Our Games escrita por Magicath


Capítulo 7
Capítulo 7 — Um intenso primeiro dia


Notas iniciais do capítulo

FELIZ ANO NOVO GALERA!!!

O que é melhor que começar o ano postando um capítulo novo (e vocês lendo um)? Hahaha

Sempre encare o ano novo como uma chance de recomeçar. Não apenas o ano novo, mas todos os dias.

Agora, sem mais delongas, ao capítulo!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/660259/chapter/7

VI

Um intenso primeiro dia

As luzes programadas acendem logo cedo de manhã, acordando-me. As cortinas automáticas abrem sozinhas, exibindo um dia que parece ser tranquilo. O céu está nublado, porém claro, como uma tela em branco. Há pouca movimentação na rua e o quarto permanece silencioso, já que todas as janelas e paredes bloqueiam o som do lado de fora. Mesmo assim, eu sei que não há nada de tranquilo no dia de hoje.  

Cubro os olhos com o braço, pois esse pensamento é o primeiro que aparece em minha cabeça. É a partir de hoje que as coisas começam pra valer. O desfile no dia anterior é a oficial abertura, mas é pura festa. A partir de agora, porém, temos apenas três dias para nos preparar. Três míseros dias.  

Hector Ricardo requer nossa presença para dar as primeiras dicas da semana. Acordar cedo faz parte do desafio; o centro de treinamento não abre antes das nove horas, mas Hector exige que tenhamos reuniões matinais todos os dias. Hoje, após o café da manhã, será a primeira delas. Não sei se estou preparada para falar dos jogos; delegar, porém, não é uma opção. Como eu sei que não posso perder um minuto dos três dias de preparo que temos, não perco tempo e levanto logo da cama. A partir de hoje, cada segundo conta. 

Dirijo-me até a mesa de refeições do nosso andar, onde Hector, Ayla e Chris já estão na mesa me esperando para o café da manhã. Bom, Chris não espera, pois ele já está comendo. Não é de se surpreender, pois a mesa... uau. Eu nunca vi tanta comida no mesmo lugar. Somente na vitrine da confeitaria, e parece que eles compraram o lugar inteiro. Só de olhar me da água na boca.

— Garoto, se comer demais vai passar mal — Hector repreende Chris.  

— Bom dia Lara, minha querida — Ayla cumprimenta. Sorrio educadamente ao me sentar ao lado de Chris.

— Lara, experimente isso aqui — Chris diz, empurrando uma xícara com algo quente para mim. Parece ser café, leite e algo mais — Tem caramelo nessa bebida. Dá pra acreditar? 

Sorrio com a espontaneidade de Chris. Eu provei caramelo a primeira vez em minha vida no meu aniversário, em formato de balas que a vizinha me ofereceu. No total foram sete, e Chris e eu as dividimos igualmente, repartindo a última no meio. Foi um dos melhores dia das nossas vidas. Depois disso nos trazia um pacote sempre que podia. Isso até ela morrer. 

Não é de se estranhar que Chris pareça estar com tanta fome. Sinto exatamente o mesmo que ele. Lá no distrito, luxúria não existe em nossa mesa, a não ser em eventos importantes, no quais minha mãe se esforça para trazer ao menos um doce da padaria. Sempre aprendemos a racionar, a dividir, a não comer mais do que o necessário. Uma barra de chocolate tem que durar uma semana ou mais. Porém aqui... não há limite. Aqui podemos ter quanto chocolate quisermos em questão de horas. Chris está certo em experimentar tudo que pode antes que não tenhamos mais chance daqui três dias.  

Sinto que Hector nos observa por cima da borda da xícara de café enquanto Ayla nos bombardeia com perguntas sobre nossa vida no Distrito 3. Fico tentada a descobrir o que ele está pensando, pois não consegui decifrar sua personalidade ainda. A única coisa que sei é que ele gosta muito de ser irônico e parece sempre cansado. Eu lembro muito bem como ele ganhou os jogos: escondendo-se. Passou despercebido, jogou o jogo sozinho, imobilizando tributos e deixando-os a deriva para serem mortos por outros. A frieza da situação parece estar presa em seu olhar até hoje.

Ele parece ser alguém inteligente. Esse é o esteriótipo do Distrito 3 afinal, mas nem todo mundo é igual. A educação no distrito é rígida, obrigando todos a irem a escola, porém existem níveis. Há escolas bancadas pela prefeitura e há escolas pagas. As escolas pagas selecionam os melhores alunos, os chamados prodígios, para ingressarem nos grandes centros de pesquisa ou  até mesmo para estudarem na Capital. É completamente injusto, pois pessoas como Chris, que já foram consideradas prodígios, mas estudam em escolas comuns do bairro, não têm a mínima chance de ganhar essa oportunidade.

Algum tempo atrás, quem sabe Hector tenha sido um menino esperto. Agora ele deve estar mais interessado em encher o organismo com cafeína do que se preocupar com isso. Ou com qualquer coisa. De fato, os jogos devem ter interferido muito na vida dele.

Assim que o café da manhã é encerrado, Hector se levanta e nos pede para acompanhá-lo até a sala. São oito horas, uma hora antes do treinamento começar.  

— O treinamento começa daqui a pouco, portanto discutiremos as primeiras dicas básicas — ele informa.

O treinamento. Dá um nervosismo só de pensar. A única parte misteriosa dos Jogos que nunca transmitem na televisão é essa. Ninguém nunca sabe o que os tributos fazem lá. Há boatos, mas boatos são apenas brisas e não ventos.

— Primeiramente, eu gostaria de saber mais sobre vocês — Hector começa. — Já li suas fichas, mas não é suficiente. Quais vocês diriam que são suas melhores qualidades? 

Paro um pouco pra pensar, pois é algo que nunca parei para analisar. Nós claramente faltamos com habilidades físicas, mas que tipo de coisa em nós mesmos pode ajudar a nos livrar da morte certa nos jogos...?

— Lara é rápida — Chris diz primeiro. — Ela também é muito boa com números, consegue analisar uma situação com clareza e agir por instinto.

— Chris é muito inteligente — aproveito o gancho. Não consigo pensar em nenhuma qualidade minha, mas consigo enumerar as de Chris. — Ele consegue construir qualquer coisa, ele pensa rápido e tem muitas ideias brilhantes. Também somos ágeis e esguios, mas não somos muito fortes, senhor.  

Hector tem as mãos entrelaçadas em frente ao rosto, braços apoiados com os cotovelos no joelho, pensativo. 

— Vocês se conhecem muito bem, não é mesmo? — o mentor indaga. — Foi por isso que você se voluntariou? 

Chris e eu nos olhamos surpresos com a repentina pergunta. Não esperava que ele tocaria nesse assunto tão cedo.

— Hã... Sim — o garoto responde.

O mentor fecha os olhos e suspira, parecendo indignado. Se julga Chris pelo que fez, ele nada diz.   

— Por que você fez isso? Por um acaso você valoriza a vida dela mais do que a sua? 

Um silêncio mortal corta a sala e meu corpo todo se arrepia. A pergunta nos atinge como uma bofetada, repentina e cruel. Apesar disso, Chris responde firma e determinado:

— Sim.

Olho para meus próprios pés, desconfortável com o assunto. Meu amigo pode estar certo de sua decisão, mas eu sei que no fundo isso parte de sentimentos ruins de dentro dele, e que ele se recusa a demonstrar. Chris se esforça para parecer forte, e usa seu carisma e humor para superar as dificuldades, mas eu sei que a sensação ruim nunca o deixa, está sempre lá, devorando seus sentimentos. Eu o admiro muito por lutar contra isso todos os dias, mas isso está o consumindo.

Entendo porque Hector pergunta isso. Ele poderá salvar apenas um de nós, e se a resposta de Chris é sim, todo o esforço dos dois será destinado a me fazer sobreviver. Caso fosse o contrário, Hector investiria em nós dois e esperaria que um de nós vencesse, tanto faz qual, mas Chris não quer isso. Não somos dois indivíduos separados nos quais Hector precisa manejar os recursos. Essa é uma aliança até o fim da vida. Tudo de lucro que vier para Chris me beneficiará, e vice-versa. É como se fossemos um só.

— Então vocês tem uma história — diz ele enfim. — Você, Chris, não tem como passar despercebido, já que se voluntariou. As pessoas vão querer saber quem é você e vão, consequentemente, querer saber quem é Lara e porque você a protege. Essa vai ser a imagem trágica que você vai vender, pelo menos na entrevista. No resto do tempo, eu quero que vocês concentrem-se em si mesmos, sem chamar atenção dos outros tributos.  

— Mas se essa história chamar a atenção, os tributos não vão nos achar uma ameaça e nos estabelecer como prioridade? — pondero.

— Creia menina, só os carreiristas pensam assim, o resto está apenas tentando sobreviver. No pior dos casos, os carreiristas vão colocar a sua cabeça como a maior recompensa, mas não vão focar em caçar só vocês lá dentro. Eles saem pra caçar qualquer um, e o que cair na rede é lucro pra eles, quem quer que seja. Por isso vocês tem que focar em não encontrar com eles, nem com ninguém. Em caso de confronto, as chances de alguém sair morto são altas. 

— Mas isso não seria só adiar o inevitável? — Chris questiona. — Nós temos que garantir que só um sobreviva, e rápido.

— Aí vocês vão ter que pensar se querem estratégias de eliminação ou não. Mas isso é conversa pra outra hora. 

Engulo em seco. Nunca pensei que seriam tantas as coisas a levar em consideração em relação à sobrevivência. É como uma equação em que cada detalhe lhe leva a um novo caminho, mais perto da resposta certa, mas que diversos outros fatores podem interferir, uns facilitando e outros dificultando. É preciso considerar todas as possibilidades, pois estamos lidando também com imprevistos, e qualquer coisa pode acontecer. É preciso adaptabilidade e resistência. Faço um lembrete mental para anotar tudo isso em uma folha de papel e estudar até meu cérebro fritar. Eu preciso lembrar desses detalhes.

— Outra coisa: força física não é tudo — Hector continua, — mas é uma grande aliada. Vocês vão ter que dar tudo de si nesses três dias de treinamento. Por favor, vão além dos seus limites. Continuem mesmo achando que não conseguem mais continuar. Eu prometo a vocês que isso vai ajudar vocês. Junto a isso, treinem também a mente para acreditar que vocês conseguem ir além.  

Nós assentimos, porém já me sinto derrotada. O que Hector pede não é fácil, mas é literalmente o que devemos fazer: batalhar pela vida. Se quisermos ganhar, se quisermos ter a mínima chance de sobreviver, devemos dar até a última gota de suor. Além de isso exigir o máximo de nossas habilidades físicas, requer também demasiada força mental, para não desistirmos, para não sucumbirmos à pressão. Essa, sinceramente, é a parte mais difícil.  

— Por hoje, é isso. Chris, você está dispensado — o mentor diz. — Lara, fique por favor, preciso lhe pedir uma coisa. 

Lanço a Chris um sorriso de tranquilidade afirmando que o vejo em breve. Quando ele vai, volto-me para Hector.

— O que foi? 

O vitorioso suspira como se estivesse cansado. Levantando do sofá, ele para ao meu lado e se aproxima, colocando uma mão em meu ombro afetuosamente.

— Tome cuidado para Chris não se perder.

***

Assim que terminamos de vestir a roupa de treinamento, descemos, enfim, ao subsolo. Entramos devagar no ginásio enorme, perplexos com a complexidade do local. É um espaço de comprimento e largura amplos, de paredes de concreto. Logo de cara podemos ver uma parede enorme de escalada que vai até o teto. Há também estações cheias de bonecos e armas, uma pista de obstáculos, oficinas de montagem de armadilhas e dicas de sobrevivência, até mesmo uma piscina. Vejo bancadas com mesas de tecnologia touch e imagens holográficas com diversas informações e simulações. No centro de uma parede, um enorme vidro protege habitantes  da Capital que nos observam. Os idealizadores.

Chris e eu chegamos cedo, mas não somos os únicos. Os carreiristas não perdem tempo, pois já estão na seção de armas e luta corporal treinando entre si. 

— O que acha de nos separarmos? — Chris pergunta. — Eu estou curioso quanto à parede de escalada, ou aquela seção ali. E você? 

— Pode ser — respondo. — Eu acho que vou para aquelas mesas ali. Vejo você depois. 

— Tá bom.

Logo partimos, seguindo caminhos independentes. Ambos sabemos que não mostrar nossa proximidade durante esses dias é essencial. Se souberem o quanto somos próximos, podem usar isso contra nós. Além disso, se misturar com os outros tributos para passar despercebido é mais fácil quando se está sozinho.

Vou até a seção das mesas e imagens holográficas. Em uma delas, há uma grande ilha em modelo tridimensional flutuando a minha frente. É uma simulação de sobrevivência abordando diversos cenários. É perfeita. 

O desafio exige lógica, precisão, instinto e inteligência. O computador oferece os possíveis cenários de arena mais básicos: praia, deserto, floresta tropical, floresta nevada e pântano. Fico entre floresta e neve, mas primeiro escolho a neve, pois não gosto de lugares muito quentes. Meu objetivo é tentar todas as arenas e ver o quanto consigo sobreviver. 

Logo ao iniciar, as opções aparecem, coisas como "correr para lá", "procurar água" ou "acender uma fogueira". Percebo que há um tempo limite para escolher o que fazer. A medida que avanço, o tempo encurta e as situações vão ficando mais desafiadoras. Mesmo sendo uma simulação, é difícil pensar. Em um momento de distração, clico na opção errada e o jogo acaba.  Mesmo avançando bastante, morro na primeira arena.

Continuo a jogar sem perceber o que acontece ao meu redor. Quanto mais jogo, mais rápido consigo tomar decisões sem pensar demais, o que é bom. Sobrevivo na arena de floresta e do pântano, mas morro na praia e no deserto. 

Quando termino, um bom tempo se passou e o centro está apinhado de gente. Sei que devo começar a treinar pra valer agora.

Uma estrutura curiosa em formato de labirinto mesclado com pista de obstáculos me chama a atenção, então é pra lá que vou. Os tributos do 7 e do 9, um menino de óculos e uma menina ruiva, juntam-se a mim na aventura. O instrutor nos veste com um colete e gruda pequenos alvos em pontos vitais por ele, no coração, no ombro, na barriga, nas costas. Ele também nos entrega luvas com algum dispositivo de acionamento nela. O objetivo é eliminar os oponentes ao clicar nos pontos vitais que são os alvos. 

Incrivelmente o labirinto parece estar mais escuro que o resto do ginásio, e os sons  externos são bloqueados, deixando tudo mais assustador. Procuro me esconder atrás das paredes, avançar fazendo o mínimo de barulho possível. Tudo aqui dentro é uma simulação, mas meu corpo não consegue responder dessa forma; a ansiedade e expectativa são reais. Isso é bom, pois pelo menos aproxima-se da realidade, eu espero. Aproveito o momento para aprender a controlar essas emoções.

Não consigo encontrar nenhum dos dois, mas posso ouvir gritos de susto vindos de algum lugar, o que me deixa tensa. Penso ter ouvido passos apressados e vou atrás. Ao virar uma esquina, dou de cara com um holograma de uma grande besta. Eu grito, caindo no chão, mas logo me recupero e corro. A criatura holográfica me persegue. Infelizmente é impossível enxergar, então bato com tudo em uma parede. Tonta, vejo a criatura pular sobre mim e cubro a cabeça, mas logo ela desaparece e todos os meus alvos se apagam. 

Depois disso, resolvo ir até a parede de escalada. Chris não está mais lá, então não o vejo. Infelizmente, os carreiristas estão. Paro por um momento, ponderando se é uma boa ideia ir até lá. Resolvo virar e ir para outra estação, mas assim que faço isso, minha cara colide com o peito de alguém. A carreirista do 2 que implicou com Chris no desfile se encontra em minha frente, vindo de outra direção carregando duas garrafas de água em suas mãos.

É, hoje realmente não é meu dia de sorte. 

— Indo a algum lugar? — ela pergunta, debochada.. 

— Uh... Parede de escalada — respondo automaticamente, me arrependendo depois de ter dito isso. 

— É para esse lado, Distrito 3 — diz ela com desprezo, voltando para seus colegas. 

Eu não posso me demonstrar intimidada por eles. Não posso ter medo deles, pelo menos não agora. Dou meia volta e sigo até a parede de escalada. 

A coisa é mais complicada do que parece. Quando tento colocar o pé ou a mão em uma pedra, percebo que minha mão não encaixa ou escorrega, e acabo ficando parada no lugar sem ter pra onde ir. Não consigo ter força suficiente para me impulsionar e começo a ficar frustrada. Ver que os carreiristas se divertem entre si e sobem na maior tranquilidade também não ajuda. Não é por eles serem melhores que eu, mas por ver minhas expectativas indo por água a baixo porque meus braços são fracos demais, porque não consigo forçar meu corpo a ir mais longe.

Tudo bem, é só ir para outro lugar e começar de novo, repito para mim mesma. Agarro uma das pedras acima e coloco o pé em outra para me dar impulso. Penso ter conseguido uma boa sustentação, mas assim que uso o pé para me impulsionar ele escorrega. Tento me agarrar a parede mas já é tarde demais; caio com tudo no colchão.

Os carreiristas riem, pois eles sabem que uma vez aqui dentro, o trabalho deles é aplicar pressão nos outros tributos. Parece funcionar, pois de repente não sinto mais a sensação de sucesso que vivenciei na simulação de sobrevivência. Não há nada em mim que me torna melhor que as outras pessoas, que garanta que eu vá sobreviver. Essa pequena conclusão me enche de ansiedade e sinto minhas mãos tremerem um pouco.

— Você parece mais morta do que vai estar daqui alguns dias — uma sombra que paira sobre mim antes que eu consiga levantar. Levanto o rosto e vejo um par de olhos famintos me encarando. Arrasto-me para trás.

— Calma aí, não vou te machucar. Ainda — Matt caçoa, fazendo graça. Franzo as sobrancelhas. Por que ele está falando comigo? — Precisa de ajuda? 

O garoto estende a mão para mim, como se estivesse fazendo a caridade do mês. Franzo o cenho para a mão nojenta e calejada dele, desconfiada de sua dualidade. Ignorando sua "ajuda", levanto-me sozinha, limpando as mãos na calça. 

— Não obrigada — respondo.

Sinto uma pressão no meu pulso e logo ele me puxa de volta para o lugar. Um arrepio de medo percorre todo o meu corpo, como se algo em seu toque desencadeasse uma memória de tempos atrás.

— Ei, o que você está fazendo?! — reclamo, tentando soltar meu braço. O carreirista resiste.

— Só vim aqui para dizer umas coisinhas, não se incomode. Não precisamos ser inimigos, sabe — ele declara. Entendo seu tom como de sarcasmo, pois, bem, ele ainda não soltou minha mão. — Eu ouvi umas coisas sobre você e seu amiguinho depois do Desfile. Não sei o que vocês estão tentando fazer, mas acho bom vocês ficarem fora do nosso caminho, Larissa. Se as estrelinhas continuarem a brilhar, alguém precisará apagá-las. 

Engulo em seco. Ele não solta meu pulso por mais que eu tente desvencilha-lo e não entendo porque ele está fazendo isso. Não é como se não estivéssemos seguindo o plano de Hector. Começo a me desesperar, pois algo no olhar dele me faz lembrar um homem que há muito tempo fazia parte da minha vida, que costumava se chamar de pai e dizer que tudo de errado era culpa minha. 

— Matt, pare com isso, você está assustando a menina antes da hora — um de seus colega diz.

 

— Algum problema aqui? — Um instrutor se aproxima de braços cruzados, encarando Matt com cara feia. 

O carreirista abre um sorriso sínico, exibindo seus dentes amarelos. Então ele solta meu pulso.

— Não, nenhum — diz ele. 

Ele dá as costas a nós, deixando a ameaça no ar e retornando para o seu bando. Saio de lá o mais rápido possível. Felizmente, não preciso procurar Chris, pois ele vem logo ao meu encontro. 

— Lara, o que foi? Você parece meio pálida — Chris observa. — O que aquele cara queria com você? 

Baixo o olhar, balançando a cabeça. Talvez devêssemos ir a um lugar mais privado. 

— Não aqui — respondo. Sinto que vou vomitar. 

— Venha, vamos a enfermaria — Chris compreende. — Acho que está com pressão baixa. 

Chris me conduz até lá. A enfermeira pede que eu me sente e me da um chá e alguns biscoitos pra comer. 

— Então? — Chris volta ao assunto anterior. 

Suspiro, tomando um gole de chá em seguida. Conto tudo para ele nos mais sórdidos detalhes. Quando termino, o olhar de Chris é de alguém que está faiscando de revolta.

— Ele não pode fazer isso com você!— Chris exclama. — O que ele está pensando? Nós não fizemos nada!

— Nós vamos ter que lidar com isso, Chris. O que é que podemos fazer? — contesto. — Não podemos enfrentar ele!

— Eu não posso simplesmente engolir isso! Isso é perseguição. 

—  É claro que uma hora ou outra a gente ia ser perseguido, — argumento, — só não esperava que fosse tão cedo. 

Chris anda de um lado para o outro da sala, como se estivesse decidindo entre sair para esmurrar Matt ou ficar aqui dentro.

— Se ele já começou a jogar, talvez esteja na hora de a gente começar a jogar também. 

Levanto as sobrancelhas, não acreditando que ele falou isso. Matt tem literalmente o dobro do tamanho de Chris. Ele já lidou com muito assédio desse tipo, sempre ignorando e fingindo não ligar, mas nunca o vi reagir desse jeito. A fala dele me da medo, pois sua maneira de pensar está diferente. 

Cuidado para Chris não se perder. Será que já começou? 

— Pare com isso Chris. Não vamos jogar com a mesma moeda.

*

Um bom banho quente é o suficiente para esquecer as dores no corpo. Depois do episódio com Matt, Chris ficou comigo o tempo todo. Treinamos algumas táticas básicas de sobrevivência e primeiro socorros, e um pouco de luta corporal. A garota do 9 que treinou comigo me derrubou todas as vezes. Um instrutor me ensinou a usar uma faca e a sensação foi horrível, mesmo minha vítima sendo um boneco. 

Respiro fundo, afundando ainda mais na banheira, grata que o dia terminou. Tudo que eu mais quero é esquecer que esse dia aconteceu. 

Apresento-me para o jantar após o banho. O tilintar de talheres e os debates calorosos de Ayla e minha equipe de preparação animam a sala. Ao me sentar, Hector despeja as novas notícias. Aparentemente, Beetee e Wiress tem um circulo de amigos na Capital que estão sempre dispostos a patrocinar os tributos do Distrito 3. A notícia nos anima um pouco, pois saber que teremos auxílio lá dentro é um alívio.

Quando Hector pergunta como foi o treinamento, evito mencionar a parte em que Matt apareceu. Para o primeiro dia de treinamento, o impacto foi grande e não quero nem saber o que me aguarda amanhã. Sinceramente, não sinto a mínima vontade de falar dos Jogos.

Os serviçais enchem nossos copos com líquidos gasosos e adocicados. Nunca havia experimentado algo igual. As bolhas do gás explodem em minha boca e fazem meu estomago borbulhar. Chris ao meu lado arrota de repente, fazendo eu e Hector soltarmos uma risada. Ayla não acha a menor graça.

— Oh! — Ela exclama indignada. — Isso foi totalmente ultrajante e nojento!

Forço para liberar um ainda maior que o de Chris.

— Desculpe — digo entre as risadas. — Mas não é grande coisa. São apenas fruto dos seus gases internos, Ayla.

— Nunca arrotou, Ayla? Quem sabe o que faz quando está sozinha — Chris diz, zombeteiro. A mulher de plumas fica meio constrangida e ofendida, mas se recompõe.

— Mas é claro que não — ela exclama, indignada. — Não façam isso perto de mim novamente! Guardem seus gases para vocês mesmos.

O comentário arranca ainda mais risadas. Até mesmo Hector não consegue conter um sorriso.

Acabados os pratos de comida quente e as sobremesas deliciosas, somos liberados para fazermos o que quisermos. Assim como de manhã, Hector dispensa Chris e me chama para uma conversa. Penso se tratar do que aconteceu no treinamento, ou sobre Chris, mas o que ele diz é totalmente inesperado.

— Você não é a única Watterson que passa por aqui, né? 

Meus olhos esbugalham de surpresa. Em algum momento eles saltarão para fora, de tantas revelações que me surpreenderam hoje.

— Você... lembra? — questiono.

— Eu li a sua ficha. Lá dizia que, bem... o que aconteceu — Hector suspira. — Mas eu me lembro de tudo. Sinceramente eu não sei como você está aguentando estar aqui.

— Eu era muito nova — minto. — Não lembro a sensação... 

Em partes, digo a ele a verdade. A sensação de ter um irmão perdido não me afeta as vezes. Talvez por ter ignorado isso por muitos anos, ou porque Chris logo ocupou o posto, preenchendo o vazio que deveria estar ali. 

— Eu só quero que você saiba que eu fiz o possível — Hector prossegue, lamentando. — Nós como vitoriosos temos o dever de evitar que os próximos tributos morram. É claro que isso envolve assistir os outros perderem, mas pelo menos devemos tentar salvar quem nossa mão pode alcançar. 

— Entendo, não deve ser fácil — digo, encarando meus próprios pés. De repente, não sei quem está consolando quem. — A culpa não é sua.

— Sei disso, mas a culpa... ela permanece conosco pra sempre — o vitorioso expõe. — Com o tempo, eu fui desistindo, fiquei mais desleixado... E talvez isso tenha afetado o desempenho dos outros tributos. Mas assim que entendi quem você era, encarei isso como uma chance de me redimir fazendo por você o que não fiz por seu irmão e pelos outros tributos. Eu prometo Lara, vou fazer de tudo para vocês ficarem seguros.

— Obrigada — agradeço, o sorriso oscilando entre a compaixão e tristeza.

— Mas você sabe que não posso salvar os dois. Eu gostaria que fosse assim, mas não posso fazer nada. Vai ser você Lara, vai ser você quem eu vou ter que proteger mais. Por ele também, você entende? 

Sim, eu entendo. Se eu morrer, Chris não vai querer continuar.

— Eu sei — é a única coisa que consigo dizer. — Gostaria que não fosse assim também.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Intrigante, não? Hector lembra do irmão da Lara... O que acharam disso? E o que pensam sobre Matt ameaçando Lara? E Chris se achando o todo poderoso?

Gente parece que tá indo devagar, mas ta indo rápido. CAPÍTULO 11 JÁ É A ARENA!!!!

Acho que é só isso que tenho a dizer, por hora. Obrigada a todos que estão fazendo parte desse projeto, é muito significativo para mim.

Atenciosamente,
Magicath.