Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 15
Capítulo 14 ― Mau agouro


Notas iniciais do capítulo

Bom, só quero agradecer a todos pelo apoio que estou recebendo com esta fic, afinal, já são mais de 200 comentários, 30 favoritos e atualmente 81 fucking acompanhamentos!!!! É pra ficar contente ou não?! (Resposta: com certeza).
Aqui está mais um capítulo fresquinho e recém-revisado, portanto deleitem-se, meus camaradas, que a coisa aqui embaixo está muito boa.
Aproveitem a leitura, cambada!

REVISADO EM 22.04.2017



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PARA QUEM O CANHÃO foi destinado? À garota do Distrito 10? À ruiva do 4? Silas? Não. É pouco provável. Sapphire parece ser esperta demais para já estar morta, ainda mais se tiver seu chicote em mãos. O mesmo equivale à Savera Spectrone, a carreirista. Ambas são participantes extraordinariamente sagazes e fortes. E Silas estava bem quando o deixei para buscar água. Bom, menos se algum tributo o encontrou, desarmado e maneta. Nesse caso, torço para o assassino não ter levado minha mochila com os suprimentos embora. O que também é improvável. Se meu aliado foi assassinado, é melhor eu me conformar e dizer adeus aos enlatados.

Espero os jatos de água fumegante pararem de brotar de terra para seguir caminho. Percebo que estou muito ao norte do acampamento e decido fazer o retorno pela orla da floresta. Aos poucos vou me familiarizando com o local. Pego um punhado de folhas de mentas e mastigo algumas enquanto ando. Mais à frente encontro árvores pequenas e suspeitas com frutinhas que, à luz da lua, parecem negras. Aproximo-me. Reconheceria aqueles cachos em qualquer lugar. Cerejas.

Hesito por um instante, cheiro o fruto, analiso, como. Com certeza trata-se de cerejas de primeira qualidade. Fico satisfeita ao perceber que, se os suprimentos da mochila acabarem, ainda terei meios para sobreviver. Desfaço-me das folhas de menta, que agora se tornaram sem graça, e corto um cacho generoso das frutas vermelhas. Conforme ando, pisando sobre pedras para evitar pegadas, vou cuspindo os talos das cerejas nos troncos das árvores como uma espécie brincadeira.

Meu braço arde, mas não parece tratar-se de uma queimadura muito séria. Depois de uma boa noite de sono estarei novinha em folha. Nem procuro pensar no quão “bom” será meu cochilo ao levar as circunstâncias em consideração ― carreiristas, vulcões apenas esperando para serem ativos, um aliado maneta.

Avisto a rocha onde montamos acampamento.

Silas está atento quando volto, sentado ereto, a faca sem serra firmemente segura pela única mão. Ele parece bem, sem ferimentos. Sinto uma onda de alívio quando vejo que ainda está vivo. Eu não deveria ter essa sensação tão... complacente. Porque esses são os Jogos Vorazes, o evento esportivo que só acaba com uma única pessoa viva. E se eu quiser ser essa pessoa, Silas tem que morrer. Talvez o quanto antes melhor. Com um grande esforço, afasto os pensamentos conspiratórios para longe. O garoto sem mão e eu ainda somos aliados e os Jogos mal começaram. 

Equilibro-me em uma pedra lisa com cuidado. Se escorregar, posso quebrar o pescoço antes de Caesar dizer “tributo”.

― Pega logo essa porcaria ― digo ao lançar o único cantil cheio de água no peito do lenhador, já que não tive tempo para encher o outro. ― E é bom que me agradeça de joelhos, porque quase morri por isso.

Silas me olha quase como se estivesse magoado com minhas palavras.

― As explosões. Foi você?

Não evito a risada seca.

― Sim. Acontece que recebi um belo presente da Capital. Água fervente jorrou por todo aquele maldito buraco. Adivinha só, nossa fonte infinita de água já era, porque eu não sou louca de voltar para lá ― rosno. Percebo estar falando alto demais em uma floresta que ecoa os sons até dezenas de quilômetros de distância e abaixo o tom. ― E eu não fui tão rápida ― murmuro ao olhar instintivamente para o braço ferido.

Os olhos do tributo acompanham os meus.

― Chega mais perto. Deixe-me cuidar disso.

Mostro a ele a expressão mais incrédula e sarcástica que tenho.

― Você? É bom que esteja brincando, porque, de todos os tributos, você deve ser a pessoa menos capacitada para primeiros-socorros. ― Encolho os ombros. ― Além do mais, não está tão ruim.

Ele suspira.

― Não se sinta tão superior. E eu aprendi algumas coisas no tempo em que passamos na Capital enquanto você ficava se fazendo de fraca.

Relutante, vou em sua direção.

― Certo. Mas sem gracinhas. Ainda posso cortar sua cabeça fora se quiser ― digo ao sentar-me em frente a Silas, embora dificilmente fizesse isso sem um bom motivo.

 Ele finca a faca no chão de modo que o cabo mire a copa das árvores. Com movimentos delicados para uma mão enorme, checa a extensão do ferimento. Pergunto-me o que ele deve estar enxergando, uma vez que, sob a luz da lua, vejo apenas formas peroladas.

― Não é grave ― constata e se endireita. ― Espere.

Silas tira a camiseta um pouco desajeitado, arquejando de dor quando tem que passar a manga pelo coto. Abre o cantil de água e, antes que eu possa falar qualquer coisa, despeja todo o nosso escasso suprimento na camisa.

― Como você pode ser tão idiota? Não sabemos quando encontraremos outra fonte segura, seu maneta burro.

É então que ele pressiona o tecido encharcado contra a queimadura. O alívio é quase instantâneo e solto um suspiro gratificante. A sensação é tão... boa.

― O melhor tratamento para queimaduras assim é água. Natural ou morna. Nunca gelada ― o aliado cita de maneira orgulhosa as prováveis palavras do instrutor. ― Que tal? Acho que mereço um pedido de desculpas por ter me chamado de idiota e burro.

Ouvi-lo dizer isso me faz sorrir.

― Talvez em seu leito de morte.

•••

Silas parece genuinamente bem na manhã seguinte. Encontra-se menos pálido e não está mais suando. Após o café da manhã ― meia lata de canja de galinha para cada ― pergunto-lhe se consegue andar. Ele concorda. Guardo tudo na mochila enquanto o lenhador chuta as cinzas da fogueira que apaguei antes do anoitecer até que não exista mais nada.

Com um machado cada, descemos o declive da floresta em um ritmo suave, pois consigo ver o esforço que Silas faz para continuar andando e não desabar no chão. Usando o sol nascente como guia, seguimos para o sul, onde está o único vulcão fumegante da arena. Vinte minutos se passam e meu aliado pede para descansar. Não tenho escolhas a não ser encontrar uma rocha agradável para sentar.

Na metade do dia, as árvores começam a ficar mais escassas e o chão de terra é substituído por solo pedregoso. Poucos metros à frente nos deparamos com um vale de superfície rachada e nebuloso. É quase idêntico ao que deixamos para trás. Imagino que a arena deve estar repleta dessas piscinas termais.

Na beira do pequeno cânion, chuto uma pedrinha. Ela rodopia no ar e é engolida pelo vapor. Pode ser impressão minha, mas posso jurar que o caminho até lá embaixo é mais longo do que no cânion que encontrei após o banho de sangue.

― Será se vale a pena descer para pegar água? ― Silas indaga.

Olho para o coto enfaixado. Além das bandagens estarem sujas de terra, o sangue começa trespassar por elas.

― Não sei. Mas acho que não deve haver outras fontes de água além dessas ― digo ao olhar para o céu. As escassas nuvens continuam idênticas de quando o gongo soou. ― Na verdade, acho que essa é a intenção. Com certeza devia ter outros frascos desse purificador de água na Cornucópia. Talvez seja uma tática dos Idealizadores para nos atrair até as armadilhas quando os Jogos ficarem chatos.

Meu aliado encara o mar enevoado com intensidade, pensativo.

― Nove pessoas morreram na chacina inicial e mais uma enquanto você era atacada pelos gêiseres. Acho que a Capital já teve diversão demais ― fala como se ponderasse os prós e contras de descer para as piscinas termais. Então completa: ― Por ora.

Gemo, já prevendo onde isso vai dar.

― Certo. Você não vai ter muita utilidade lá embaixo porque é lento demais ― saliento com a bondade de deixar de fora o fato de ele ter um membro a menos. ― Eu vou.

Ele não questiona. Silas apenas acena com a cabeça, concordando.

Viro-me na ponta dos calcanhares para procurar o melhor lugar para descer.

― Johanna ― o lenhador chama, fazendo-me olhar em sua direção. ― Não é melhor deixar a mochila? Ela é pesada.

Esse simples comentário me faz esquecer por um momento que estou prestes a arriscar minha vida em uma armadilha mortal. Reviro os olhos, repelindo a ideia assim que a ouço.

― Não. Fique aí. Já volto.

A vinte metros de onde deixei Silas encontro uma espécie de escada natural paralela à parede rochosa. Desço os degraus com cautela, pois seria muito trágico se uma dessas plataformas cinzentas estivesse solta e me fizesse cair. Felizmente chego inteira ao fundo do cânion.

Com um machado em mãos e os cantis amarrados à cintura, ando com passos rápidos até a lagoa fumegante mais perto. Torço para que nesse momento esteja acontecendo uma perseguição sanguinária e extasiante em alguma parte dessa maldita arena. Assim, quem se importará com uma garota indo buscar água?

Da mesma maneira que fizera na noite anterior, mergulho um cantil após o outro na piscina e observo as bolhas de ar subirem para a superfície. Faz tanto tempo que estou aqui que o cheiro de enxofre nem me incomoda mais, apenas uma dorzinha insistente de cabeça para me lembrar de sua presença.

Em poucos minutos subo novamente a escada casualmente projetada e vou em direção ao meu parceiro. Achando que estamos muito desprotegidos aqui, Silas e eu adentramos na floresta e somente depois de uma curta caminhada é que paramos e colocamos uma gota do purificador azulado em cada odre. Sento-me encostada a uma bela faia negra e abro a mochila. Passa do meio-dia.

Usando a faca sem serra de Silas, abro uma lata de batatas em conserva. Para dividir a refeição igualmente, pegamos apenas uma batatinha por vez e, quando um de nós termina, este tem que esperar o outro comer sua parte para somente então voltar a surrupiar mais um tubérculo. Vejo que o garoto sem mão está faminto e devora o alimento em uma única mordida. Divirto-me mordiscando minha batatinha sem pressa enquanto Silas encara a lata aberta, apenas esperando eu terminar.

Meia hora depois enterramos a lata de alumínio e cobrimos o local com pedras para esconder qualquer vestígio de que nós passamos por aqui. Meu aliado parece estar renovado após a refeição ― menos ofegante, mais corado ― e aproveito o pique para abrir uma distância ainda maior entre nós e a Cornucópia.

O sol das três horas castiga a arena quando sinto que estamos sendo vigiados. Finco os pés no chão e viro-me com rapidez para trás, pensando que depararia com um tributo raivoso espumando pela boca. Entretanto há nada, tampouco uma suave brisa.

― O que foi? ― Silas pergunta em tom baixo, alerta, olhando na mesma direção que eu.

― Temos companhia ― respondo também em um murmurar. ― Acho que alguém está nos seguindo.

Trocamos um rápido olhar e falamos ao mesmo tempo:

― Tributo?

― Bestante?

Mexo a cabeça negativamente. Se fosse um bestante, já teria atacado, no lugar de ficar à espreita. Faço uma lista mental dos participantes mais perigosos que ainda estão vivos. Além dos carreiristas, há a garota do 10 com seu chicote e seu parceiro de distrito também ― se não me engano, ele obteve nota oito nas avaliações.

Faço um gesto para Silas, indicando que ele deve ir pela direita e eu pela esquerda. Se nos separarmos, talvez consigamos fazer um cerco e encurralar o oponente. Se for apenas um inimigo, garanto que dois lenhadores experientes portando machados afiadíssimos conseguirão matá-lo. É quando ouço o farfalhar das folhas.

Seguindo meu instinto, giro no chão sem tirar o pé de apoio do lugar, pensando que o barulho trata-se de passos. Estou esperando um ataque frontal, alguém correndo em nossa direção brandindo uma lança. Entretanto a floresta continua deserta. Estou confusa. De onde o som veio? Pergunto-me se tudo não passa de um Idealizador entediado pregando peças em nós.

E mais uma vez ouço as folhas farfalhando e finalmente identifico a origem. Não se trata de pegadas, disso tenho certeza, porque o ruído vem de cima. Movo a cabeça para a direção do som bem a tempo de ver uma mancha cinzenta cruzar a copa das árvores. O borrão diminui a velocidade e pousa graciosamente em um galho dez metros acima de nossas cabeças.

 Não é um tributo que nos persegue, tampouco um besante. Trata-se de uma coruja. Consigo identificar o animal com facilidade porque há muitos deles lá em casa. Essas aves são como uma praga no 7, onde até mesmo invadem as casas de janelas abertas à noite e roubam alguns objetos ― foi assim que minha irmã perdeu sua preciosa bonequinha. Oppa, a professora da escola, diz que isso só ocorre porque os animais estão perdendo o habitat natural para nós e nossa busca desenfreada por madeira. Na verdade, eu não me importo com isso. Gosto muito quando uma coruja está por perto, pois se você for rápido o suficiente, pode acertar a cabeça dela com uma pedra e ter a próxima refeição garantida.

Empoleirada no galho do abeto, a coruja vira a cabeça de modo anormal para nos encarar, curiosa. Mesmo à distância, é possível identificar seus característicos olhos amarelados e doentios. Ela chilreia três vezes e voa para outra árvore.

Solto um suspiro.

― Tivemos sorte. Apenas a porcaria de uma coruja ― concluo ao voltar a caminhar.

Silas me segue.

― Sorte? Ela piou ― ele constata e quase cai ao pisar em falso ao pular uma raiz.

Franzo o cenho.

― Sim, gênio, ela piou. E daí?

O lenhador maneta me olha como se eu fosse louca.

E daí? Você nunca ouviu as história? ― pergunta ao arquear uma sobrancelha. Ele continua quando encolho os ombros: ― Se uma coruja te olhar e piar, quer dizer que você vai morrer até o final do dia. É um mau agouro. Todo mundo sabe disso.

Isso me faz rir. Rir de verdade. Esqueço que estou em uma arena recheada de tributos querendo me ver morta e gargalho como nunca antes. Preciso até mesmo apoiar as mãos nos joelhos para não cair.

― Chega, Johanna. Você não deveria rir porque isso é sério ― Silas diz na defensiva. Suas palavras fazem apenas com que eu gargalhe mais. Ele tem que insistir algumas vezes e me lembrar de que ainda estamos nos Jogos Vorazes para as risadas cessarem.

― Acho que vai ter que dizer adeus aos seus patrocinadores, lindinho. Nesse momento, todos devem estar abandonando o barco após ouvirem tanta merda ― falo ao secar uma lágrima. ― Ah, e tenha cuidado. Na noite passada eu ouvi alguns barulhos enquanto você dormia. Pode ser um leprechaum.

Quando olho para meu aliado, vejo uma mistura de mágoa e raiva estampar seu rosto. Mas acontece que tudo isso é tão... estúpido. Corujas, chilreares, mau agouros ― essas são as história que os pais contam aos filhos para que não saiam à noite. Porque é muito mais fácil falar sobre corujas-ceifadoras do que dizer que é proibido sair de sua residência após o toque de recolher. Ainda lembro-me de Circe, a mulher que saiu correndo de madrugada para buscar ajuda na casa do curandeiro para seu marido moribundo. A memória ainda é fresca de quando minha mãe tapou meus olhos antes que atirassem nela no dia seguinte, bem no meio da Praça Principal.

Dou de ombros e seguimos em silêncio. Agora que conheço a presença da coruja cinzenta, fica mais fácil perceber quando ela está presente. A ave nos persegue, pousando de galho em galho. Pergunto-me se essa é uma atitude natural da espécie e concluo que o ser humano deve ser novidade ao animal. É apenas uma coisinha curiosa, penso. Ocasionalmente ouço o leve chilrear. No mesmo instante, os pés de Silas fincam-se na terra, o corpo enrijecido. Se não fosse tão ridículo, até que seria engraçado ver o pavor nos olhos do sujeito que ameaçara me matar no dia anterior.

A coruja pia mais uma vez e posso jurar ouvir Silas murmurar algo sobre “maldita ave”, “com certeza nossos rostos vão estar no céu hoje” e novamente “maldita ave, maldita, maldita, maldita”. Então ouço o farfalhar das folhas se movendo nas copas das árvores e o chilrear é interrompido bruscamente.

― Satisfeito, bonequinha? O pássaro malvado deve ter ido embora ― zombo com um sorrisinho ácido nos lábios.

O lenhador me lança um olhar duro, mas posso notar que suas feições estão mais tranquilas agora que a coruja se foi.

É quando o som um tanto quanto familiar sibila em meus ouvidos. Lembro-me dele sempre estar presente quando meu pai às vezes levava carne para casa e minha mãe destrinchava os pedaços para retirar os ossos. Basta a compreensão tomar meus sentidos para que um objeto redondo caia do topo das árvores, bem na nossa frente.

A cabeça sanguinolenta da coruja rola algumas vezes com o impacto. Ela para perto de mim, os olhos amarelados e vítreos. Mortos.

Ergo a cabeça para cima.

Uma única palavra ressoa em meus pensamentos:

Bestantes.


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Notas finais do capítulo

E então, curtiram? Acharam a atitude de Silas muito exagerada para um machão do D7? (Mas vale lembrar que são os fortões os mais medrosos, né).
Vamos lá, galera. Têm alguma ideia do que são esses bestantes? Aceito de teorias rebuscadas a um simples "não faço ideia do que seja".
Até quinta!