Julgamento de uma Ilusão escrita por Mirai


Capítulo 3
Obra de arte




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Assim que a viagem terminou, fui caminhando até minha casa. Minha mãe trabalhava em várias escolas, ficando fora de casa de manhã, de tarde e até, de vez em quando, à noite. Destranquei o portão enferrujado e entrei no estreito quintal, aonde tirei meus tênis e, finalmente, entrei em casa.

Deixei minha mochila em meu quarto e me direcionei ao banheiro, onde tomei um banho rápido e coloquei minhas roupas casuais. Resolvi fazer um lanche nada saudável: duas fatias de pão de forma, queijo e mortadela mal esquentados em uma sanduicheira.

Após o almoço, abri minhas redes sociais. Além de meus familiares, só havia Alexandre no bate-papo, e fiz questão de desfazer a amizade em seguida. Dei uma repaginada em meu Facebook, trocando capa, foto e atualizando minha instituição de ensino, com o nome da nova escola.

Eu me sentia renovada com essa mudança.

Fechei o Facebook e deitei em minha cama, recapitulando o meu dia escolar e lembrando das pessoas com quem falei. Karol era uma menina bem interessante e amigável e Vicente era muito tímido, embora parecesse ser uma boa pessoa.

Levantei e decidi rever a matéria, já que não tinha nada para fazer, mas acabei dormindo depois de algumas boas horas de estudo. Tive um sonho estranho, onde via Alexandre, eu e Vicente conversando, mas parecia que nada de errado havia acontecido antes.

Acordei no final da tarde e tentei ocupar o tempo assistindo televisão. Minha mãe estava demorando muito a chegar, mas essa não era a primeira vez que isso acontecia, nem a última. Esquentei a comida que ela havia feito e jantei, sozinha. Após terminar de comer, me preparei para dormir, dessa vez, no horário correto. Aquele dia havia, ao menos, acabado bem.

Após cumprir com minha rotina pré-escolar, entrei no ônibus e coloquei meus fones de ouvido para me distrair durante a viagem. Observei a paisagem pela janela, prestando atenção nas casas, nas lojas, na vida lá fora. Era engraçado como cada lugar tinha suas características, dando a impressão de que eram distantes uns dos outros.

— Que sorte, do seu lado está vazio… de novo. — ouvi alguém dizer, embora não tenha identificado pela voz pois estava com fones de ouvido — Posso me sentar?

— Ah, oi, Vicente! Nem te vi chegando, desculpa. — ri, enquanto tirava os fones — Pode sentar, não precisa pedir.

— Mesmo? — ele perguntou, surpreso, e eu assenti com a cabeça — Sabe, você é mais gentil que muitas aqui… já achou mais alguém para conversar?

— Ah, já, sim. Uma menina da outra turma, Karoline.

— Já ouvi falar dela. Uma das melhores alunas da 8B.

— Você já conversou com ela? — perguntei.

— Não, mas já ouvi muita gente falar bem dela. Eu não costumo falar com garotas. — ele disse, soltando um longo suspiro — Mas, e aí, animada para as aulas de hoje?

— O que você acha, hein?

— Pela voz… nem um pouco. Nem eu estou. Educação Física e Ciências… só torcendo para aquela professora chata faltar. — ele disse, desanimado.

— Normalmente professora de Ciências nunca falta.

— Não estou falando da de Ciências, é a de Educação Física. Que mulher chata! Ela só dá aula na quadra. Quando é na sala, são aqueles textos gigantes assim! — ele colocou os indicadores paralela e horizontalmente, indicando o tamanho do texto: nada muito grande.

— Pensando por esse lado… tomara que ela falte. — fingi que concordei com o “texto gigante”, embora estivesse realmente desapontada com o fato da maioria das aulas serem práticas.

— Tomara mesmo! Se bem que a de Ciências não fica muito atrás na chatice, não.

— Vicente, me responde uma coisa… — eu disse, não contendo minha curiosidade e mudando o assunto completamente — seus olhos são bicolores, certo?

— Ah, são sim. O direto é castanho e o outro verde… você é uma das poucas que nota! Incrível! — ele disse, com um misto de surpresa e felicidade.

— Sou detalhista, vá se acostumando!

— Tenho medo de detalhistas! — ele riu — Já notou que, quando a gente tá falando com alguém, o tempo passa voando? Nem acredito que já estamos chegando.

— Já, sim. Mas você mora perto da escola, ou seja, fica pouco tempo no ônibus…

— Sério? Sempre pareceu uma eternidade pra mim.

Apenas ri. Era engraçada a forma em que ele se comportava como uma criança de vez em quando.

Ainda era cedo quando chegamos na escola. Vicente disse que tínhamos que entrar às 7:20, sem mais, nem menos. Enquanto isso, Karol veio em minha direção e cumprimentou Vicente, que preferiu nos deixar conversar sem sua presença.

— Conseguiu alguém da sua turma pra conversar? Que bom! — ela comemorou.

— Consegui, sim. A gente se falou ontem, no ônibus. Pena que você não vai nele…

— É… mas ainda dá para a gente conversar no intervalo! Tenho aula de inglês e geografia hoje, e você?

— Educação Física e Ciências. Ele quem me passou. — ri.

— Ah, é! Tenta ver se não marcaram teste, também. Tem professor que é doido…

— Ih, ainda tem isso… caramba! Será que amanhã tem aula chata?

— Er… Bia, amanhã é sábado.

— Sério?! Como eu fui me esquecer disso?! — exclamei. Não conseguia acreditar que tudo o que havia acontecido nos últimos dias me distraiu a esse ponto.

— É a mudança repentina de escola… deve ser complicado, né?

— E como! — exclamei, mas logo abaixei o tom da minha voz — Ainda mais saindo pelo motivo que foi…

— O que aconteceu? — ela perguntou, preocupada.

— É que… tentaram me afogar… na piscina da escola… — eu tentava tomar coragem para dizer tudo de uma vez — o pior é que o “filme de Hollywood” foi dirigido pelo meu melhor, e único, amigo daquela escola. — concluí, com dificuldade.

— Credo! — ela disse, espantada — Tomara que esse menino nunca mais apareça na sua frente!

O sinal de entrada tocou, cortando nosso assunto. As escadas estavam, por algum milagre do destino, quase vazias, o que me surpreendeu bastante. Nos despedimos e cada uma foi para sua sala.

Coloquei minha mochila na mesma carteira do dia anterior e esperei Vicente, que não demorou muito. Ele colocou sua mochila na carteira atrás da minha e puxou assunto.

— Sério que vocês não se conheciam antes? — ele me perguntou, se referindo à Karol.

— Sério mesmo! A gente se parece pra caramba! — me animei um pouco. Não adiantava de nada sofrer por coisas que já aconteceram.

— Vocês parecem até irmãs… mudando de assunto, já tem o horário de aula?

— Ainda não. Ia até te pedir agora! Você lê mentes? — brinquei.

— Não, mas estou quase lá. — respondeu, rindo, enquanto pegava seu caderno — Aqui!

— Muito obrigada!

Peguei meu caderno para anotar o quadro de horários. A letra dele era impecável, superava até a minha em alguns momentos. Dei uma olhada nas matérias para conferir se o conteúdo estava realmente igualado, o que, por sorte, estava. Continuei folheando o caderno de Vicente, mas, sem que me desse conta, uma folha dobrada caiu no meu colo. Não contendo a curiosidade, a desdobrei para ver seu conteúdo e encontrei um desenho muito bonito. Era uma paisagem com riqueza de detalhes, mas ainda não estava colorida. Acabei não aguentando e perguntei o porquê dele não ter terminado aquela obra de arte.

— Ah, porque me lembra algo que eu não gosto muito… — ele disse, cabisbaixo — até hoje, ninguém tinha mostrado interesse por isso além “dela”, então eu abandonei o projeto.

— Vicente, me perdoe por perguntar, mas… o que aconteceu com “ela”? — perguntei, enquanto notei que seus olhos marejaram — Não, não precisa responder se você não quiser, eu não…

— Ela se suicidou. — ele disse, em um tom imensamente triste — Eu gosto muito de falar dela. Ela se chamava Nádia e era minha única amiga, que me incentivava a desenhar e a me dedicar mais em tudo que eu fazia. Desde quando ela morreu, todo mundo começou a me evitar, principalmente as meninas. Diziam que eu atraía má sorte e que ela se matou por isso. Eu não ia contar nada disso a você, mas realmente seria muito falso de minha parte não expor a verdade… — ele coçou a cabeça, sem graça.

Não pude deixar de me sentir um pouco mal de o ter feito relembrar toda essa situação, afinal, se comparar o que passei com Alexandre com o que aconteceu com Vicente…

… meu sofrimento não era nada.

— Eu acho que ela ficaria feliz em ver esse desenho terminado! — eu disse, por fim, com um sorriso quase destorcido pelo choro que consegui controlar.

Vicente sorriu, embora não expressasse muita felicidade, e pegou uma caixa de lápis de cor Faber Castel de 72 cores que estava em sua mochila. Eu sempre quis ter uma dessas, mas não tinha onde usar. Eram tantas cores, tantas possibilidades de desenhos…

— Nunca pensei que alguém ficasse assim diante de uma caixa de lápis de cor tão gasta. Você nunca usou uma de 72 cores, não? — ele perguntou, surpreso. Acho que meu entusiasmo ficou evidente.

— Não… Sempre fiquei querendo. — brinquei.

— Eles pediram para comprar essa caixa logo no começo do ano. A professora é bem exigente, ela sempre reclama dos outros alunos, mas eu, pelo menos, consigo fazer alguma coisa apresentável na aula dela — ele sorriu discretamente — Que horas são? Ou melhor, cadê a professora?

— São — peguei meu celular rapidamente e conferi as horas — 07:27. Se ela chegar eu te aviso, se bem que ela só pode ter faltado… mas e o resto da turma?

— Ah, caramba, a professora não subiu… vai querer ir pra quadra? É Educação Física.

— Eu não. Você vai? — perguntei.

— Também não.

Ele pegou vários lápis de cor verde e dois tons de marrom para terminar as árvores e o solo da ilustração. A maneira com que ele pintava denunciava que não fazia aquilo há tempos, mas podia sentir que dava seu melhor em cada risco. Ele ficou quase o tempo de aula inteirinho para terminar o desenho, mas valeu muito a pena.

— Que lindo… — falei, enquanto admirava o resultado final.

— Muito obrigado… — ele sussurrou, com a voz embargada pelo choro.

— Vicente? Você…

— Não se esquenta, não é por tristeza, é só… uma espécie de alívio. É como se isso — ele apontou para o desenho que acabara de fazer — estivesse pesando meu coração de uma maneira que… eu não consigo explicar!

— Não se preocupe com isso. O importante é que você está se sentindo bem agora. — respondi, tentando me mostrar forte.

— Mesmo? — ele perguntou, me fazendo assentir com um gesto. O sorriso dele não tinha preço. Para falar a verdade, o sorriso de ninguém tem preço.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem! ^^



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