Não escrita por Yokichan


Capítulo 4
A linha de sombra




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Sakura havia contado algumas mentiras à mãe — e quase caiu dura de surpresa ao perceber que ela tinha acreditado. A primeira mentira era que Ino estava dando uma festinha do pijama em casa para as amigas naquele sábado. A segunda era que Sakura iria a tal festinha. A terceira, que ficaria dormindo por lá. E a quarta, finalmente, era que a meia arrastão por debaixo do short jeans fazia parte de uma caracterização especial.

A Sra. Haruno tinha verdadeira aversão à meia arrastão. Era tão... Indecente para uma garota, ela dizia.

Então às nove da noite Sakura escapuliu para a rua e correu até a esquina. Itachi estava lá, escorado em sua moto monstro — porque sempre que ela via aquela moto, lembrava da moto diabólica do Motoqueiro Fantasma* —, vestindo coturnos pesados, jeans surrado e parecendo tão problema quanto diziam que ele era. Uchiha Itachi era o próprio inferno e ela adorava ver o mundo pegar fogo.

Ele a viu chegar com os olhos pretos de maquiagem parecendo tão pronta pra arrumar confusão e abriu um daqueles sorrisos tortos. Então montou na moto e ela o seguiu. E enquanto cruzavam a cidade como um trovão na tempestade, ele sentiu que aquela noite seria como uma linha de sombra*.

Para os dois.

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Sem sentir, assim meio que por acaso, como acontece toda vez que deixamos o mundo girar ao seu modo, Sakura acabou derrubando alguns dos NÃOs mais importantes que a mãe lhe doutrinara desde criança. Simplesmente passou por cima deles como se esmagasse formigas sem perceber. E então eles não faziam mais sentido nenhum.

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NÃO beba.

Sakura sentiu que estava bêbada quando não conseguia mais enxergar direito os rostos das pessoas naquela festa estranha. Tudo ao seu redor era como papel molhado e parecia haver uma força sobrenatural empurrando-a para baixo. As coisas giravam em câmera lenta debaixo daquelas luzes coloridas e psicodélicas piscando o tempo todo e o mundo era uma loucura. Então Itachi apareceu com um copo na mão e ela pensou “foda-se” antes de roubá-lo para si e beber um belo gole que queimou-a por dentro.

Ele encarou-a com aquele sorriso torto irritante — e, droga, tão sensual — e segurou-a por um cotovelo quando Sakura sentiu estrelas explodirem dentro da cabeça e cambaleou um pouco.

— Mas que inferno! — Itachi notou que, quando estava bêbada, ela xingava três vezes mais do que o normal. — Que diabos é isso?

— Gin.

O quê?!

A música estava absurdamente alta. Então ela apertou os olhos e se aproximou para poder ouvir melhor, mas tudo o que conseguiu foi quase cair por cima dele e ter o copo tomado de volta. E, é claro, ser motivo de risada.

Da risada dele.

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NÃO fume.

Ela estava sentada ao lado de Itachi num sofá duro e de estofado meio rasgado num canto da festa quando ele acendeu um cigarro e pôs-se a soltar volutas de fumaça. Sakura ficou olhando a fumaça rosa — e azul, e verde, e depois vermelha à medida que as luzes iam mudando — se enroscar no ar e desaparecer lentamente sobre suas cabeças e decidiu que também queria fazer aquilo. Observou Itachi com o cigarro pendurado num canto da boca e pensou que devia ser fácil.

Então tomou-o e tentou fazer o mesmo.

Itachi a encarou com uma sobrancelha erguida enquanto ela puxava a fumaça para dentro, segurando o cigarro como um maldito moleque viciado faria. Então ela começou a tossir como se fosse morrer e ele estourou numa gargalhada. O pior de tudo era que Sakura não conseguia nem xingá-lo com os pulmões cheios de fumaça daquele jeito.

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NÃO converse com estranhos.

O garoto de cabelo arrepiado perto das caixas de som perguntou qual era o seu nome. Sakura disse. Então ele falou qualquer coisa sobre o cabelo dela e sorriu. E num piscar de olhos já havia outras pessoas ao seu redor e ela estava conversando com elas e rindo sabe-se lá do que — porque ela estava bêbada demais para se lembrar, de qualquer jeito. Alguém lhe ofereceu um copo e ela aceitou, bebendo de um só gole aquela coisa que ela nunca saberia o que era.

Então apareceu um cara com correntes penduradas nas calças e puxou pelo braço a garota com quem Sakura estava conversando — “sim, essa é mesmo a cor do meu cabelo”. A garota gritou, o sujeito de cabelo arrepiado gritou, o cara com as correntes gritou de volta, e logo todos estavam gritando tão alto quanto a música berrada que explodia nas caixas de som. Sakura pensou em puxar a garota de volta e mandar aquele que parecia seu namorado ao inferno, porque aparentemente as coisas ali não estavam muito bem, mas antes que pudesse se meter na confusão, Itachi agarrou-a e arrastou-a para longe da briga.

Ele recostou-se numa parede e encarou-a.

— Será que não posso tirar os olhos de você por um minuto?

Sakura enfiou-lhe um dedo no peito.

— Eu não sou uma criança. — disse, sentindo a língua pastosa e enrolada.

Itachi sentiu vontade de rir, mas controlou-se. Viu-a cambaleando para um lado e para o outro enquanto tentava simplesmente manter-se parada no mesmo lugar, e quando pensou que ela ia cair, Sakura deu-lhe as costas e saiu ziguezagueando na direção contrária.

— Onde você vai?

— Para o inferno! — ela gritou e desapareceu no meio da multidão.

Ele bebeu mais um gole de Gin e pensou que gostaria mesmo de conhecer o inferno de Haruno Sakura.

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NÃO se comporte como uma garota vulgar.

E em algum momento da festa, ela se viu de pé sobre uma mesa, dançando mais empolgada do que gostaria e chacoalhando uma garrafa de cerveja para o alto. E sem saber explicar como aquilo tinha acontecido, havia um bando de pessoas ao seu redor gritando e assoviando cada vez que ela jogava os quadris pra lá e pra cá e deslizava uma mão ao longo do corpo de uma maneira que Ino acharia cafona e sua mãe imperdoável.

Atirado em um sofá mais atrás, Itachi acendeu outro cigarro e pensou que estava gostando do que via — apesar de saber que ela o esfolaria vivo por não ter impedido aquela estupidez. Pensou que gostava de como o cabelo dela voava de um lado para o outro e de como a camiseta meio torta no corpo deixava exposto um ombro pálido e delicado. Pensou que gostava de como ela comprimia os lábios enquanto dançava. Pensou que gostava da meia-calça arrastão rasgada em uma perna — porque ela simplesmente andava esbarrando em tudo o tempo todo — e daquela garota maluca que, àquela altura, não se importava com mais nada.

Mas então uma mão ergueu-se de sua platéia barulhenta e tocou-lhe uma perna, e Itachi pensou que estava na hora de acabar com aquilo.

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NÃO faça nada perigoso.

Enquanto Itachi a escoltava para fora da festa, uma garota com cílios de boneca e batom vermelho passou por eles. E disse um olá sorridente demais para ele. E deu-lhe um beijinho no rosto. Então Sakura simplesmente decidiu que queria morrer. Correu até o meio da rua e deitou-se ali, estendida como um cadáver no caixão.

Itachi rolou os olhos e parou sobre o meio-fio da calçada.

— Sakura. Saia daí.

— Eu quero morrer!

— Não. Não quer.

— Cale a boca e me deixe morrer!

Ele espiou para os dois lados da rua e agradeceu por não haver movimento de carros naquele bairro às quatro da madrugada. Porque, bem, havia uma garota bêbada deitada bem ali e disposta a morrer sabe-se lá por que diabos.

Itachi enfiou as mãos nos bolsos e deixou os ombros caírem.

— Eu mesmo vou te atropelar se você não sair logo daí.

Mas tudo o que ela parecia saber dizer era aquilo:

— Eu quero morrer!

E mesmo quando ele pegou-a nos braços e levou-a esperneando até à moto, pensando que a garota era leve feito uma pluma, Sakura continuou gritando que queria morrer.

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Depois havia apenas o vento e o escuro da noite. O barulho da moto acelerando debaixo de si enquanto todo o resto era silêncio. As luzes e a música alta tinham ficado para trás. Aquelas pessoas estranhas. A bebida. A fumaça de cigarro. Agora havia apenas aquela escuridão que a envolvia e a deixava gelada, aquela escuridão inóspita que parecia se contorcer dentro dela. Então ela abraçou-o com mais força e sentiu o calor das costas dele contra o rosto.

E, de alguma forma, aquilo fez sua cabeça parar de rodar.

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NÃO vá sozinha ao quarto de um garoto.

Mas Sakura só percebeu que aquele não era o seu quarto, e sim o quarto dele, quando já estava caída sobre a cama, o rosto afundado no travesseiro e o corpo parecendo pesado feito chumbo. Então ela ergueu o rosto para os pôsteres do Sex Pistols e do Beat Crusaders colados nas paredes e soltou um oh de quem acaba de perceber que se meteu onde não devia.

E pensou que se aquele não fosse o quarto de Uchiha Itachi, ela só podia ter sido sequestrada ou coisa do gênero. Ouviu um ruído às suas costas e quase não teve coragem de se virar — quem sabia que tipo de maníaco pervertido poderia estar ali? Mas então espiou por sobre um ombro e desfez-se num suspiro de alívio. Ou de alguma outra coisa. Itachi estava passando a chave na porta.

E estava sem camisa.

Então ele sentou-se numa poltrona logo ao lado e ficou olhando para ela. Sakura não pôde evitar reparar naquele ponto logo abaixo de seu umbigo — porque, droga, ele estava sentado com as pernas tão abertas! — e na brancura de seu peito, de seus ombros largos, de seus braços fortes — embora não exatamente musculosos —, e enfiou o rosto no travesseiro outra vez, sentindo-se tão vermelha quanto uma maçã do amor.

— Você está bem? — ele quis saber.

— Não é da sua conta. — Sakura resmungou contra o travesseiro.

— Vai ser da minha conta se você vomitar na minha cama.

— Você é um idiota.

Ela nem ao menos sabia por que estava dizendo aquilo, só não queria precisar olhá-lo outra vez e dar-lhe a chance de rir de seu estúpido rosto em chamas. Ouviu-o suspirar daquele jeito que queria dizer “tudo bem, você venceu” e levantar-se, porque as molas velhas da poltrona gemeram no processo. Ouviu-o caminhar pelo quarto e abrir e fechar as portas do guarda-roupas. Ouviu-o chutar os coturnos para longe e desfazer-se do cinto de tarraxas. Ouviu o farfalhar de lençóis e o ruído macio de cobertores sendo jogados no chão. Então entendeu o que ele estava fazendo.

E olhou alarmada para a cama improvisada que ele estava estendendo no chão ao seu lado.

— Você... Eu não posso... — ela começou a balbuciar.

— Eu deixo você ficar com a cama.

— Você não está entendendo! — e encarou-o com olhos arregalados. — Eu não posso dormir aqui!

Itachi jogou um travesseiro sobre os cobertores e deitou-se, fazendo uma careta ao perceber que ainda podia sentir a dureza do chão. Talvez devesse simplesmente dormir em sua própria cama, já que a garota estava reclamando tanto.

— É mesmo?

— Eu estou falando sério, idiota!

— Não estou te prendendo ou coisa do tipo.

Ele virou-se na esperança de encontrar uma posição mais confortável.

— Então me leve pra casa!

— Vá sozinha, se quiser.

— Mas eu nem sei que diabo de lugar é esse!

Sakura estava quase à beira das lágrimas, o álcool ainda fazendo efeito e a idéia de passar a noite no quarto de um homem a enchendo de pensamentos perigosos. E se ele tentasse agarrá-la no escuro? E se ele fizesse coisas com ela? Não que fosse exatamente ruim ou abominável, mas, bem, Sakura pensou que se fosse assim, ela pelo menos gostaria de se lembrar da coisa toda no dia seguinte.

Então Itachi virou-se para ela e disse:

— É a minha casa, claro.

E tudo o que ela pôde fazer foi soltar um gritinho de ódio e afundar outra vez no maldito travesseiro com o cheiro dele.

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O relógio de cabeceira marcava 5:24 da manhã e ela ainda não tinha conseguido dormir. Itachi havia desligado a luz e ela se revirado naquela cama uma dezena de vezes, os olhos pregados no escuro e a estranha sensação de que ele estava rindo em silêncio daquilo.

Então se enroscou novamente no lençol e fechou os olhos.

E tentou não pensar em nada — o que, é claro, não funcionou.

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5:47 e nenhum sinal do sono.

Ela bufou irritada e jogou o lençol para os pés da cama. Maldito Itachi. Quem ele pensava que era? Quem ele pensava que ela era? Então lembrou-se da garota de batom vermelho na saída da festa e do beijo na bochecha que a enchera de raiva. E se perguntou por que diabos tinha de ficar com raiva, quando eles não eram mais do que... Amigos?

Era aquilo mesmo o que eles eram?

Sakura virou-se para a parede e imaginou se ele já estava dormindo.

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Eram mais de seis horas quando ela finalmente tomou coragem e chamou-o pelo nome. E esperou. Silêncio. Então chamou de novo. A primeira claridade da manhã entrava pelas frestas na janela e ela pensou que talvez ele estivesse mesmo dormindo feito uma pedra. Mas então ouviu um “hum?” nada sonolento como resposta e de repente seu coração estava batendo rápido demais.

— Não consigo dormir. — ela disse baixinho.

Mais silêncio.

Então um resmungo perdeu-se no escuro e Itachi veio para a cama. E passou um braço por sua cintura. E puxou-a para perto. E beijou-a. Sakura não pensou em rejeitá-lo uma vez se quer, simplesmente cedeu-lhe espaço na cama e abraçou-o. E só quando a cidade toda estava acordando lá fora é que eles foram dormir.


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Notas finais do capítulo

*Motoqueiro Fantasma: personagem principal do filme de mesmo nome, interpretado por Nicolas Cage, que se transforma em um esqueleto em chamas juntamente com sua moto.

*Linha de sombra: do livro de Joseph Conrad, significa ultrapassar uma linha limite na vida, vencer certo desafio ou situação que deixará marcas na alma e mudará o ponto de vista do sujeito sobre a condição humana.



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