Our Games escrita por Magicath


Capítulo 16
Capítulo 16 — O que nos tornamos


Notas iniciais do capítulo

Sim, capítulo domingo no dia de protesto porque eu fiquei com MUITA vontade de postar ele

Tem imagem no asterisco (*) nesse capítulo também.

Esse capítulo é meio triste. Se segurem aí.



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XVI

O que nos tornamos

 

— Você vai ficar acordado? — pergunto a Chris.

O brilho da fogueira era obliterado pelo vento frio. Os últimos resquícios de fogo tentavam sobreviver, a madeira apresentando apenas um brilho alaranjado. 

Chris balança afirmativamente a cabeça. Ele tem seus cotovelos apoiados nos joelhos e sua cabeça sendo sustentada pelos dedos entrelaçados segurando seu queixo. Continua naquele estado absorto, num pensamento profundo.

— Me acorde quando estiver cansado — peço. Ele não responde. — Você me ouviu? — Levanto a voz para resgatar sua atenção.

— Sim, ouvi — responde finalmente. E é só isso que tem a dizer antes de voltar para o modo estátua.

Dou de ombros e me deito sobre o chão duro. Não era tão desconfortável quando usada a coberta e a mochila como travesseiro.

Olho uma última vez para Chris antes de fechar os olhos. Num movimento vagaroso, ele abre a palma da mão e observa algo que segura nela. Não consigo identificar o objeto. É um saco vê-lo nesse estado, mas não há solução que eu possa encontrar para tirá-lo dessa. Não posso simplesmente sumir com tudo de ruim que está consumindo Chris no momento.

Deito a cabeça sobre a mochila e tento descansar. Dormir, porém, passou a ser um fardo. Alguns segundos eu desligo, mas sou sempre acordada por algum barulho, sempre com o coração batendo a mil, temendo o pior.

Ninguém suportava a agonia do medo. Ao fechar das pálpebras, seriamos levados aos pesadelos, o terror produzido pelos sonhos em conjunto com as lembranças. Fechar os olhos sem enxergar Ethan ou Jess me culpando por ter derramado o líquido sagrado da vida se tornou um fenômeno impossível. Fechar os olhos sem me ver morta sob uma poça de sangue também.

É um peso psicológico sufocante e enlouquecedor. O maior desafio não é lutar contra as dores, contra as contrações do estomago, a sede e o frio. A maior luta é tentar não sucumbir à insanidade, aos truques da mente. Como Hector disse e sempre lembrarei: não precisamos ser somente mais fortes que os oponentes, mas também suportar o próprio jogo. Eles não podem tirar de mim o que eu sou, eu prometi.

Embora eu ache que a promessa esteja sendo desfeita aos poucos, fora de meu controle.

Mas quando penso que não sou mais capaz de suportar os tormentos, eu apago, navegando por um sono tão calmo quanto o silencio. E sou acordada apenas quando Chris começa a passar mal. Ouço tosses fortes primeiro, vendo-o debruçado na neve, e vou apressada auxiliá-lo. Ele então coloca tudo o que tinha dentro do organismo para fora. Vomita tanto que só faltavam as suas entranhas participarem da festa e saírem também. Fico preocupada, pois Chris não devia ter algo dentro do estomago além de suco gástrico e restos de maçã, se ainda não digerida. Penso se não é consequência da substancia que Ethan injetou em Chris, horas atrás. Contudo, se fosse veneno os sintomas deveriam ter se manifestado mais cedo, não? E se fosse algo silencioso, matando o interior sorrateiramente, espreitando pelo organismo?

Bem, poderia ser tanto algo ruim como algo inofensivo. Eu não conhecia muito sobre tóxicos para avaliar precisamente a situação.

— Água? — ofereço a Chris, estirado no chão, o odre que enchemos mais cedo, no lago. Ele se levanta e aceita, tomando profundos goles da água. Em contrapartida à fome, temos ela para saciar uma das nossas necessidades. 

— Tudo bem?

— Sim, foi só um problema técnico — diz ele.

— Você precisa descansar, Chris. Está muito tempo acordado.

Ele grunhe, levanta-se e se arrasta como um morto-vivo para o fundo da caverna. Vejo apenas o contorno das suas costas curvadas, encolhido em posição fetal.

Suspiro, abatida. Era exaustivo pensar no que estava acontecendo com Chris, conosco. Ele tem estado muito... diferente. Se eu sobreviver e ganhar, queria ter uma lembrança... boa, não desse Chris fatigado, sem emoções. Queria muito poder futuramente sorrir ao dizer que Chris aguentou até o último minuto. Ele sempre foi assim. Mas, como estamos cansados de saber e repetir, esse é um dos efeitos colaterais dessa experiência. Os Jogos vão te desbotando, lentamente, até que você suma por completo.  

Sento-me sobre a neve, apoiando as costas na superfície gelada. A madrugada prossegue fria e lúgubre. Observando o céu, é difícil associa-lo ao paraíso, como contam nas histórias lá no Distrito 3. Um lugar para onde as almas boas vão. Acreditar que há algo bom além dessa realidade terrível... exige muita coragem. Mas é também difícil não sorrir ao olhar os pontos brilhantes lá em cima e lembrar se Stanley, meu estilista, um amigo inesperado. Faz-me sentir falta até mesmo de Ayla, da brisa que carregava os barulhos dos carros e das pessoas, das cores e luzes suntuosas da grande cidade. A vida lá na Capital é reconfortante, de certa forma. Podemos repudia-la, mas é o modelo de vida perfeito invejado por todos os distritos. Dá a sensação de que os problemas não existem. Afinal, o que seriam preocupações para pessoas que transformam um morticínio em um espetáculo venerado pela maioria?

Desfaço-me dos pensamentos sobre a cidade e transformo as luzes das janelas novamente em estrelas. Encolho-me dentro do casaco, protegendo-me do frio que se intensifica mais e mais. Procuro ficar atenta a qualquer coisa ameaçadora no meio da noite, algum movimento. A única coisa que vejo são as árvores balançando de um lado para o outro do outro lado da clareira, a única coisa que ouço são os assovios do vento. Cada barulhinho estranho faz meu coração bater mais rápido e seguro a machadinha com ainda mais intensidade. Meu sistema está em alerta, pronto para me fazer correr e lutar pela minha vida se for preciso.

As horas passam, nada acontece. Estranhamente, o céu permanece constantemente azulado, cobalto. Algumas estrelas vão embora, a lua some; o escuro, entretanto, não. Apenas uma pequena claridade o torna roxo e mais parecido com uma manhã sombria e cinzenta. As coisas se tornam um pouco mais visíveis, porém sem cor. Os idealizadores estão propondo um novo desafio a nós além de sobreviver ao frio mortal: sobreviver à escuridão total.

Desloco-me até Chris para acordá-lo. Porém, mesmo com seus olhos fechados, ele não dorme. Ainda encolhido, consigo ver suas mãos extremamente pálidas tremendo. Seu rosto está contorcido, coberto de suor frio.

— Ei, Chris, você está bem mesmo? — questiono, afastando delicadamente os cabelos do seu rosto, checando se está com febre. Assim que o toco, ele vira bruscamente.

— Hã? — indaga ele, confuso. — Eu estou ótimo. O que aconteceu?

— Nada, está ficando meio claro e eu achei que seria uma boa hora para sairmos procurar algo, mas você está terrível.

— Deve ser só a pressão baixa — diz ele, fazendo um gesto para eu não me preocupar.

— Então tome bastante água, isso ajuda. — Entrego-lhe a garrafa. Ele vira todo o conteúdo, fazendo parte dele escorrer pelo seu queixo.

Precisaremos encher a bendita de novo. Não esperava ter que voltar ao lago tão cedo...

— Você lembra como faz armadilhas? — pergunto. Ele assente.

— Está pretendendo caçar? — questiona.

— É claro. Eu estou com tanta fome que meu estomago está prestes a criar vida e a devorar os outros órgãos.

— Você acha que ainda é capaz de acharmos algum animal aqui além daqueles corvos? — ele duvida.

— Talvez — desdenho, encolhendo os ombros. — Pode ser que estejam se escondendo do frio ou que saiam apenas no escuro. Eles podem não ser animais normais.

— Tudo bem então.

Estendo a mão para Chris, ajudando ele a se levantar. Demora um tempinho para recobrar o equilíbrio.

Uma vez novamente dentro da floresta, não foi tão desafiador construir as armadilhas. Tínhamos a linha e com a ajuda da lanterna achamos galhos pelo chão. Chris cortou pequenos pedaços dos gravetos — normais e em forma de forquilha — com as machadinhas para fazer o gatilho e a sustentação. No final, era só um animal bobear e pisar ali que a linha o pegaria no mesmo instante.

Um tiro de canhão soa como um trovão e nos assusta. Paramos um momento, não sei exatamente porque, pensando em quem é a vítima da vez e como morreu. Espero uma imagem surgir no céu, mas nada acontece.

— Um a menos — Chris comenta. — Agora restam dez

Franzo o cenho, mesmo que ele não possa ver. Não sabia que ele estava contando.

Em certo momento, no meio do caminho acho um arbusto com algumas frutinhas. Nos aproximamos para conferi-las. Elas podem ser uteis como isca ou como comida para nós.

— Você acha que são venenosas? 

— Provavelmente — Chris pondera. — Não há nenhuma no chão roída, estão intactas. Os animais têm seus instintos e sabem quando não podem comer alguma coisa.

—Veja, são vermelhinhas e estão em cachos de três* — observo. Eu lembro da estação de planas no treinamento, lá na Capital. Por causa de seu crescimento favorável ao frio, consigo facilmente identifica-las como cerejas-de-moita.

— É aquela que causa hemorragias internas por causa da acidez? — Chris indaga. Eu afirmo. Ingerir uma delas aumentaria tanto a acidez estomacal que poderia degenerar seu estomago e te matar em instantes. Não é um fruto natural, a Capital a criou para participar da lista de coisas ameaçadoras que encontramos na arena. Portando, ficamos longe delas. Mas só por precaução, cato algumas e guardo-as no bolso.

Prosseguimos nosso caminho, marcando as árvores com riscos para lembrar do caminho e onde estavam as armadilhas. Andávamos de mãos dados para não nos separarmos, com a lanterna desligada, caso algum tributo estivesse por perto. Era difícil enxergar, mas o fraco contorno das coisas nos permitia andar sem nenhum problema.

Chris pede para fazermos uma parada. Ele se apoia em mim, dizendo que está sentindo um pouco de tontura. Toco o rosto dele e me assusto com a quantidade de suor que escorre pelas bochechas e sua palidez mórbida. Sua temperatura está normal, em contrapartida. Seus olhos mal conseguem focalizar meu rosto.

— Sua pressão está baixa demais — deduzo, embora não seja médica ou saiba alguma coisa especifica sobre isso. — Ou você está há muito tempo sem comer...

A cabeça dele pende um pouco para trás e eu preciso segurá-la para mantê-lo ainda em pé.

— Chris, você vai desmaiar. O que tá acontecendo com você?

— Eu... Droga, o que eu fiz? Eu não devia...

A frase é interrompida por uma tosse seca e forte. Chris tosse muito, faltando-lhe um pouco de ar. Aproximo a lanterna e vejo seus olhos marejados e sangue expelido pela sua boca. 

— Ah, merda, o que você fez?

Ele não me responde, pois perde o equilíbrio e desaba. Intercepto-o antes que atinja o chão com força e assim que o deito na neve, ele começa estranhamente a se contorcer e se debater. Ele está rígido, com as costas envergadas, descoladas do chão. Os músculos se contraem e os braços e pernas se movimentam involuntariamente; o pescoço esticado, olhando para cima; os olhos totalmente brancos e com o maxilar cerrado. Eu já ouvi falar de pessoas que tem crises como essas em que elas tem descontroles de suas atividades musculares. É aterrorizante.

A minha primeira reação é me desesperar. A lanterna cai no chão e desliga, deixando-nos no escuro, sendo a parcial luz do céu a única a ajudar. Minha visão demora a se estabilizar para eu enxergar direito. Eu sinto vontade de correr e gritar, mas não é isso que eu faço. Eu tateio a procura da lanterna e volto a iluminar Chris quando a acho. Eu retomo o controle, vendo que Chris saliva demais e o viro de lado. Não tento segurá-lo, pois sei que isso não vai ajudar.

Minhas mãos e minha respiração tremem muito enquanto me esforço para socorrer Chris. Procuro retirar a mochila das costas dele, mas tenho medo de machuca-lo. Então sento no chão, rente ao seu corpo, realizando que não há mais nada que eu possa fazer para ajuda-lo além de implorar para que acabe de uma vez.

Meus dedos tocam algo pequeno jogado no chão. Um pequeno frasco de vidro contendo um líquido amarelado dentro. O mundo ao meu redor paralisa quando tudo entra nos eixos. Um frasco de veneno caído ao lado de Chris. Ele, horas atrás, roubou-o de Ethan e ingeriu o conteúdo quando estávamos na caverna, pensando que morreria dormindo. Ou estava tão perdido que não pensou nas consequências. Talvez tenha decidido que uma morte dessas seria menos dolorosa do que enterrar uma faca no próprio peito. Sem sangue, sem dor, sem heroísmo. Que veneno seria pior que aquele que infecta a mente e corroí a alma?

As lágrimas descem pela bochecha, meu nariz escorre. Deixo os fluidos do meu corpo saírem como eles quiserem. Entendo porque foi tão tentador para Chris ingerir essa toxina. Nós só queríamos que tudo acabasse de uma vez, mas as coisas só pioravam e Chris não era mais Chris, eu não era mais eu, o mundo não era mais mundo.

Sinto algo que nunca vivenciei antes: a vontade de deixar Chris morrer naquele exato momento, abandonar a ideia de salvá-lo, pois a salvação dele não era dar-lhe a vida. Deixa-lo finalmente ir parecia uma ideia melhor. Ele nem ao menos sentiria, estaria livre de qualquer preocupação, estaria livre dessas correntes. Nem eu seria mais um dos seus problemas. E ele poderia finalmente ficar em paz, para sempre, não sofreria mais por mim. E tomar aquele veneno poderia me proporcionar a mesma paz porque viver não mais fazia sentido. Aguentar isso não mais fazia sentido. Não fazia sentido continuar com essa história, não tinha sentido lutar pela minha vida se no final tudo que eu terei serão mais infortúnios para eu lamentar e mais motivos para me perguntar porque tudo isso não acaba. Porque queríamos chegar ao fim. E eu não tinha mais medo desse fim. Porque a morte não é um sofrimento. A morte é a libertação da alma.

Volto a minha lucidez, novamente dentro da arena, quando ouço o mesmo som que ouvi ao receber a minha primeira dádiva. Um paraquedas fluorescente aparece no céu, carregando uma caixinha. Dentro, uma seringa contendo um líquido incolor. Seria a cura?

Chris desacelera aos poucos os movimentos. Observo-o até ele fechar os olhos, como se dormisse feito uma criança imersa em um sonho. Nenhum canhão toca, mas sei que é apenas temporário.

Uma brasa incandescente queima minhas entranhas. Não consigo me mover. Não consigo escolher entre deixa-lo ir e curá-lo. Olho para a agulha e para ele; a sua vida está em minhas mãos. Eu deveria deixa-lo ir, mas não parecia certo. A coragem para tal ato não surgiu.

Mas... do que eu me arrependeria mais futuramente?

Então a luz da lanterna faz a pulseira em meu pulso reluzir no escuro e eu me lembro de nossas promessas. Lembro-me de quem nós éramos, de nossas travessuras, de nossos momentos, de nossa amizade indubitável. Nós perdemos tudo isso. Nós perdemos um ao outro antecipadamente. Quando foi que nós deixamos isso acontecer?

Percebo a loucura dentro de mim. O que eu estava pensando? Eu, matar Chris? Ele não merece isso. Ele se sacrificou por mim e é isso que penso em fazer com ele? Mesmo que eu esteja somente adianto a sua morte, não seria assim que ele iria querer. Não posso deixar Chris morrer dessa forma. Não posso deixar ele ir sem que ele se encontre novamente. Não é dessa forma que pretendo me lembrar dele.  Eu preciso recuperar o que éramos antes de podermos finalmente partir.

Nós nos distanciamos demais. E eu estou afastando a saudade, estou afastando os sentimentos para não me machucar mais no final. E agora é mais fácil deixar Chris ir nesse momento do que mais tarde.

Porém, as coisas não devem ser assim.

Então, antes que seja tarde, a agulha penetra a veia mais próxima e o antidoto corre por seu sangue. Seu canhão não mais tocará, até que chegue a hora certa.


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Notas finais do capítulo

Acham que teve algum motivo para Chris ter se envenenado além de estar cansado de tudo e aparentemente louco?
Lara fez certo ao decidir manter Chris vivo?
O que acham que acontece depois disso?

Por favor, me digam o que vocês acham!! Fantasminhas, as perguntas também servem para vocês. Quero que vocês apareçam e me digam se vocês realmente leem e gostam dessa fic.

Ah, e o que aconteceu com Chris ali: ele teve uma convulsão.
E desculpem se os acontecimentos, como os efeitos do veneno, ficaram meio sem sentido, tipo "ah não é assim que acontece de verdade", mas eu precisava que fosse do jeito que foi.

Att,
Magicath