Anjo das Trevas escrita por Elvish Song


Capítulo 32
Conversa noturna


Notas iniciais do capítulo

Oláááááá! Hoje, temos um capítulo inteiro de POV Gabrielle. Não está muito agitado, nem nada, mas é pra dar fôlego a vocês, já que o próximo pode arrancar algumas lágrimas, por aí. Espero que gostem!



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POV Gabrielle

Madame Giry entrou sem aviso no alojamento de moças; em meio a várias meninas adormecidas, eu ainda estava acordada, desenhando à luz de velas. Desenhar era uma de meus hobbies, mas também um de meus talentos, algo que eu fazia realmente bem. E, no momento, eu desenhava o rosto de Renard: ele estivera comigo por toda a tarde – estávamos nos tornando ainda mais próximos, nos últimos meses – e, tenho de admitir, eu não conseguia tirá-lo de minha cabeça. Ao ver Madame, porém, temi que ela me repreendesse por ainda não estar dormindo, mas já era tarde para fingir que o fazia. Ela veio até mim, e sussurrou:

— Ainda acordada, Gabrielle? – não havia censura em sua voz, apenas preocupação, o que me aliviou.

— Estou sem sono, Madame.

— Estou vendo – mas que estranho! Madame Giry geralmente era tão rígida conosco... Por que não havia ainda me dado uma bronca? – Já que também está sem sono, podemos ir à cozinha, beber algo. O que acha?

Dei um sorriso e me levantei da cama, vestindo meu penhoar para deixar o alojamento; aquilo estava me parecendo muito estranho, mas não ia recusar. Adoro a Sra. Giry, que acabou se tornando, para Annie e para mim, uma verdadeira mãe, e podia ver, agora, que ela desejava falar comigo. Sobre o que seria?

Descemos juntas até a cozinha. Eu olhava de soslaio para minha tutora, tentando imaginar o que poderia tê-la tirado da cama (pois, juro, era a primeira vez que eu a via de camisola, penhoar e cabelos soltos!) tão tarde, para ir ter comigo. Enquanto ela procurava pelo chá de camomila, eu acendi o fogo e pus água para ferver; enfim, sentamo-nos juntas numa mesa, e perguntei, tentando iniciar a conversa:

— Quanto tempo acha que Annie e Erik ficarão fora? É estranho não os ter aqui.

— Eles foram à Normandia, terra natal de Erik. Ele tem assuntos pendentes por lá, mas não devem se demorar. Certamente, voltarão em menos de uma semana.

Ficamos algum tempo em silêncio: ela não estava querendo falar sobre Erik e Annika, mas também hesitava em se dirigir a mim diretamente. Sempre me comovia a preocupação de Madame Giry em não magoar Annika ou eu, medindo sempre o que e como diria. Enfim, fui eu quem comecei:

— Qual o problema, Madame? Parece que há algo errado...

— Acho que perdi o sono, criança. – respondeu ela.

— Tem algo a ver com Meg? – era a única possibilidade que me ocorria, para tirar a calma daquela mulher tão séria e estável.

— Tem, sim. E também com você. – levei um susto e quase caí da cadeira: COMIGO?! Mas o que eu fizera, agora? Não, eu não era nenhum anjinho, e adorava usar as bombas de fumaça e cortinas de fogo de Erik para causar confusões (ele me ensinara), bem como pregava peças nos outros (juro que os cupins nos móveis de cerejeira do Sr. Andres, e as traças no cenário de La Bohéme não foram culpa minha!), mas... Certamente não tinha a ver com coisas escondidas, ou travessuras pelo teatro.

— Fizemos algo errado, senhora?

— Eu gostaria de saber, menina. – ela mexeu preguiçosamente o próprio chá, sem bebê-lo, antes de me fitar intensamente – o que acha de seu amigo, Jean?

— Jean, o montador de cenários?

— Que logo será promovido a técnico de palco. Ele mesmo.

— É um rapaz excelente. Conheço-o desde pequena e, mesmo que ele tenha sido um batedor de carteiras, isso não influencia seu caráter. Um pouco rude, talvez, e meio sem modos, mas... É meu amigo, e confiaria minha vida a ele.

— Confiaria sua filha a ele, se tivesse uma? – compreendi de imediato: Meg também estava mostrando interesse em Jean, e isso preocupava Madame, especialmente quando sua filha nunca tivera qualquer interesse romântico, antes, mesmo já tendo passado da idade de se casar. Jean, por mais amigável que fosse, era um rapaz das ruas, um ladino (não seria hipócrita de dizer que ele nunca mais roubara carteiras, ou fraudara documentos), e não tinha muito que oferecer a Meg. Isso certamente era de tirar o sono de uma mãe... Mesmo gostando de Jean, também eu não tinha certeza se a vida que ele levava seria compatível com a doce Meg Giry, assim como não podia afirmar que ele endireitaria e deixaria tal vida, para estar ao lado dela. Os rapazes do beco eram... Complicados.

— Sei o que está pensando, Madame Giry – respondi, enfim. – Ele é uma boa pessoa, mas isso não significa que fará Meg feliz.

— Ela nunca amou ninguém... E agora veio me dizer que está atraída por esse moço. Meg não é leviana, nunca perdeu tempo com namoricos e paixonites, e não me diria isso se não fosse verdade... Mas o que devo fazer? Permitir? Como ele poderia cuidar dela, com a vida que tem? E mesmo que deixasse a vida de ladino, seria capaz de fazer minha filha feliz? Eles são muito diferentes, Gabrielle.

— A senhora tem razão, nisso. Não posso falar por Jean, mas posso lhe dizer uma coisa: ele nunca mente. Não sabe mentir, nem dissimular. Por que a senhora não fala diretamente com ele? Se Jean disser que está disposto a fazer algo, então creia que ele realmente está. Porém, se suas intenções não forem sérias, ele também dirá. Ou ficará calado, o que é a mesma coisa. – beberiquei meu chá, pensativa – posso falar com ele, se quiser?

— Ah, não, querida! – ela meneou a cabeça – isso é meu dever, como mãe. Agradeço muito por suas sugestões, e isso me leva ao segundo assunto da noite.

— segundo assunto? – receei o que ela tinha a dizer.

— Sim, é claro; preocupo-me com todas as minhas meninas. – ela foi bastante direta - Qual é o seu envolvimento com o garoto Renard?

Gelei ao ouvir aquela pergunta: como responder? Renard era meu melhor amigo, fora quase meu irmão – ainda o era, para Annika – e nos ajudara numa época em que éramos invisíveis a todos os demais... Ele me vira crescer, e eu o vira se tornar de menino em homem. Éramos amigos, acima de tudo, mas... Já não éramos apenas isso, éramos? Pelo menos de minha parte, havia algo a mais. E da parte dele... Eu queria muito crer que nossa aproximação se devia a um sentimento mútuo. Podia ser ilusão, eu sei, mas era no que eu queria acreditar.

— Somos amigos, Madame. – respondi, enfim. Não se tratava de mentira.

— Mas não apenas isso, não é, Gabrielle? – eu a olhei, levemente confusa, e ela continuou – eu vejo como olha para ele, e como ele olha para você. Se o rapaz ainda não fez nenhum avanço em sua direção, foi por profundo respeito a você e a sua irmã, e não, por falta de atração.  – meu coração bateu depressa com tais palavras, alegre demais para descrever, e creio que minha expressão também tenha se animado, pois ela prosseguiu – e isso me preocupa tanto quanto o romance entre minha filha e Jean.

Fiquei indignada com aquilo: estávamos falando de Renard! Renard, que JAMAIS tivera em minha direção um único gesto desrespeitoso ou indigno! Fiquei realmente brava, mas meu respeito por Madame Giry impediu-me de sair dali e bater a porta, como queria fazer. Em vez disso, retruquei:

— Não entendo o motivo de sua preocupação, senhora. – Mentira, eu entendia muito bem. Renard era um criminoso e, por melhor que sua índole fosse, o Príncipe das Ruas não iria simplesmente abandonar a liderança de toda sorte de mafiosos, fraudadores, ladrões e estelionatários do dia para a noite, especialmente por causa de uma menina! Ele era um bandido, e do tipo que sempre seria um. Era a vida que aprendera a ter, e a vida que gostava de levar; era igualmente respeitado, amado e temido, por diferentes parcelas da população que o conhecia, tão capaz de matar friamente um adversário quanto o era de sorrir em minha companhia. Ao seu próprio modo, era parecido com Erik; menos sombrio e perturbado, mas não menos perigoso... Talvez até mais perigoso, pois seu ar travesso e bem humorado escondia a frieza da qual era capaz. Frieza, é claro, não crueldade. Decididamente, não havia nada de cruel em meu querido raposo.

— Gabrielle, não se faça de tola. Sabe que me refiro ao fato de seu flerte não apenas ser um criminoso, mas gostar de sê-lo. Ao contrário dos demais, ainda jovens e dispostos a mudar de vida, ele sempre será algo como um mafioso, um Clopin. Você correria perigo, ao se unir a ele.

— Não sou indefesa, Madame. – respondi – não preciso de proteção, e sei bem quais são as implicações de me envolver com alguém como ele. Dificilmente poderíamos ter algo como um casamento, e menos ainda filhos... Mas não tenho sonhos com isso.

— E tem sonhos com o que, menina? – tive pena dela, que parecia realmente preocupada comigo. Mas ela não compreendia: eu nunca me livraria dos pesadelos. Mesmo que fosse risonha, brincalhona e bem humorada, que ignorasse meu passado no dia a dia, algumas coisas simplesmente não podem ser esquecidas. Ao contrário de Annika, que até os doze anos crescera com uma família, em segurança, eu crescera num bordel. A família que conhecera era a das ruas e, agora, a do teatro. Mas o molde tradicional de pai-mãe-e-filhos não me era apenas estranho: parecia-me intragável. Meus sonhos estavam voltados para uma carreira como violinista – talvez até mesmo para uma universidade, no futuro – para música, arte e, é claro, um tórrido amor com um homem que, em seus braços, me fizesse esquecer todo o asco, dor e vergonha que já sentira em tantos leitos diferentes. E nos meus sonhos, esse homem era Renard. Renard, que me oferecia apenas o que podia dar, e que não era mais nem menos do que eu mesma desejava. Mas como explicar isso a Madame? Como dizer algo assim, a uma senhora respeitável como ela?

— Com música, Madame Giry. Com arte, com música, com viagens e conhecer o mundo. Com tocar em diferentes palcos e, voltando para Paris, ser recebida pelos braços calorosos de um amante cheio de saudades. – eu vi o modo como ela arregalou os olhos, levemente escandalizada – tenho quinze anos, Madame, e já vi e vivi mais coisas do que muitas mulheres o farão na vida inteira... Annika é forte, conseguiu me criar apesar de todas as adversidades, e eu vi o quanto isso exigiu dela... Acho que sou mais egoísta. Não quero ninguém que dependa de mim; quero ser livre, quero estar sem amarras. E Renard também é assim... Só o que temos para dar um ao outro é amor. Amor, companheirismo, amizade. Sem amarras, sem prisões. É isso o que eu desejo... É disso que preciso.

Madame Giry parecia um tanto chocada, talvez mesmo decepcionada, mas ocultou isso com um sorriso, e falou:

— Só quero o melhor para você, minha menina.

— Eu sei, senhora. – respondi, levemente triste – queria dizer que estou fazendo a escolha certa, e que não irei me arrepender... Mas agradeço sua preocupação. Do fundo do meu coração.

— Eu prometi a você e a Annika que faria todo o possível para ajuda-las, como se fosse sua mãe... Dói-me o coração ver você se expondo ao risco de tamanha decepção, e não poder fazer nada...

— Eu sei. – murmurei, e então dei um beijo na testa de Madame Giry – mas não há como mandar no coração, há?

— Não... – ela tirou de dentro da camisola o pequeno porta-retratos onde ainda carregava a foto de seu falecido marido. Ele era um homem do teatro, um ator, e madame Giry deixara uma família de boa posição social, uma vida de luxo e conforto para casar-se com ele. De fato, ninguém podia escapar ao amor, quando ele acontece. Voltamos juntas para o andar de cima e, enquanto eu me enfiava na cama, ouvi um “boa noite” sussurrado de minha tutora, antes que ela apagasse a vela e fosse para o próprio quarto. Pobre Madame Giry, que agora passaria os dias agoniada comigo e com Meg, até que esta situação se arranjasse!

Por outro lado, a conversa me fizera muito feliz: Renard estava interessado em mim? Isso aquecia meu coração, e me fez dormir com um sorriso nos lábios.


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Notas finais do capítulo

Bom, por hoje é só, garotas! Espero que tenham gostado do capítulo, e nos vemos na próxima postagem!
kisses



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