Anjo das Trevas escrita por Elvish Song


Capítulo 31
Nas profundezas de Paris


Notas iniciais do capítulo

Olá, moças! Venho aqui com mais um capítulo. Talvez esteja um pouco mórbido (de repente baixou um Erik em mim... Vai entender), mas achei que as reflexões ficaram legais. É mais um gancho para o seguimento da história, mas ajuda a lançar uma luz nas trevas da mente de Erik. Espero que gostem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/662451/chapter/31

POV Gabrielle

Peguei Alain do berço que Annika pusera ao lado de sua cama; ela não dormia mais nos alojamentos, e sim, num quarto próprio, pequeno e acolhedor, com janelas que davam direto para o nascer do Sol. A desgraça nisso era que o bebê parecia saber exatamente quando o Sol nascia, mesmo com as cortinas fechadas, e tratava de acordar meio teatro com seus berros, se não o pegássemos no colo. Annie ralhava comigo, dizendo que eu o mimava, mas simplesmente não conseguia deixa-lo chorar...

Naqueles dois meses, desde que o bebê viera para nossos cuidados, Erik voltara a residir na Casa do Lago – agora totalmente consertada por ele e Annie. Ela, por sua vez, passava muitas noites com ele, nos subterrâneos, e nossos finais de semana geralmente eram passados no sobrado ou, mais raramente, no casarão de Renard e nossos outros amigos, que também terminara de ser reformado. Por ideia e ajuda de Annika, o grupo já não vivia apenas de seus crimes, embora fosse impossível demovê-los totalmente; Tarim conseguira trabalho como ourives, e Sarah – da qual ainda não gosto muito, verdade seja dita – continuava dançando nas ruas e em festas mais modestas, tendo rejeitado a oferta de tentar um lugar no corpo de balé. Miguel, muito hábil com cavalos, começara a trabalhar esporadicamente num estábulo, e Jean começara a trabalhar no teatro, como montador de cenário, graças a sua força física (embora eu suspeite que sua vinda para a Ópera seja devida mais a seu interesse em Meg, do que em um trabalho por si mesmo). Claude conseguira serviços ocasionais como guarda-costas, no que sua simples aparência intimidadora já ajudava. Charles continuava em seus clubes de luta, no que era muito bom, e estava recebendo aulas de esgrima de um professor bastante improvável: Erik.

Mas aquele que mais me interessava, Renard, seguira outro caminho, mais perigoso: não obtivera a alcunha de Príncipe das Ruas à toa, e sua influência se estendia a muitas pessoas. Por conhecer pessoas de dentro das delegacias, ocasionalmente entregava um fora-da-lei que o desobedecesse, e era inclemente para com os assassinos e violadores que, se fossem descobertos por ele. Já o fazia antes, mas parecia que, agora, sem ter de se responsabilizar por todo o grupo de rapazes, tornara-se ainda mais influente. Logo, logo, seria o Rei das Ruas. E por mais que minha mente racional gritasse para eu me livrar dos sentimentos que nutria por ele, uma vez que meu querido raposo acabaria por encontrar a morte numa ponta de faca ou tiro de revólver, eu só conseguia me apaixonar cada vez mais. E foi perdida em divagações que ouvi o choro de meu sobrinho.

Era meio da tarde, e Annika e eu estávamos sentadas na cama, lendo juntas no intervalo de nossas funções – como havíamos feito desde que me entendia por gente – quando o pequeno começara a chorar. Entreguei-o a minha irmã, que o pegou com um sorriso, verificou se ele havia sujado as fraldas e me pediu para brincar com ele enquanto preparava a mamadeira do bebê; não precisou pedir duas vezes, pois eu realmente amava aquela coisinha branca, de cabelos pretos e olhos cinzentos que abria lindos sorrisos quando falava com ele.

Annika estivera tentando adotar o bebê, mas o fato de ser solteira dificultava tudo: não era permitido a uma mulher solteira adotar uma criança, de modo que ela precisara novamente subornar um oficial para que o bebê fosse, então, registrado como seu filho. Agora, meu sobrinho era Alain Anjou, e todos no teatro se derretiam pelo molequinho; a desculpa dada por minha irmã fora a mais próxima da verdade: tratava-se do filho de uma amiga muito próxima, que falecera subitamente. A mãe não tinha parentes, nem posses, então Annie o tomara como sendo seu. Fora o suficiente para todos. Exceto, é claro, para Madame Giry, que ficou sabendo da história real, tal e qual se passara.

Ouvi a porta do quarto se abrir, e pensei que fosse Annie, ficando bastante surpresa ao ver Erik entrar. Ele tomou a liberdade de se sentar na cama – uma vez que era amante de minha irmã há três meses, não havia motivo para não o fazer – e brincou com Alain:

— E então, rapaz? Como está? Cuidando das garotas, por mim? – aquele traidorzinho de seis meses praticamente saltou de meu colo para o do Fantasma, que o pegou com um sorriso. Erik amava aquele menino, e tinha com ele um carinho e ternura que eu nunca vira nele, antes. Isso me deixava feliz por ambos: pelo bebê, porque encontrara em meu mentor um verdadeiro pai, e por meu mestre, porque conseguia, aos poucos, escapar ao medo de amar que sempre nutrira. O modo como brincava com o pequenino, já mais à vontade após dois meses de convivência, mostrava as mudanças operadas pela vinda de Alain a nossas vidas.

— Isso! – protestei – ignorem-me, os dois! – fechei a cara, fingindo estar emburrada, o que fez meu professor me dar um abraço:

— Perdoe-me, Gabrielle. Como está, hoje?

— Sentindo-me traída por Alain, que se joga em seu colo sem nem hesitar! Mas quem se reveza com Annie para cuidar dele, à noite, sou eu!

Erik riu, tirando a mão de Alain de sua máscara, antes que ele a arrancasse outra vez, como já fizera antes. Ato contínuo, minha irmã voltou ao quarto, com a mamadeira do bebê; ela cumprimentou Erik com um beijo e um sorriso, e acomodou-se na cama para dar de mamar ao menino.

— Posso fazer isso, hoje? – pedi, ao que minha querida acedeu, colocando meu sobrinho em meus braços. Ele começou a mamar com voracidade, e não resisti a brincar – quando estou com a mamadeira, você me quer, não é, seu interesseiro? - enquanto alimentava Alain, percebi o olhar tenso e preocupado de Erik, e creio que Annie também deva ter percebido, pois ela perguntou:

— O que houve, meu anjo? – ele apenas deu de ombros e, numa das suas habituais oscilações de humor, deixou o quarto sem falar nada. Bufando, Annie declarou – cuide de Alain, que vou atrás dele. O que será, desta vez?

Enquanto aqueles dois loucos que eram minha irmã e meu mentor iam se entender, eu fiquei ocupada com Alain; ele era, de longe, a pessoa mais fácil de lidar naquela estranha família que havíamos constituído.

POV Narrador

Annika alcançou o Fantasma, que escalara as tesouras de sustentação do teto e se sentara numa viga cruzada sobre o palco. Imaginando o que perturbaria a mente do homem, agora, perguntou:

— O que aconteceu?

— Nada. –respondeu ele, um tanto rude.

— Eu conheço você; e quando diz “nada”, significa: problemas que não quero relatar, mas que estão me matando internamente. – riu-se ela, sentando-se ao lado do músico e o abraçando – ficou triste quando olhou para Alain.

Erik deu de ombros, e a pianista teve uma ideia; divertida, declarou:

— Venha comigo. Quero lhe mostrar uma coisa que, tenho certeza, vai adorar! – e o puxou pela mão, equilibrando-se pela viga em direção às cornijas, pra descer do lugar onde estavam. Entraram numa das passagens de Erik (as quais Annika já conhecia razoavelmente bem), e desceram até os túneis abaixo da Ópera Garnier. Contudo, em vez de seguir pelos caminhos que conduziriam à Casa do Lago, ela enveredou por escoadouros e tubulações desativadas, o que confundiu Erik.

— Aonde estamos indo, Annika?

— Você vai ver! – ela se espremeu por uma passagem estreita, que exigiu todo o esforço de Erik para ir atrás da jovem. Agora já sabia aonde ela ia, mas seria mesmo para o lugar que estava pensando? Afinal, o que haveria lá, que ela quisesse lhe mostrar?

Porém, o caminho realmente levava para o lugar conhecido pelo Fantasma: as passagens e túneis sucessivos abriram-se, afinal, numa caverna mais larga, forrada com caveiras humanas. Todas as paredes, do chão ao teto, forradas de crânios humanos, e nichos recheados de ossadas já totalmente brancas... Uma catacumba.

— O que estamos fazendo nas catacumbas, Annie? – perguntou ele, confuso. Aquele sempre fora um lugar onde gostara de vir, onde o silêncio da morte lhe dava paz e serenidade nos piores momentos. De algum modo, sempre se reconfortara na ideia da própria mortalidade, e em ver aquilo que os seres se tornavam, após a morte: apenas ossos descarnados.

— Queria que visse isso. – respondeu a moça, levemente ofegante pela caminhada rápida – as catacumbas. Algumas existem desde a dominação romana, enquanto outras, bem menos charmosas, como esta aqui, foram construídas há poucas décadas, por causa da superlotação dos cemitérios.

— E o que queria me mostrar?

— Queria um lugar tranquilo onde pudéssemos conversar. Os mortos não têm ouvidos, afinal. – ela sorriu e se sentou em meio à caverna, parecendo extremamente à vontade diante dos sorrisos espectrais de milhares de caveiras, cujas órbitas vazias pareciam se fixar em ambos. Erik deu um leve sorriso, e sentou-se ao lado dela:

— Não tem medo? Não lhe perturba o olhar vazio da morte? – ele pegou um crânio no chão, virando-o para a mulher, que sorriu e o tomou nas mãos, revirando-o com fascínio:

— Sempre gostei deste lugar. Foi Renard quem mo apresentou, e fiquei tão... Encantada!

— encantada? – Mais um tom sombrio da alma da mulher, que o Anjo da Música ainda não conhecia. Quantas surpresas mais aquela garota guardaria?

— Sim. Quer dizer, olhe isso: é grandioso. Existe algo de tão igualitário na morte... Não importa quem sejamos, o que tenhamos feito, ela é nosso destino final. A meta final de tudo. – segurou o crânio nas mãos quase com reverência – quem terá sido esta pessoa? Homem? Mulher? Nobre ou mendigo? – ela sorriu – não importa. Este aqui é igual àquele – ela apontou para outro crânio, na parede – que é igual a todos os outros, aqui. E tudo o que resta é nada. Nada, e ainda assim, fazem parte de uma obra maravilhosa, em sua igualitária insignificância. Tijolos para uma construção. Os mortos sustentando os vivos acima, esquecidos, mas nem por isso inexistentes.

— A morte sempre foi, para mim, uma ideia consoladora. – respondeu Erik – mas não a perturba?

— Não. Os mortos são melhor companhia que os vivos, muitas vezes; mais silenciosos, mais serenos... Estão em paz. Eu vinha muito aqui, quando precisava de forças. – ela se aninhou contra o músico – costumamos lamentar os que partem, mas devíamos antes lamentar os que ficam. Para os que morrem, a dor terminou. E ainda assim, continuamos lutando para estender nossas jornadas ao máximo.

— Mas é apenas um breve instante entre o nascer e o morrer, não importa quanto tempo dure. – concluiu o Fantasma – não faz diferença. E, se vamos todos morrer, por que nos importar quando, ou o que fazemos antes disso?

— Responda-me você. Por que se preocupa? – ela deitou a cabeça no ombro do artista – agora diga-me, Erik: diante disso, diante da morte, e da aniquilação que ela representa... Por que se preocupa? O que o preocupa?

— Acho que eu não seria um morto em paz, Annika. – respondeu ele, acariciando a mão da moça – com tudo o que carrego dentro de mim, nem sei se poderia morrer... Acho que poderia virar um espectro, vagando para sempre na noite.

— Por quê? – a moça era insistente, e isso arrancou um sorriso tenso e triste do Fantasma.

— Acho que todo ser tem medo da morte. É por isso que nos ocupamos de nossos atos, em vida... Queremos ser lembrados, como se a memória pudesse, de algum modo, preservar aquilo que somos, aquilo que fomos. Como Aquiles, Ajax, Heitor, que sobreviveram nas lendas, nós queremos sobreviver à própria morte, na lembrança dos outros. Creio que se resuma a isso: como seremos lembrados, quando partirmos.

— E pesa em sua alma o modo como será lembrado?

— Não pesava, até Alain... – ele encarou a mulher – tenho muitos crimes em minha alma, Annika, e agora reconheço. Nunca me importei. Você começou a mudar isso, com sua luz, mas o bebê... – ele pigarreou - Agora, toda vez que olho para aquele menino, sinto-me imundo e indigno. Lembro-me de todas as coisas terríveis que fiz e, olhando para a inocência dele, só consigo pensar: como posso encarar este menino? Como posso ajudar você a cuidar dele? Como alimentar coisas boas nele, quando eu mesmo estou podre, por dentro? Quando sou tão carregado de erros e escuridão?

— Nós dois somos, Erik... Mas não nos resumimos a isso. – a mulher o abraçou ternamente – somos aquilo que escolhemos ser. O agora é o primeiro segundo do resto de nossas vidas. Se não está contente com seu passado, mude seu futuro.

— É o que mais quero, Annie. Um futuro. Um futuro com você, com Gabrielle, e Alain... Um futuro onde minhas mãos não estejam sujas de sangue. Mas como fazer isso? – ele se levantou e começou a perambular pelo ossuário – por onde começar a pedir perdão? E pedir perdão a quem? – ele olhou para cima – não sou religioso, mas, às vezes, gostaria que houvesse alguém que pudesse me perdoar, me eximir de minhas falhas... Permitir-me ser um novo homem.

— Eu encontrei perdão naqueles a quem amo. – disse a moça, pousando as mãos ternamente no braço do Fantasma – você, Gabrielle, Madame Giry, os meninos do beco... Cada um de vocês é meu perdão, é uma razão que me torna cada dia mais uma mulher diferente da que fui. Meus acertos não vão apagar meus erros, mas talvez deixem a lembrança de alguém melhor, quando eu me for. O que lhe traria perdão, Erik?

Ele pensou longamente, antes de responder:

— Errei com muitas pessoas, mas... Creio que exista uma com a qual eu devo me retratar. Só não sei como fazê-lo. Não sei se tenho coragem suficiente para fazê-lo.

A pianista o encarou intensamente, seus olhos de gelo mergulhando nos olhos dourados dele, as duas cores parecendo se fundir, fagulhas e chamas se acendendo entre ambos quando ela afirmou:

— Se não tiver coragem, tome a minha. Quando as forças lhe faltarem, eu estarei ao seu lado para puxá-lo comigo. Não importa o que precise fazer, Erik Destler... Eu estarei com você.

Aquelas palavras tão sinceras, de tão puro amor e confiança, afirmando não apenas o amor de casal, mas a cumplicidade e amizade que se instalara entre ambos, tocou o coração do Anjo. Como acontecia todos os dias, ele redescobriu seu amor e paixão por ela e, tendo apenas os mortos como testemunhas, abraçou-a pela cintura, beijou-a e declarou:

— Eu amo você, Annika Anjou. – e, numa atitude que parecia mais do que apropriada ao sombrio Fantasma da Ópera, ajoelhou-se no meio da cripta, seus olhos cheios de angústia, esperança, desejo, medo – será que, um dia, quando eu me fizer digno de tal honra e privilégio, você me concederia a felicidade de ser minha esposa?

Espantada, chocada e comovida, sem jamais ter esperado ouvir aquelas palavras do homem a quem aprendera a amar tão loucamente, naqueles quase três anos de convívio, Annika abriu um lindo sorriso e, delicadamente, tirou a máscara do homem. Queria vê-lo tal como era, exatamente como o amava. Ajoelhando-se diante dele, beijou-o com paixão, e sussurrou:

— Mas você já é digno, meu amor. E não haverá maior felicidade do que chama-lo de meu marido. – os lábios de ambos se selaram e, na escuridão da catacumba, iluminados apenas pela lanterna tremulante, consumaram seu amor. Ninguém mais entenderia tal ato... Apenas eles dois, tão diferentes e tão iguais, unidos no amor, na música e nas trevas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Gostaram? Viajei muito? Espero não ter chocado ninguém com esse final... #medinhodasreacoes
Espero ansiosamente as reviews, e cruzo os dedinhos para que não me abandonem, achando esta cena muito nonsense.
kisses, amores!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Anjo das Trevas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.