Julgamento de uma Ilusão escrita por Mirai


Capítulo 4
Laços fortalecidos




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Ao tocar o sinal para o intervalo, Vicente disse que queria ficar sozinho. Respeitando sua decisão, desci as escadas rapidamente, na esperança de encontrar Karol, mas infelizmente não tive sucesso. Comprei um lanche e sentei-me em um banco qualquer para observar o céu nublado. Estava me sentindo diferente, como se a Beatriz de uns dias atrás não fosse mais a desse momento. Perdida em pensamentos, não percebi alguém se aproximar de mim.

— Uma menina da turma da Karol disse que ela passou mal e foi pra casa.

— Hã? Ah, é você, Vicente… — respondi, um pouco surpresa.

— Quem mais seria? — ele sorriu, mas não conseguia desviar o foco de seu óculos manchado pelas lágrimas — Mudando de assunto… o céu nublado assim é bom para desenhar. Eu costumava desenhar céu limpo, mas vamos mudar um pouco hoje. Ainda bem que trouxe meu caderno.

— Ué, mas você não disse que queria ficar sozinho? — perguntei, notando em seguida que ele poderia interpretar de maneira errada — Não que eu esteja…

— É, mas eu te vi sozinha e… seríamos dois sozinhos. — ele respondeu, um sorriso singelo no rosto — Não se preocupa, eu entendi sua pergunta. — ele disse, rindo.

— Que bom… — eu disse, um tanto envergonhada e aliviada. Eu tinha que aprender a decifrá-lo de vez em quando.

— Por que não conta um pouco sobre você? — ele questionou, logo após de sentar ao meu lado — É que, comparado a tudo o que eu contei hoje, eu não sei quase nada sobre você…

— Ah, Vicente, minhas histórias escolares não são das melhores. Eu… nunca tive um amigo de verdade, que não me decepcionasse depois… — ele me olhou como quem estivesse prestes a soltar um “Sério?” — Só nesse ano que eu comecei a conversar com um menino da outra escola. Ele até me tratava bem, mas… — disse, abaixando a cabeça. Todas as lembranças voltavam à tona, me impossibilitando de falar. Eu não queria passar a imagem de uma pessoa fraca para alguém que, poucos minutos atrás, contou algo ainda pior do que aconteceu comigo.

Ele abaixou a cabeça, provavelmente imaginando alguma coisa de ruim que possa ter ocorrido. Após um momento, ele sorriu discretamente e disse.

— Isso tudo ainda deve te deixar magoada…

— Eu… tenho medo de tudo acontecer de novo… — murmurei, levantando um pouco a cabeça, mas sem olhá-lo nos olhos.

— Não precisa ter medo. Pode ter certeza que eu e a Karol não vamos deixar ninguém te magoar. — ele abaixou um pouco a cabeça para me ver, o que me fez dar um leve sorriso. Era consolador saber que alguém pode te proteger quando vulnerável.

O sinal de término de intervalo tocou. Levantamos juntos e fomos em direção à sala de aula, conversando sobre os professores e outros assuntos banais. Era a aula de Ciências.

Após esse dia, meus laços com Karol e com Vicente aumentaram bastante. Ela era como uma irmã, sempre dedicada e gentil, enquanto Vicente era um grande apoio para mim, demonstrando um pouco de preocupação e estando sempre disposto a me ajudar.

Foram semanas de grande tranquilidade, até que as provas se iniciaram. Eu e Vicente não estávamos nada confiantes, assim que revisamos as matérias no ônibus e, quando chegamos, Karol nos ajudou antes de entrar na sala. Para piorar a tensão, a primeira prova era de Matemática.

Sabendo o quão tensas eram as provas dessa matéria na minha outra escola, eu coloquei meu material sobre uma das carteiras próximas ao professor e, em seguida, Vicente se sentou na carteira atrás da minha. Antes que ele pudesse dizer algo, eu perguntei:

— Como a turma fica nas provas? Eles… colam?

— Bom… os professores tomam conta, mas sempre tem um que consegue… — ele respondeu, respirando fundo — o pior é antes da prova…

Quando os demais entraram, pude entender o que Vicente quis dizer: era impressionante o desespero dos alunos para tentar fixar a matéria. Grupos de estudo eram formados em cima da hora, revisões passavam de mão em mão… era surpreendente.

— Você parece surpresa… não era assim na outra escola? — ele perguntou, confuso.

— Não, muitos não se importavam com as provas… — respondi, enquanto lembrava de várias situações de dias de prova que passei lá — Vicente… aqui tem brigas por notas?

— Não que eu saiba. — ele disse, passando a mão pelos cabelos e tirando a franja da frente dos olhos — Aqui muitos só querem passar de série… por que? Qual era sua média na outra escola?

— N-nenhum motivo em especial, só curiosidade! — respondi, um tanto depressa demais — E as minhas notas… são boas, assim, mais de seis. — menti.

— Não precisa sentir vergonha! — ele sorriu — Você não parece ser do tipo que tira nota baixa.

Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, o professor chegou, fazendo que todas as conversas acabassem. As folhas em suas mãos pareciam até sentenças de morte de cada um dos alunos presentes e muitos engoliram em seco. Eu apenas revisei mentalmente o conteúdo, enquanto Vicente pegou sua folha para dar “uma última lida”. O mestre apenas permitiu que estudássemos por mais alguns minutos.

— Eu não consigo entender direito essas contas com trinômio, e você? — Vicente perguntou, enquanto olhava a sua revisão.

— Eu até peguei o jeito com isso aí. É só o professor não inovar muito. — respondi.

— Eu não entendi direito… — ele disse, triste.

— Quer que eu te explique? — ofereci, embora achasse que explicava muito mal.

— E você explicaria?

— Se eu tô oferecendo, né…?

— Engraçadinha! — ele disse, fingindo estar irritado, o que me fez rir — Por favor. Se eu tirar nota baixa, vou ouvir um sermão daqueles…

— Seus pais cobram demais de você? — perguntei, preocupada.

— Meus tios. Meus pais não tinham condições de me criar, então passaram a guarda.

— Ah, sim… — respondi, me arrependendo de ter tocado em um assunto um tanto delicado por acidente.

— Só mais 10 minutos! — o mestre proferiu, batendo na mesa.

— Ah, que tipo de tortura é essa?! — Vicente exclamou, junto a vários alunos que reclamavam da mesma coisa.

— Vamos, deixa eu te explicar antes que o tempo acabe. — eu disse e o de íris bicolores assentiu com um gesto.

Comecei pelo mais fácil, pois Vicente era meio enrolado com matemática, mas ao menos não tinha vergonha de assumir. Eu acho que sanei todas as dúvidas dele, que eram muitas e, assim que terminamos, o professor iniciou a distribuição das provas. Desejamos boa sorte um ao outro e iniciamos a avaliação.

Para mim, a prova foi tranquila, mas talvez teria sido melhor se não fosse por algumas contas extensas. Quando o professor liberou quem já havia terminado a avaliação, notei que Vicente ainda estava preso na última questão. Pedi permissão para esperá-lo ainda na sala e olhei os arredores: havia mais dois meninos e uma garota, todos eles aparentavam estar desesperados.

Isso acontecia na outra escola. Era o resultado de quase ninguém estudar.

— Você tá bem? — ouvi Vicente falar, me despertando — Aconteceu alguma coisa errada?

— Não, não precisa se preocupar — desconversei — Vamos descer?

Vicente assentiu e, quando íamos para a quadra, encontramos Karol na escada. Nos reunimos para comprar um lanche e sentamos para debater sobre as provas. Com o passar dos minutos, o sinal tocou, assinalando a hora de todos irem embora. Nos despedimos de Karol e fomos para o ônibus, que partiu rapidamente. Seguindo essa rotina, nós terminamos a semana de provas.

Havia chegado o dia da entrega das provas aos alunos. Ainda que quisesse analisar minhas notas, como sempre fazia em todos os bimestres, uma espécie de medo de ser julgada por elas crescia dentro de mim.

Parecia que eu nunca ia esquecer aquilo tudo.

Os dias passaram voando e, quando me dei conta, já estava fazendo as últimas provas do ano. No último dia de aula, muitos alunos choravam, outros torciam para que, no ano seguinte, ficassem na mesma turma. Conversei com Karol e Vicente e prometemos que nos falaríamos durante as férias por redes sociais. Bem, ao menos cumprimos nossa promessa, mesmo com dificuldade. Nunca conseguíamos marcar um horário para entrar juntos.

Ainda assim, esse fim de ano e essas férias foram os mais tranquilos que eu já tive.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem!



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