Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 16
Capítulo 15 ― Bestantes


Notas iniciais do capítulo

Bom, primeiro quero me desculpar pelo título clichê e e anti-original (não, essa palavra não existe (acho)), mas parece que minha criatividade resolveu tirar férias nas Bahamas (sem mim, diga-se de passagem).
Boa leitura, cambada!

NOTA IMPORTANTE: Logo no final do segundo parágrafo haverá [* * * *] (quatro asteriscos), e gostaria que vocês clicassem neles SEPARADAMENTE pois cada um contém uma imagem diferente.

REVISADO EM 22.04.2017



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EXISTE UM CASAL DE idosos muito simpáticos no Distrito 7, meus vizinhos. Lembro-me que, quando eu era pequena, o senhor e a senhora Moore arranjaram um passarinho horroroso que não conseguia voar e acabaram chamando-o de Poppy. Às vezes eles deixavam-me entrar no cercado de tela no fundo da casa para brincar com a ave. Eu amava Poppy. Mesmo sendo um animalzinho feioso, eu contava os minutos para o final da aula para então correr até a porta dos Moore. As semanas passaram e, em um belo dia, a velha risonha abriu a porta e falou: “Lamento, Jo, mas Poppy fugiu”. Chorei muito naquela tarde. Então, antes do sol se pôr, a senhora Moore apareceu lá em casa com um pedacinho de carne branca especialmente para mim. “É um presente, querida”, a mulher enrugada disse. “Se chama galinha”.

É isso que as bestantes me lembram: galinhas mutantes, aberrações da Capital. Elas devem ter quase um metro de altura, encurvadas e encarquilhadas, o corpo coberto por plumagens multicoloridas ― cada animal com um padrão distinto de matizes. Três garras afiadas e curvas nas patas e outras três nas pontas das asas. A calda é longa, chegando a arrastar-se no chão. As penas são mais compridas nas asas e nas pontas da cauda. Elas não têm bicos como um pássaro deveria ter, mas uma espécie de focinho escamoso exibindo duas fileiras de dentes amarelos e afiados. Os olhos lembram os de répteis, fechados em fendas. * * * *

As aberrações da Capital estão espalhadas em cada galho disponível acima de nós, emitindo um som asqueroso que vem do fundo das gargantas, rosnando. Uma delas, dispondo de uma plumagem azul com manchas verdes, apoia as garras da asa no tronco da árvore como se fosse um braço, em um gesto causal. Seu focinho está manchado de sangue, resquícios gosmentos da coruja que antes me perseguia presos aos dentes.  Deve haver algo em torno de vinte delas, ao menos. 

Espero que essas coisas também não consigam voar.

Ferrada. Eu estou definitivamente ferrada. Lamentavelmente, essa é a última coisa que penso antes que as bestantes se joguem em nossa direção numa confusão caótica de penas e rosnados.

Não hesito. Giro nos calcanhares e corro como louca, sem uma direção específica para seguir. A única coisa que ocupa minha cabeça é o desejo insano de sobreviver. Pulo algumas raízes traiçoeiras que se elevam poucos centímetros acima do solo, sempre impulsionando o corpo para frente. Quando percebo, estou em uma descida, no rumo das lagoas de água quente. Isso! Talvez eu consiga despistar essas criaturas em meio todo àquele vapor. Se elas não me alcançarem antes.

É nesse segundo que sinto garras afiadíssimas rasgando meu couro cabeludo, parecendo estarem enterrando-se em meu crânio. As patas da bestante ficam presas em meu cabelo e luto para me ver livre do animal, socando o ar acima de mim, ocasionalmente acertando a carne do espécime. Em algum momento durante a correria, sinto um puxão doloroso e a aberração consegue se safar, levando consigo possivelmente metade do meu cabelo. Em nenhum momento paro de correr.

Sinto o impacto das investidas que as bestantes lançam contra a mochila, mas os mantimentos e enlatados amortecem os golpes. Algumas correm ao meu lado, sem atacar, apenas acompanhando o bando. Suas pernas movem-se com uma velocidade anormal para uma criatura tão estranha. Ao menos não sabem voar.

Sei que Silas está em algum lugar atrás de mim ― posso ouvi-lo lutando contra o ataque. Não resistindo a curiosidade, lanço uma rápida olhadela para minhas costas e imediatamente desejo não ter me virado. Todas as mutações da Capital desceram das árvores e agora estão no chão, cercando meu aliado aos poucos. Além de ele ser muito pesado, os efeitos da perda de sangue cobram seu preço. Aos poucos o lenhador vai ficando para trás, inalcançável. É quando, bem nesse segundo, uma bestante lança-se em minha direção, a boca aberta mostrando os dentes amarelos. O instinto fala mais alto e quando dou por mim, bato na cabeça do animal com a parte romba do machado, jogando-o contra uma árvore. Ele silva, chacoalha a cabeça, e volta a correr.

― Corra, Silas, corra! ― grito após puxar o fôlego, mesmo sabendo que ele não vai conseguir.

Então meu aliado tropeça e rola no chão. As bestantes engolfam o garoto numa bola de penas assim como melado atrai formigas. Até mesmo aqueles que estavam perto de mim, quase me alcançando, dão meia-volta e optam pela presa mais fácil.

― Johanna! ― Silas suplica, esticando a mão em minha direção, enquanto mais dessas coisas sobem umas nas outras, todas querendo um bom pedaço do tributo masculino do Distrito 7.

Eu deveria voltar por Silas, para resgatar meu aliado, mas não o faço. Não é por isso que volto. Giro nos calcanhares e mudo de rumo bruscamente, quase escorregando pelas folhas secas. Uso o machado basicamente como um porrete, acertando qualquer coisa que se mova na tentativa de abrir um caminho até o lenhador. Os pássaros mutantes revidam, chiando e rasgando minha carne com suas garras potentes. Com um único golpe, decepo a cabeça de três deles.

É difícil chegar até Silas, pois os animais formam uma espécie de manto raivoso sobre o lenhador. A maior parte das bestas me ignora, ocupadas demais mergulhando o focinho no que um dia foi o abdômen definido do meu parceiro. Entre rosnados e fúria mútua, ouço os gritos do tributo.

― Johanna ― escuto-o acima dos sons das bastantes quando afasto mais duas aberrações dele.

Não consigo me mover para eliminar a última dúzia dessas mutações da Capital que devoram suas pernas, alheias a mim. É como se meus membros tivessem se transformado no mármore das colunas do Edifício da Justiça. Além do sangue, o cheiro da morte é quase palpável. Olho ligeiramente para cima, pois sei que irei vomitar se continuar encarando o buraco em sua barriga que borbulha o líquido escarlate. O que vejo é ainda mais assustador. Outro borrão de bestantes avança em nossa direção, faminto. Volto a atenção para Silas e seu corpo mutilado.

― Por favor ― ele geme quando percebe a compreensão em meu olhar.

Uma ave mutante salta e erra minha garganta por um triz. Esmago a cabeça dela entre uma árvore e a cunha do machado. Engulo em seco, pisco uma vez. O segundo bando se aproxima.

― Lamento, Underwood, mas é cada um por si ― digo e pego seu machado, que está a um metro de distância do coto. O que realmente vim resgatar.

Viro nos calcanhares e corro para salvar minha vida. Não paro nem quando o tiro de canhão ressoa em meus ouvidos. Continue, Johanna, continue, incentivo-me ao ziguezaguear pela floresta, evitando os galhos baixos das árvores. Ele está morto. Continue, continue.

Contorno o vale das piscinas termais pela orla da floresta. Ninguém me segue, pois as bestantes estão ocupadas demais devorando meu ex-aliado ― acho que fizemos essa transição de parceiros para inimigos no instante em que eu deixei-o por conta própria, para morrer. Em um dado momento, meus joelhos cedem e rolo pelo chão de pedras parcialmente coberto por terra. Atrapalho-me por um segundo na hora de levantar e recuperar os machados que voaram de minhas mãos, mas mesmo assim continuo correndo, sempre em frente.

Não sei em que parte da arena encontro-me. A única certeza que tenho é que deixei as lagoas de água quente para trás há muito tempo. Estou perdida, possivelmente andando em círculos, rumando para as lâminas afiadas dos carreiristas. E o que isso importa? Continuo correndo. Os machados escorregam de meus dedos mais de uma vez, obrigando-me a retroceder. Meus pés começam a ter certa dificuldade em me obedecer, vacilando. Onde estou? Onde estou? Não importa, Johanna. Não importa.

Abraço uma árvore para não cair. Estou cansada. O choque é tão forte que acabo batendo a cabeça nas ranhuras do tronco da faia. Não faço ideia onde minhas armas possam estar ― talvez em algum lugar entre o vale fumegante e aqui (onde quer que “aqui” seja).

O que foi que eu fiz?, pergunto-me, recusando-me a desgrudar da faia. Não me importo se devo estar parecendo uma completa idiota para a Capital. Essa é minha árvore e faço o que quiser com ela. O que foi que eu fiz? Eu o matei? Não, não. Deixei-o morrer. Há uma diferença entre essas duas coisas, certo? A culpa não é sua, digo a mim mesma. Ele ia morrer de qualquer jeito. Você não podia ajudá-lo. Sim, é isso. Então porque sinto como se o sangue dele estivesse em minhas mãos?

Solto um som estranho que vem do fundo da garganta, um misto de raiva e descontentamento. Quero gritar, mas sei que não é uma boa ideia. Em um ataque insano de histeria, jogo a mochila contra a faia estúpida. Fecho as mãos em punho e soco a casca da árvore. Só paro quando os nós de meus dedos estão sangrando e doendo. Claro que isso não resolve muita coisa, mas acontece que me deixa um pouco mais tranquila. Lembro-me de minha mãe falando algo sobre isso. Descarregar as energias ruins.

Quando percebo, estou encolhida no formato de uma bola, encostada à árvore. Uso o cabelo como uma espécie de cortina, assim Panem não pode ver meu caótico estado emocional. Eu devo estar louca. Com toda certeza, louca. Sempre soube que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Só pode haver um vencedor nos Jogos Vorazes e, se eu quisesse ir para casa, Silas só poderia voltar de uma maneira: dentro de um caixão. Tento encarar o lado positivo da situação. Agora só restam treze tributos. O pensamento faz meu estômago se revirar.

Sinto os últimos raios de sol quando decido que está na hora de seguir em frente. Silas Underwood está morto. Um problema a menos. Ponto. Olho para o céu, permitindo que a Capital tenha uma ótima tomada do meu rosto seco de lágrimas. Que todos vejam que eu estou bem.

― Coisas assim acontecem o tempo todo ― digo para ninguém em especial.

Coloco a mochila nas costas e faço o caminho contrário para encontrar meus machados. Acho o primeiro perto de onde soquei a árvore e o segundo, poucos metros adiante. Não estou com ânimo para acender uma fogueira, portanto apenas escolho uma boa rocha para encostar. Hora de inspecionar os ferimentos.

Por sorte, o que não falta em meu corpo é rastros das garras afiadas das bestantes. A maior parte não passa de arranhões superficiais, mas há alguns sérios rasgões na minha carne. Além do corte no topo da cabeça, o ferimento que mais me incomoda é o que foi feito sobre a recém-queimadura adquirida nas explosões dos gêiseres. Lembro-me que sobrara um pouco da aguardente que Silas recebera como dádiva e pego-a da mochila. Usando uma tira que rasguei da manga da camiseta cinza, passo a bebida nas feridas mais profundas. A ardência é quase insuportável.

Com o retalho cinzento, limpo as lâminas do machado que usei contra as bestas. O sangue das aberrações tem uma coloração estranha. É preto. Como piche. Abro uma lata de feijão com a faca sem serra e como apenas metade, guardando o restante para o dia seguinte. Quando acabo, ainda tenho fome. Então decido que está na hora de experimentar a única maçã que eu peguei na Cornucópia. Corto-a em fatias finas.

Enquanto mastigo a fruta, o hino de Panem começa a tocar e a insígnia da Capital flutua no céu. O primeiro rosto a aparecer é do garoto do Distrito 5, morto enquanto eu enfrentava os jatos de água fervente. Logo após ele, Silas me encara do céu. Seu nariz parece ainda mais desproporcional na foto, mas ao menos ele está sem a monocelha. A música acaba, o símbolo aparece, tudo fica escuro e quieto.

Coloco o machado no colo e encaro um abeto fixamente, os pensamentos longes da arena. Lembro-me que meu parceiro de distrito falara sobre uma tal de Willyst Wonka, sua namorada. Imagino que ela deve estar arrasada, chorando, de luto. E a culpa é minha. Fui eu que não ajudei, eu que dei a sentença ao seu amado. Penso em como Willyst Wonka ficará satisfeita se o próximo rosto no céu for o meu.


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Notas finais do capítulo

Bom, espero que os integrantes do fã-clube Todo Mundo Odeia o Silas tenham ficado felizes com esse capítulo ligeiramente desagradável com sangue gratuito.
Galera, talvez vocês não estivessem esperando por uma reação semelhante a essa da Johanna, mas vale lembrar que, para todos os efeitos, nossa adorável Jojo acabou de testemunhar pessoalmente a primeira morte, ainda mais em um evento tão perturbador e desalentador. Além do mais, é um processo gradual até Johanna se tornar a bitch ass que tanto amamos.

Agora uma breve aula de paleontologia:
As bestantes desse capítulo não são originais, mas sim criaturas pré-históricas, parentes dos dinossauros, da família Archaeopteryx (para o português: arqueopterix). As imagens armazenadas nos hiperlinks acima são meras reconstituições imprecisas da aparência física dessas aves (consideradas por alguns como as "aves originais", mesmo não tendo parentesco com as que encontramos hoje em dia).

E então? Curtiram as bestantes? E o capítulo? Vamos lá, digam o que pensam. Estou louco para saber.

AS BAIXAS DO DIA:

• Garoto do Distrito 5

• Garoto do Distrito 7