma coisa terrível — murmurei, colocando a mão na frente da boca para abafar minha voz enquanto vigiava pelo vão da porta qualquer sinal de um dos gêmeos no corredor.

— Você descobriu a utilidade da sua boceta? — respondeu a voz abafada da Gail pelo telefone.

— O quê?! Gail!

— Que ingenuidade da minha parte, é claro que não — debochou com uma gargalhada que poderia me provocar risos a qualquer outro momento, mas não nesse. — Dawn Firewood é a pessoa mais assexual que conheço.

— Primeiramente: isso não é verdade. Agora podemos levar isso à sério uma vez na vida? — censurei. Ouvi-a soltar um suspiro pelo telefone.

— Claro, desembucha. Mas já vou avisando que não vou trocar fraldas. Bebês são miniaturas fedidas de seres-humanos.

— É pior do que isso — respondi, fechando a porta do quarto e deslizando minhas costas por ela até o chão.

— O que pode ser pior do que isso?

— Eu beijei um cara e... Argh, droga. Foi tão bom e... — Eu passei a mão pelos curtos fios de cabelo, seguidos pelos olhos, boca, sendo dominada pelo meu desespero inteiro e a memória da boca macia colada à minha.

— Por favor, Dawn, pare de dramatizar um beijo. Eu até entenderia se fosse uma puta foda, mas qual é? O que tem de errado nisso? Perdi a conta de quantas bocas eu já-

— O problema é que eu não tenho certeza se... — Abaixei o telefone antes de completar a frase, apenas para me certificar de que não havia ninguém bisbilhotando atrás da porta. Suspirei. — Se foi o cara que eu realmente queria beijar ou o irmão idiota, grosso e estúpido, dele.

— Você estava bêbada ou o quê?

— É complicado! — Revirei os olhos, mesmo sabendo que ela não poderia ver. — E eu não posso simplesmente perguntar a um deles, mas eu preciso ter certeza de quem era.

— Então beije os dois e descubra.

— Claro! Por que eu não pensei nisso antes? — ironizei. — Ah, sim, deve ser porque essa é uma péssima ideia. — Gail deixou uma risada escapar e eu suspirei de novo. — Eu preciso te explicar toda a situação, mas não dá pelo telefone. Vou me arrumar e já chego aí.

Desliguei o celular e vesti-me rápido.

* * *

O clima estava razoável em comparação a todas as vezes que o céu de Bournemouth ameaçava a fazer sol e, logo depois, chovia. Dessa vez, o céu estava nublado e a temperatura amena.

O único caminho para a casa de Gail que eu conhecia — e considerava seguro — era pelo píer da cidade, o local mais movimentado naquela época do ano por conta de um festival de balões de ar quente. Os turistas caminhavam pela rua com suas máquinas fotográficas disparando flashes, os bares estavam cheios, as gaivotas grasnavam, as crianças se jogavam no chão para forçar os pais a comprarem algodão doce e os carros e motos na rua buzinavam buscando passagem. Todo aquele ruído me irritava, desconcentrando-me.

Mirei uma motocicleta que ziguezagueava entre as pessoas fazendo um barulho infernal, desejando que o piloto, de alguma forma, explodisse. Os fios de cabelo claro que escapavam pelo capacete me fizeram apertar os olhos para tentar enxergar melhor enquanto a moto se distanciava. Não pode ser, pensei quando o cara — àquele ponto eu já estava certa de que os braços musculosos e tatuados pertenciam a um homem — estacionou em frente a um bar. O capacete foi guardado e o dégradé inconfundível de castanho e loiro me fez ter certeza de que rapaz era, sem dúvidas, um dos gêmeos Lane. A motocicleta preta e larga, praticamente polida, que, se eu não estava enganada, era uma Kawasaki, daquelas que custam o olho da cara.

Ele entrou em um bar de esquina, com uma fachada suja, vidros escurecidos e aparência encardida. Um lugar que, definitivamente, eu nunca entraria em sã consciência.

E talvez a força que moveu minhas pernas até lá não pudesse mesmo ser chamada de “sã consciência”. Qual era o meu problema?, era a pergunta que martelava em minha cabeça naquele momento.

Tentei enxergar alguma coisa através do vidro escuro, mas não conseguia ver nada. Contive minha vontade de entrar no local. Uma pessoa do meu porte iria chamar uma atenção desnecessária. Por fim, decidi esperar, se por curiosidade ou insanidade, eu não saberia dizer. Olhei a hora na tela do celular, suspirando. Gail terá que ficar para depois.

Uma longa hora se passou até que Shannon finalmente saísse de dentro do bar. Ele passou por mim sem notar minha presença, tropeçando nos próprios pés, parecendo mais bêbado do que conseguia suportar. Parou na calçada e tirou um saco do bolso, despejando algo nas mãos que eu não consegui ver, depois, guardando-o de volta de qualquer jeito. Estava prestes a atravessar a rua na direção do píer.

Droga. Iria sobrar para mim. De novo.

— O que você está fazendo? — gritei.

Shannon teve um sobressalto e virou-me na minha direção. Ele estava quase no meio da rua agora.

— Firewood — murmurou Shannon, um sorriso apareceu no canto dos seus lábios, mas seus olhos pareciam fora de foco.

Um carro buzinou, incrivelmente perto de o atropelar, e teria feito, se eu não tivesse agarrado sua camisa e o puxado. Suas pernas pareciam não obedecer ao corpo e ele chocou-se contra mim, levando uma mão até meu rosto. Sua mão estava quente e o repentino contato me deixou alerta. O quê...? Sua expressão estava mais relaxada, mais do que uma pessoa simplesmente bêbada. Seus dedos acariciaram minha pele.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou, deixando a cabeça cair. Ele mordeu o lábio. Oh, merda, aquilo conseguia tirar minha atenção. Tudo porque ele era idêntico ao irmão.

Já estava me arrependendo daquela ideia estúpida, mas uma voz no fundo da minha cabeça me dizia que alguma coisa estava errada. Shannon me encarou. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, percebi que havia algo diferente em seu rosto. Seus olhos pareciam... grandes. Maiores do que o normal para um dia claro, maiores do que o normal para qualquer pessoa. Eu levei uma das mãos até seu queixo e empinei seu rosto, então me dei conta. As pupilas. Estavam muito dilatadas.

— Você... você está bem? — indaguei.

— Mais do que bem — respondeu, sorrindo mais um pouco. — Eu estou me sentindo tão bem.

— Shannon, você está agindo estranho. — Eu segurei seu pulso, impedindo que ele continuasse com o carinho. Aquele não era o Shannon que eu conhecia. — O que você bebeu?

— Água. Vodca. Talvez outras coisas. Não lembro.

— Você não está bem — concluí, balançando a cabeça. — Nós vamos para casa, anda.

— Eu disse que estou bem! — Shannon reclamou.

— E você quase foi atropelado, você não está em condições de julgar nada, eu vou ligar para Cold. — Peguei meu celular.

— Ótimo, liga, ele não vai dar a mínima. — Shannon se virou e atravessou a rua cambaleando, quase sendo atropelado por uma bicicleta, que desviou no último segundo. Eu corri para alcançá-lo, enfiando o telefone de volta no bolso.

— Shannon! — gritei, colocando as mãos na cintura. — Supostamente, você deveria estar descansando seu ombro!

— Você fica um pouco fofa quando está irritada — ele murmurou, os olhos vagando pelo meu corpo.

Eu pisquei. Aquilo era preocupante.

— Você definitivamente não está bem, nós temos que ir para casa.

— Você é surda? — perguntou, um pouco irônico.

— Se não vai obedecer, eu vou... — gaguejei. A verdade é que eu não tinha argumentos e eu não tinha motivos para tomar conta de Shannon. Eu não estava sendo paga para ser babá. Mas ele estava tão... estranho. Eu não conseguia simplesmente ir embora. — Eu vou ficar com você. — Agarrei seu braço, sentindo sua temperatura. Céus, ele estava tão quente! Deslizei minhas mãos por sua pele, vendo-o se arrepiar com o toque. — Você está pegando fogo, eu acho que você está com febre.

Oh — gemeu, fechando os olhos no mesmo segundo. — Merda. — Shannon abruptamente puxou o braço, ele abriu os olhos, nervoso. — Não faça isso de novo. Não está ajudando.

— O quê? — Ele me deu as costas e caminhou na direção do píer. — Aonde você está indo?

— Meu esconderijo secreto — respondeu. — Onde eu posso resolver umas questões existenciais.

— O píer? — Arqueei as sobrancelhas, surpresa. — Isso é um pouco previsível.

— Não para mim.

A típica cena de um filme de romance genérico. A praia, o horizonte, o pôr do sol. A única diferença era que não havia nada romântico em um cara bêbado, sem filtro, tropeçando nos próprios pés. Ele se lembraria no próximo dia? Eu conhecia alcóolatras minha vida inteira, poderia lidar com mais um.

— Shannon, você... — comecei. Ele virou o rosto, inexpressivo, aguardando o restante da frase. Eu mordi o lábio inferior e mirei os tacos de madeira do chão do píer. Não, pensei. Não é possível. Por um lado, nada estava óbvio. Por outro, estava tão óbvio de que fora Cold. Shannon, novamente, não tinha motivo nenhum para querer me beijar.

O vento carregava o cheiro de sal em uma brisa fria, não o suficiente para me fazer estremecer. O sol estava tomado por feixes de cor laranja e rosa, como uma pintura, só que melhor. Reparei que Shannon caminhava automaticamente em direção à parte mais longe da doca, sem perceber que algo havia caído do seu bolso. Um saco. O saco. Só pude entender realmente o que estava acontecendo quando peguei o saco transparente no chão.

— Você deixou isso cair — chamei sua atenção e ele se virou.

Eu olhei para o conteúdo do saquinho e por um momento parecia ser uma sacola de doces, mas então percebi as variadas ilustrações entalhadas em cada uma das pequenas pílulas arredondadas e de cor azul. Ergui o rosto, Shannon pressionava os olhos deixando um som rouco escapar por sua garganta.

— Não é o que você está pensando. — Shannon mordeu a boca como se tivesse adivinhado que falar alguma coisa não iria melhorar sua situação.

— Você está drogado — concluí, tudo começou a fazer sentido. As pupilas, a temperatura, a forma estranha que estava agindo. — Você usa... ecstasy.

— Eu preciso disso, Firewood, você não entenderia.

— Isso é tão típico! O que você é, um rebelde sem causa ou o quê? Cold sabe sobre isso? — Então eu me lembrei de outra coisa. — Shannon! Céus, você misturou com álcool! Isso é... isso é quase suicida! — Arregalei os olhos.

— Você acha que Cold se importaria se soubesse? — Ele cruzou os braços.

— Então ele sabe. — Amassei as pílulas de ecstasy na minha mão. O que Cold estava fazendo? Como ele podia deixar o próprio irmão fazer aquele tipo de coisa?  Cold poderia odiá-lo o quanto fosse, mas deixar que ele se matasse por dentro... — O que é agora, você está tentando se matar?

— Eu já fiz isso mil vezes, sou difícil de matar.

Ao concluir a frase, ele se virou e começou a andar em direção ao fim da doca, que não era muito extensa e possuía alguns bancos de madeira aqui e ali, mas estava ventando naquele dia e ninguém estava interessado em ficar muito perto da beirada. Por conta da ventania, os fios loiros da cabeça de Shannon estavam esvoaçando na direção contrária a que ele caminhava.

— Por que você está fazendo isso?

— Por que você se importa? — Shannon esfregou o rosto com as mãos, encarando o horizonte. — Confie em mim, você não quer saber.

Virei-me, deixando o píer em passos largos.

— Aonde você vai? — perguntou o rapaz.

— Você disse que eu não quero saber.

— Devolva meu ecstasy.

— Sinto muito. — Olhei para o saquinho de pílulas na minha mão e estendi o braço na direção do mar. As feições de Shannon mudaram depressa, ele arregalou os olhos com desespero implícito. — Eu não vou te devolver isso.

— O que você pensa que está fazendo? — gritou, mas antes que ele pudesse avançar na minha direção, eu joguei o saco na água.

Ele estendeu os braços emitindo um sonoro “não!” que o desestabilizou completamente enquanto tentava, em vão, segurar um corrimão invisível. Seu olhar aflito deu lugar ao desespero. Shannon caiu do píer. Afastei-me das gotas de água que respingaram da queda e cruzei os braços com impaciência. Eu não tive nada a ver com isso, pensei com um revirar de olhos.

Ele debateu-se na água, após alguns segundos, passando a girar no mesmo lugar com os poucos movimentos que seus braços faziam, parecia procurar o saquinho à sua volta. Estranhamente, a forma como seu rosto estava inclinado e a boca no nível da água não parecia normal. Até que ele submergiu.

Longos segundos se passaram. Nada. O saco de ecstasy saiu boiando para longe da doca e foi quando algo surgiu na minha cabeça. Uma suposição ridícula. E real.

Shannon sabia nadar, certo?

Errado.

Eu me joguei na água quando o desespero me acertou. Apesar de a temperatura estar absurdamente fria, eu não conseguia pensar em nada a não ser que havia sido testemunha de um afogamento, e possivelmente culpada.

Mergulhei, abrindo os olhos debaixo d’água à procura de algum sinal de bolhas ou movimentação subaquática, o mínimo que pudesse denunciar onde Shannon estava. Então minha mão esbarrou com alguma coisa e eu agarrei, puxando para cima. O cabelo loiro foi o primeiro a aparecer grudado em sua cara e eu esperei que ele abrisse os olhos.

Achei que ele fosse brigar comigo, mas, ao contrário disso, Shannon nem ao menos reagiu. Seu cabelo estava grudado no rosto, os olhos fechados e a boca entreaberta. Ele parecia estar sem vida e eu precisava segurá-lo para não voltar a afundar na água. Sua cabeça tombou de um lado para o outro enquanto eu chacoalhava seu corpo.

— Shannon? — gritei. — Acorda, seu imbecil! — Isso dever ser algum tipo de brincadeira, pensei enquanto sacudia o gêmeo. Não era possível! Ele tinha que estar brincando, pregando uma peça, qualquer coisa. — Shannon! Anda!

Não é possível que um cara de um e oitenta de altura com vinte e cinco anos na cara tenha desmaiado ao cair no mar. Eu tentei considerar alguma possibilidade, mas percebi que quanto mais tempo se passava, mais a minha aflição crescia, e mais a água parecia mais fria. Passei um braço do rapaz pelo meu ombro e comecei a nadar. Ao chegar na areia, eu já era a personificação do desespero.

Minha culpa. Meus olhos começaram a arder. Era minha culpa, minha culpa, minha culpa. Aquilo não parecia nem de longe uma brincadeira justa e era inteiramente minha culpa. Por um lado, Cold provavelmente ficaria orgulhoso com o meu trabalho de eliminar sua sósia, por outro, eu não estava certa de que era isso que eu desejava.

Desesperada, busquei meu celular em meu bolso e apertei várias vezes a tecla de ligar, mas ele não estava respondendo. Meu queixo começou a bater fortemente e tratei de enfiar as mãos trêmulas nos bolsos da calça de Shannon até encontrar o celular dele que, felizmente, era uma daquelas últimas gerações à prova d’água. Desbloqueei a tela, mas eu estava tão nervosa que não era capaz de digitar qualquer número de emergência. Socorro. Respirei fundo várias vezes até conseguir clicar na lista de contatos e escolher o primeiro número que me pareceu eficiente de alguma forma. Hansel Green. Ele atendeu em menos de dois bipes.

— Shannon? — perguntou com a voz confusa.

— Hans... Eu... Shannon... Ele... — gaguejei, tentando segurar o telefone rente à orelha com dificuldade. — Hans... me ajuda, eu... O que eu faço?

— Dawn? — Hans estranhou. — O que está acontecendo? O que houve? O Shannon está aí com você? — Sua voz atingiu um tom nervoso que eu não havia ouvido antes.

— Ele se afogou! Rápido, eu... eu não sei o que fazer! Ele...

— O quê? — Hans gritou. — C-como? Shannon se afogou? — O telefone ficou mudo por um tempo e, naquele segundo, eu quase perdi todas as esperanças. O tempo estava passando e Shannon, jogado na areia, não movia um músculo. Com um ruído alto, o celular pareceu ser tomado de sua mão.

— Dawn, sou eu, Akira — disse a voz carregada de sotaque oriental, com precisão e segurança. De alguma forma, sua voz me tranquilizou. — Aproxime-se do rosto dele. Verifique se a respiração está presente, fraca ou sem sinal.

Até o momento eu não havia percebido que estava chorando. Respirei fundo, engoli o choro, e abaixei o rosto. Eu não conseguia ouvir sua respiração, mas podia estar apenas fraca demais para isso.

— E-e agora?

— Cheque os batimentos cardíacos por dez segundos, na lateral do pescoço ou pulso. E me diga onde vocês estão.

— Ok — respondi, pressionando dois dedos no pulso de Shannon. Estava lá. — Na praia, perto do píer de Bournemouth. Está fraco, mas está aqui. E agora?

— Agora pressione as palmas das mãos no centro do tórax e jogue todos os seus 50 quilos em cima, em um ritmo rápido. Estamos indo até vocês, não desligue o telefone.

Cruzei os dedos em cima da mão e comecei a pressionar o peito de Shannon seguidas vezes. Para a minha surpresa — e alívio —, Shannon abriu os olhos e tossiu. Empurrei sua cabeça para o lado e ele cuspiu água. Peguei o celular que havia deixado cair na areia e coloquei rente ao ouvido, tentando controlar minha voz.

— Deu... deu certo... — Ofeguei. — Ele está bem.

— Ótimo. Não saiam daí, estamos chegando. — Akira desligou o telefone e eu o deixei cair na areia mais uma vez. Uma onda entorpecente de felicidade se espalhava pelo meu corpo, deixando meus músculos pesados.

Eu fitei o rosto pálido e os olhos castanhos em formato de amêndoas procurarem por foco, até que eles encontraram os meus e Shannon ofegou, assustado. Ele parecia estar saindo de um pesadelo e levou uma das mãos até o meu braço, apertando com força suficiente para deixar hematomas, certificando-se de que eu estava lá. Ele ergueu a cabeça e olhou ao redor, voltando a deitar na areia e pressionar os olhos. Seus lábios rosados e partidos, agora em alto contraste com sua pele alva, moviam-se como se ele quisesse dizer alguma coisa. Até que ele passou a língua, procurando umedecê-los, mas fez uma careta ao constatar o gosto de sal.

— Você quase me matou de susto — sussurrei, nervosa, internamente surtando de felicidade. Não era hoje que eu seria presa por assassinato.

Ele sorriu. A boca rósea franzida de uma forma diferente da irônica era realmente bonita e talvez atraente. Eu não podia negar que em Cold era bem bonita, mas eu podia fingir que nisso eles não eram iguais. A pureza de Shannon era diferente de Cold.

— Você se esqueceu da respiração boca a boca.

Antes que eu pudesse enfiar uma bofetada na sua cara, Hans e Akira apareceram no meu campo de visão. O primeiro, trêmulo, e o segundo o segurava pelos ombros como que para acalmá-lo. Eu nunca havia visto Hans tão estranho.

— O que João e Maria estão fazendo aqui? — perguntou Shannon com a voz rouca. Akira ignorou-o e estendeu a mão para me erguer da areia.

— Salvando sua vida — respondi, empurrando-o pelo ombro e me levantando. O asiático tirou o próprio casaco e me cobriu. Naquele momento, ele parecia um porto-seguro. Calmo, confiante, são.

— Eu estava formulando uma suposição para isso — começou Hans com uma respiração pesada e irregular. — Mas eu realmente não consigo pensar em nada.

— Shannon — respondi a sua pergunta implícita. Hans balançou a cabeça como se tivesse entendido tudo. — Shannon se jogou na água e ele simplesmente DESMAIOU depois disso! — grunhi com raiva. Em parte, por estar suja e nervosa quanto a isso.

— Ele está usando ecstasy? — perguntou Hans.

— Como você sabe disso? — retruquei, surpresa.

— Porque ecstasy intensifica ataques de pânico e — disse, apontando para o mar logo em seguida — ele tem hidrofobia.

— Hidrofobia? — indaguei. A palavra ecoou na minha cabeça. — Céus! Eu não sabia disso, eu quase deixei ele morrer! — Que raios ele estava fazendo no píer se ele tinha medo de água? Era o lugar mais molhado de Bournemouth! — Por que você tem medo de água? — Virei-me para Shannon, que agora estava com os cotovelos apoiados no joelho.

— Eu disse que você não iria querer saber — declarou Shannon.

— Por acaso a gentileza é efeito da droga?

— Não. Esse é o Shannon sendo ele mesmo — informou Hans e soltou um suspiro. — O doce geralmente deixa as pessoas agitadas e afetivas, mas não há droga que faça o Shannon deixar de ser um grosso.

— Obrigado — murmurou o rapaz na areia. — Sempre soube que eu era bem-dotado.

Hans revirou os olhos, ignorando-o. Eu não podia discordar desde a cena no banheiro.

— Dawn, acalme-se — Akira disse. Eu olhei em seus olhos e percebi que minha respiração ainda estava irregular, assim como Hans. Mas Hans era um enfermeiro, e, no entanto, perdeu a cabeça numa situação como aquela. — Acho que vocês precisam de uma carona.

— Eu acho que você precisa tomar conta da sua vida — retrucou Shannon com grosseria e ergueu um dedo do meio.

— É, e eu acho que se você não procurar uma garrafa de água — começou Hans —, seu próximo desmaio vai ser por desidratação.

— Ou pelo soco que eu estou prestes a acertar na sua cara — avisei. — Vamos embora.

* * *

Hans dirigiu o Impala e Akira pilotou a moto de Shannon até a Vila dos Estudantes. Durante a curta viagem, Hans olhou para mim pelo retrovisor.

— Se você for carinhosa, ele obedece — murmurou, intercalando a visão entre Shannon e eu e se certificando de que ele não estava prestando atenção. — Ele vai ficar mais afetivo, sensível ao toque e mal vai se lembrar amanhã, então... tome conta.

Eu balancei a cabeça.

Quando saí do carro, Akira parou na minha frente.

— Você está bem? — perguntou.

— Estou — respondi com um sorriso curto. — Obrigada. — Akira balançou a cabeça como um gesto de “por nada”. — Akira, é sério... O que você fez... — Eu mordi o lábio inferior, observando o rapaz loiro desaparecendo dentro do prédio. — É o Shannon de quem estamos falando. O que ele já fez com você... e com Hans... Obrigada.

— Eu não te ajudei por ele — corrigiu. — Foi pelo Hans. — Akira desviou o olhar para o carro, mas Hans não estava olhando para nós dois naquele momento. Ele abaixou o tom de voz ao continuar: — Ele não merece isso. Ele é a melhor pessoa que eu já conheci e... Ele não merece o babaca do Shannon. Perdê-lo uma vez já era suficiente, e quando você ligou, Hans imaginou perder de novo. Ele não conseguiu reagir.

* * *

— Vá direto para o chuveiro.

Tudo estava molhado e eu havia feito um rastro de gotas de água pelo chão do corredor. Hans havia deixado ordens expressas de que sob hipótese alguma Shannon poderia ficar com febre, portanto, deveria tomar banho e beber muita água. Ele levou Akira para o aeroporto, onde pegaria um voo para Tóquio a fim de visitar a família.

— Shannon? Você me escutou? — eu perguntei. Shannon estava apoiado na bancada da pia com um pote de frutas vermelhas em uma das mãos e um morango mordido na outra. Sua boca estava vermelhada, manchada e molhada. Eu engoli em seco.

— Cara, isso está fantástico — murmurou com a boca cheia. Ele voltou a morder o morango, os olhos fechados, um gemido arrastado escapando de sua garganta. Ele deixou a cabeça tombar para trás, sua boca se abriu seguido por outro gemido. Puta merda. Aquilo era desconcertante. Sua boca avermelhada era demais para mim. Eu tentei afastar aquele pensamento da minha cabeça, Shannon estava drogado e aquilo era tudo por culpa disso. Em seu estado normal, ele claramente me detestava. Shannon teve um sobressalto, como se uma ideia tivesse chegado à sua cabeça, então encurtou o espaço entre nós. — Aqui, prova.

Antes que eu pudesse reagir, Shannon segurou meu rosto e levou o morango à minha boca. Eu mordi um pedaço. Estava realmente bom e doce, mas eu presumi que os sentidos dele estivessem mais aflorados que o normal.

— Isso foi um pouco anti-higiênico — eu disse. Seus olhos grandes me encararam com curiosidade, perto demais dos meus.

— Eu vou pedir uma pizza. Ou um hambúrguer. Ou os dois.

— Não, você vai tomar banho.

Ele me ignorou.

— De que sabor você mais gosta? Eu pago. — Ele tirou o telefone da cozinha do gancho e discou alguns números. Eu arranquei o aparelho de suas mãos.

— Shannon, me escuta!

Firewood — ele disse, de repente, sério. — Eu estou quente — concluiu. — Acho que vou tirar a roupa.

— O quê?! Não, Shannon, não! — Ele segurou a barra da camisa e puxou por cima da cabeça, despindo-se e entregando a peça de roupa a mim.

— Minhas costas estão formigando, meu corpo inteiro...

Eu suspirei. Ele estava fora de controle. Estava na hora de usar o método de Hans, e eu não estava tão certa de que estava pronta para ser carinhosa... Como se fazia isso?

— Shannon — chamei, aproximando-me e colocando uma das mãos em suas costas. Eu senti um tremor correr por baixo dos meus dedos, suas costas se arrepiando imediatamente. Ele deixou um gemido escapar, baixo e rouco. Esfreguei suas costas por mais alguns segundos, observando-o o quanto aquilo o havia acalmado. Eu olhei a palma da mão que ainda tinha uma bandagem, lembrando-me da madrugada. — Você cuidou de mim, agora me deixe cuidar de você, ok?

Um ruído rouco e sensual saiu de sua garganta. Shannon se virou, olhando nos meus olhos. Seu rosto estava corado.

— Sim, por favor — ele disse com a voz arrastada antes de avançar na minha direção e passar os braços pela minha cintura, apertando-me. Minha respiração travou. Seus braços, quentes e fortes em torno de mim, colando-me contra seu corpo ainda mais quente. Eu presumi que ele queria que eu continuasse, então tornei a esfregar minhas mãos por suas costas. — Por favor, continua... Isso é tão bom, continua me tocando...

Seu cheiro estava todo sobre mim, deixando-me intoxicada com aquilo. Era bom, era tão diferente de Cold, mas era bom. Seu corpo, seus arrepios, tudo na forma como ele agia era tão carente. Aquilo estava deixando minha respiração irregular.

— Presta atenção. Você está alterado, você vai tomar banho agora.

Eu me afastei de Shannon, sentindo meu corpo imediatamente detestar aquela decisão. Shannon resmungou coisas que não fui capaz de entender e foi na direção do banheiro, retirando a calça e largando-a pelo corredor. Uau, funcionou.

A areia dos tênis misturada à água salgada transformaram o corredor e o banheiro em um ambiente inóspito, cheio de lama, e tudo que eu conseguia pensar era que raios eu vou fazer com essas roupas sujas?, considerando que cada respingo era mais uma gota de lama para limpar.

Shannon se jogou na banheira com os músculos pesados, cansado demais de quase-morrer dois dias seguidos. Eu só notei que ele estava nu quando resgatei sua cueca jogada no chão. Desviei o olhar rapidamente.

Em situações normais eu teria atirado o primeiro objeto com mais de vinte quilos em sua direção, mas aquilo era uma trégua, por Hans. Apenas e unicamente por Hans. Exausta, deixei meus ombros despencarem e virei-me para Shannon. Prendi a respiração. A cabeça apoiava-se no azulejo da parede, com os fios de cabelo molhados por uma mistura de água e lama, olhos fechados numa expressão quase dolorosa. Seu peito subia e descia em um ritmo pouco eufórico, o tronco magro, porém forte, a pele pálida tingida com alguns hematomas aqui e ali, com uma tatuagem acima da clavícula, tudo aquilo fazendo um rubor subir a minha cabeça. Eu poderia jurar que meu coração falhou uma batida. Repentinamente, a temperatura parecia muito mais elevada. Merda, mordi o lábio, sabendo que estava a um fio de perder o controle. Aquele era Shannon, e por mais que aquela genética abençoada confundisse meus batimentos cardíacos, aquele ainda era Shannon.

* * *

Tomar banho era, provavelmente, uma das melhores coisas do mundo para um maníaco de limpeza. Tirar a areia do meu corpo era tudo que eu precisava e me senti aliviada ao sentir a textura da minha pele sem sal, mas toda aquela maravilhosa sensação foi arruinada pelo peso dos acontecimentos recentes. O beijo. Passei a mão pelos lábios molhados, fechando os olhos. Não foi ele, forcei-me a repetir mentalmente, não podia ser.

Perdida em pensamentos, abri minha mochila à procura de algumas roupas secas. Meus olhos se arregalaram ao enfiar a mão na mochila praticamente vazia, a não ser por alguns livros, os favoritos que eu sempre carregava comigo, fazendo peso. Puta merda.

Pedir uma roupa emprestada a Shannon era a última coisa que eu faria nesse mundo, então a única opção era pegar uma blusa e uma calça na cômoda de Cold. Embora ele não estivesse em casa, eu deixaria um recado para quando voltasse. Ele não iria se importar. Muito. Eu acho.

Avancei na maçaneta da porta do rapaz e abri, distraidamente, sem perceber que eu não estava sozinha. Quando eu me dei conta disso, era tarde demais. Meus olhos se fixaram na bunda de Cold, que estava de costas para a porta, felizmente, me poupando a nudez da mulher de quatro à sua frente. Eu só conseguia ver que ela tinha cordas pelo corpo com nós que eu não fazia a menor ideia de como dar. Cold virou o rosto no momento em que eu bati a porta e me afastei desesperada pelo corredor.

Meu coração parecia que ia sair pela boca quando eu arrombei a porta de Shannon e a fechei atrás de mim. Por que eu entrei no quarto dele numa situação dessas? Não faço a menor ideia, mas provavelmente era o melhor lugar para se entrar. Vasculhei o ambiente à procura de Shannon. Ele estava se enrolando ao tentar vestir uma blusa. Não era tão ruim quanto encontrar alguém transando.

— Eu tenho quase certeza de que não pedi uma garota pelada no meu quarto, até porque, se fosse pedir — murmurou Shannon com a expressão demonstrando um pouco de surpresa —, eu pediria uma pizza.

— Estou ciente das suas preferências, obrigada.

Soltei o ar pela boca, tentando afastar da cabeça a cena de ter pegado Cold no flagra. Já estava prevendo o péssimo clima que iria ficar entre nós dois nos próximos dias, na melhor das hipóteses.

Na pior delas, eu iria para a rua.

— Eu não te pediria isso se não fosse extremamente necessário — confessei, limpando a garganta —, mas, você pode me emprestar alguma coisa para vestir?

Shannon gesticulou um dos ombros, desistindo de tentar vestir a blusa, e foi até seu guarda-roupa, abrindo uma das gavetas. Ele jogou uma camisa branca de algodão na minha direção e continuou revirando as peças em busca de uma peça inferior.

— Quer uma cueca também?

— Não seja imbecil — exclamei. — Isso seria anti-higiênico.

— Então fica pelada — sugeriu. Eu ergui os olhos com espanto e ele resolveu atirar uma calça de moletom na minha direção. Agarrei antes que acertasse meu rosto.

Idiota.

Senti meu rosto esquentar, principalmente por estar me submetendo a pedir uma roupa emprestada para o cara que me detestava. Enquanto eu virava do lado certo as peças de roupa, Shannon cruzou os braços e sorriu de uma forma provocativa.

— O que foi? — Arqueou a sobrancelha com um olhar sugestivo, embora eu soubesse que era efeito da droga. — Isso te faz ficar molhada?

— Até porque de molhado você entende. — Encarei Shannon por um momento e suspirei.

Ele gesticulou um “espera” estendendo a mão.

— Pode deixar, eu fecho os olhos.

O rapaz loiro virou-se de costas para mim e cobriu os olhos para reforçar que não estava olhando. Virei-me de frente para a porta e tirei a toalha, desdobrando a blusa de Shannon.

— Aliás — continuei —, por que você tem esse medo absurdo de água?

— Não é absurdo — Shannon resmungou. — Eu não debocho da sua mania obsessiva de limpar todas as coisas.

— Não é obsessiva — resmunguei de volta com a testa franzida para ninguém em questão.

— Você não consegue parar de dizer “anti-higiênico”, ou esticar repetidamente minha blusa achando que dessa forma vai desamassá-la.

Virei minha cabeça na sua direção, mas Shannon continuava de olhos fechados. Senti meu rosto queimar. Como ele sequer sabia disso? Minha mania não era obsessiva, era apenas... útil em casos como esse. A casa era uma zona, aquilo era um favor.

— Eu tenho medo de me afogar — após alguns segundos de silêncio, corrigiu-me. — É um sintoma. Um tipo de estresse pós-traumático. Começou quando eu era criança.

— Se tem medo de água, por que foi ao píer? — Vesti a camisa e ajeitei-a em meu corpo.

— Já disse, queria resolver umas questões existenciais.

— Questões essas que...?

— Dessensibilização gradual, se quer saber — disse como se estivesse dando de ombros. — Foi o que meu psicólogo aconselhou. Como eu já conheço a origem do medo, expor-me à água pode ajudar a superar... gradativamente.

— E tem ajudado?

— Não.

É claro que vai ajudar se continuar chapado toda vez que tentar, pensei, esticando a calça na minha frente com um pouco de agressividade. Eu comecei a vestir a calça e percebi que ela ficava extremamente larga na minha cintura e cairia com os primeiros cinco passos.

— O que aconteceu? — indaguei, curiosa.

— Cold tentou me afogar em uma piscina.

— Mas por que ele fez... — Virei-me de volta para Shannon, segurando a calça na cintura, e notei que ele estava de frente para mim. Um sorriso imbecil brotou em seu rosto.

— Bela bunda.

Puta merda.


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Notas finais do capítulo

A verdade é que eu estou nervosa. Foram quase 7k de palavras, c'mon. E eu sei que muitos fãs de CoDa vão ficar enraivecidos depois disso HAHAHA I regret nothing.

GLOSSÁRIO:

Dessensibilização gradual: http://psicoativo.com/2015/12/dessensibilizacao-gradual.html

Ecstasy: http://brasilescola.uol.com.br/drogas/ecstasy.htm

Vídeo do canal DrugsLab, financiado pelo governo holandês, que mostra os efeitos do ecstasy no corpo e na prática, onde eu me inspirei para escrever as cenas do Shannon: https://youtu.be/CLZKrEUGx74 (o vídeo está legendando em inglês).

✺. Participe do grupo de Desventuras no facebook, para conferir memes e brincadeiras: https://www.facebook.com/groups/asdesventurasdocaos/

Obrigada por estar acompanhando! Espero que esteja gostando. ♡