Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 67
LIX - O Exército de Areia


Notas iniciais do capítulo

O capítulo LVII foi editado. As alterações são significativas no decorrer da história. Recomendo que releiam.



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LIX

O Exército de Areia


As areias, naquele momento daquela longa noite, estavam agitadas.

Há muitos tempos, elas também estiveram assim. Numa manhã que durara dias, tardes e outras noites que pareceram nunca ter passado, as areias se agitaram de modo incomum. Agora, a situação era oposta: naquela noite que durara manhãs, tardes e outras madrugadas, as areias também dançavam incontrolavelmente. Parecia que sempre que elas se remexiam mais do que o normal, algo de grandioso estava para acontecer. Nem sempre os eventos em si eram grandiosos, mas sim desencadeavam reações grandiosas.

Da janela, via-as se enroscando umas nas outras, numa dança quase sensual e hipnotizante. O sarlik estava bastante animador naquele momento. Do jeito que estava, aparentemente aquelas areias iriam flutuar bem rápido em sua viagem para as gramíneas, a Campina, o lugar que tratava a todos os seus habitantes como filhos e não como servos ou escravos, como faziam respectivamente o Deserto e a Tundra.

Talvez fosse devido à redescoberta da Música do Deserto que elas finalmente estavam partindo. Já não mais havia propósito para as areias continuarem vivendo no Deserto agora que alguém poderia despertá-lo, controlá-lo. Havia muitos tempos, elas saíam para procurar a Música; agora, saíam para procurar outro propósito.

E a Rainha, que em silêncio observava o Saar através da janela da Fortaleza, via nas areias o seu destino.

Era chegado o momento. Incontáveis tempos se passaram desde que formulara o plano, desde que medira cada efeito de cada atitude que deveria tomar, desde que calculara cada consequência dos erros que poderiam vir a acontecer durante a execução do plano. E também quando ela o executara, quando dera o primeiro passo para fora da caixa e foi se revelando pouco a pouco, até atingir o seu ápice, o qual não demoraria muito para vir.

— É chegada a hora — fora a primeira coisa que a Rainha disse a Kurt, que havia logo se apressado para chegar à Fortaleza.

— Já? — ele perguntou, surpreso.

— Sim. Adam está de volta e trouxe a peça fundamental para realizarmos o plano.

— Onde ele está?

— Nós o prendemos num quarto aqui na Fortaleza. Ele ficou bastante irritado com alguns... detalhes que eu lhe disse, e achamos melhor prendê-lo.

— Por que não matou ele?

— Acalme-se, senhor Kurt. Nem tudo se resume à morte. Conviver com o Hasir realmente está fazendo sua cabeça, não é mesmo?

— Eu diria que conviver com a senhora está fazendo minha cabeça.

— Bem, talvez isso coloque um pouco de bom senso nela. Mas saiba que Adam é importante para o plano, ainda. Aliás, ele está demorando demais para acordar. Aaron! — ela chamou.

— S-sim, senhora! — O seu conselheiro chegou, fazendo uma continência.

— Acorde Adam. E deixe-o bem longe daquele violão imundo dele até que eu diga o contrário. Em breve partiremos. — Aaron assentiu rapidamente com a cabeça e saiu para acordar Adam.

— Pra onde? — Kurt indagou.

— Para a Pirâmide, senhor Kurt.

— O que você vai fazer lá?

— Você verá, senhor Kurt. Você verá.

— Senhora — Aaron voltou, trazendo numa mão um Adam grogue, cambaleante e amarrado pelas mãos, e na outra, o violão de Adam —, aqui está ele.

— Ótimo! Estamos prontos para partir, acredito. — A Rainha olhou para Kurt, Aaron e Adam. Tudo parecia estar ocorrendo perfeitamente. — Vamos descer, ir para o pátio e preparar os cavalos. A viagem daqui até à Pirâmide não é tão demorada, eu acredito. Kurt nos levará até lá.

— E-eu?!

— Sim, senhor Kurt. Agora vamos descer, todos nós. Estamos nos demorando demais aqui, e eu estou ansiosa para finalmente realizarmos o plano.

Todos desceram. Kurt, meio a contragosto, e Adam, sendo quase carregado por Aaron. Já a Rainha andava como se fosse a dona não apenas da Fortaleza, mas de todo o Mundo. Seu andar era desinibido, ousado e provocador — literalmente. Sentia-se renovada, e se seu plano realmente desse certo, ela teria modificado toda uma vida, todo um mundo, todo o Mundo.

Lembrou-se da primeira vez que vira as areias estarem agitadas daquela forma, havia muitos tempos, e o que acontecera após aquilo. Deveria se sentir agradecida por aquele acontecimento. Fora graças a ele que tudo começou a se encaixar em seus planos, apesar de alguns contratempos. De fato, era um acontecimento que modificara todo o curso do Mundo. Nada fora o mesmo desde aquilo, nada seria.

Era estranho pensar naquilo, na espécie de “calmaria” que havia pairado no mundo até que Annik acordara. Pareciam ser memórias de outra vida. Como um único ser humano numa multidão, um grão de areia no meio de um deserto, uma estrela no meio de um universo, conseguiu causar tantas mudanças?

O número de eventos extraordinários que aconteciam no Mundo parecia ser absurdo para um lugar que outrora fora tedioso, calmo e desértico. Annik acordando, o surgimento de uma menina sem nome, o plano da Rainha e rumores sobre o Caos. A Rainha não acreditava cegamente neles, mas se havia rumores, era porque havia algo estranho acontecendo de fato. Poderia até mesmo ser a explicação para tantos acontecimentos chocantes no Deserto. Pelo menos, era a única outra razão que a Rainha tinha além da mera coincidência.

Quando chegaram ao pátio, ela montou um cavalo branco, digno para uma Rainha. Kurt montou um cavalo cor de grafite que lhe lembrava a Dusk — que muito provavelmente havia morrido ou fugido para vagar pelo deserto sozinho, mas a Rainha não se importava com ele o suficiente para pensar nele naquele momento — e Aaron montou um cavalo marrom, colocando Adam atrás de si. Seria muito arriscado colocar Adam em um cavalo próprio depois daquele surto de raiva que ele tivera. Depois daquilo, a Rainha deveria tratar Adam como seu prisioneiro ao invés de seu subalterno. Já o violão de Adam, por ser muito grande, foi levado por Kurt.

— Kurt, leve-nos até a entrada da Pirâmide — a Rainha pediu. — Sei que ela é bem vigiada, e se nos aproximarmos demais, estaremos arriscando nossas vidas. Leve-nos até uma distância segura para que eu possa pedir ao nosso amigo Adam continuar o serviço.

— Sim, senhora. — Kurt assentiu e esporeou seu cavalo, fazendo-o galopar através do deserto.

A Rainha e Aaron fizeram o mesmo, e seus cavalos acompanharam o de Kurt naquela jornada até à Pirâmide. Atravessaram a tempestade que camuflava a Fortaleza de Areia e mais toneladas de toneladas de grãos de areia que formavam um Mar de Areia, o Sanduur. Atravessaram quilômetros de quilômetros de puro deserto que os separavam da Fortaleza até à Pirâmide. Tempos incontáveis, mas que duraram apenas uma noite, escura e silenciosa com exceção dos protestos de Adam, que logo recobrou totalmente sua consciência e começou a xingar a Rainha. Não demorou muito para que Aaron o amordaçasse a pedido da Rainha, e finalmente seguiram em verdadeiro silêncio até o lar do Faraó.

Quando chegaram lá — o que a Rainha jamais imaginou que iria acontecer, de tantos tempos que haviam se passado —, puderam perceber a magnificência da Pirâmide. Ela era tão alta quanto o Instituto do Conhecimento, a famosa e colossal Universidade, mas só a Pirâmide exalava uma aura de grandiosidade, poder e luxúria. Havia uma enorme passarela que levava até sua entrada, sendo tanto a passarela quanto a entrada fortemente guardadas por seguranças do Hasir, e logo depois, a colossal Pirâmide. Além dela, apenas o deserto, o céu da noite e a linha do horizonte, beeeem ao longe.

— Aqui é o mais longe que podemos chegar sem que eles nos vejam — avisou Kurt. — Seja lá o que a senhora for fazer, não vai poder avançar mais.

— Tudo bem, senhor Kurt. Essa distância está ótima. Agora, Aaron, coloque o senhor Adam de pé no solo.

Aaron a obedeceu, tirando Adam do cavalo e colocando-o de pé na areia, mas ele, de tanto ficar sentado, não suportou seu próprio peso e caiu no chão, soltando urros abafados pela mordaça.

— Retire a mordaça dele, Aaron — a Rainha também pediu, e seu conselheiro lhe obedeceu.

—... Você é uma desgraçada, nunca vai conseguir tirar nada de mim!! — foi o que Adam soltou depois que Aaron lhe retirou a mordaça. — E você, Kurt, você é um traidor, um TRAIDOR!!!

— É melhor que me obedeça, seu ingrato — ela o ameaçou —, ou eu posso fazer coisas piores que a morte com você e sua Annik. Kurt, dê o violão a ele. — Kurt desceu de seu cavalo e se aproximou de Adam com o instrumento na mão. — Espero que você esteja no clima para concertos hoje, senhor Adam, pois você terá de ler uma enorme partitura para mim.

— Jamais! — Adam protestou. — Você sabe o poder que isso tem?

— É claro. Se eu não soubesse, não teria pedido a você para ir atrás dele para mim, não é mesmo?

— O velho da Escola me disse para não tocar isso em hipótese alguma. Eu não vou obedecer a você, sua imunda! — Adam cuspiu no chão numa forma de escárnio contra a Rainha, mas ela não se deixou ofender. Já tinha ouvido coisa pior para se sentir mal com ofensas fracas como aquelas.

— Você vai obedecer por mal ou por bem. Lembre-se de sua Annik. Saiba que eu tenho poder para fazer o que eu quiser contra ela.

— Ela vai acabar com você. Ela sempre foi boa nisso, ah, sim.

— Eu não diria isso. Ela pode ser forte, mas não imortal ou invencível. Eu tenho em minhas mãos — Retirou as partituras da Música do Deserto de dentro de suas roupas e as mostrou a Adam — poder suficiente para fazer o que eu quiser com qualquer um. Kurt! Faça-o tocar esse maldito violão, seja por bem ou por mal!

— Certo, certo — Kurt respondeu, dando um tapa bem forte no rosto de Adam.

— Kurt... — Adam murmurou após o tapa. — Eu o conheci, não se lembra de mim?

— Como me esquecer? Você me entregou algo valioso naquele dia. Mas o jogo vira, meu camarada, e vira pro lado que está ganhando, pro lado que tem a melhor mão de cartas. E a Rainha tem a melhor, agora. — Ele soltou uma risadinha e esbofeteou Adam mais uma vez.

— Vocês já se conheciam? — perguntou a Rainha.

— Sim, senhora. Mas isso foi há muitos tempos, antes mesmo de eu me encontrar com o Faraó e muito antes ainda de eu me encontrar com a senhora. Ele me entregou algo valioso, e foi com isso que eu ganhei poder. Eu pensei que a senhora já soubesse, afinal, a senhora sempre sabe de tudo.

— Nem sempre, senhor Adam, nem sem...

— Você é um aproveitador, Kurt — Adam interrompeu-a.

— Se você não for um aproveitador no Deserto, meu amigo — Kurt lhe respondeu à altura —, não chega a lugar nenhum. — E o estapeou novamente. — Toque essa maldita música logo, minhas mãos estão doendo de tanto te bater.

— Faço isso apenas por Annik — ele respondeu. Pegou seu violão e o afinou, para depois começar a dedilhar algumas cordas timidamente.


E então, a Música do Deserto começou a soar.


Notas iam e vinham, seus dedos dançavam no violão, uma mão apertando as cordas e as outras as dedilhando, tudo isso de modo tão natural que já parecia inerente a ele. E talvez fosse. Talvez Adam já tivesse caído no Deserto com aquele dom da música.

Tocava de maneira tão bela que o Deserto se calava e se sentava diante de Adam para ouvir seu violão cantar. O sarlik parou de gemer ao fundo para ouvir a melodia que o Bardo dedilhava. Até mesmo os pensamentos de Kurt, Aaron e da Rainha cessaram para dar lugar ao verdadeiro som do Deserto que era emitido pelo violão de Adam. Nenhum deles parecia sequer piscar os olhos ao ouvir aqueles sons inigualáveis. Apenas Adam mantinha seus olhos fechados, apenas apreciando os sons e sentindo as cordas vibrarem em contato com suas mãos, e nenhum sentido além daqueles. Se abrisse os olhos, estragaria toda a sensação única de ouvir aqueles sons mágicos.

E o Deserto pareceu ficar ainda mais frio e silencioso do que antes.

A cada nota que Adam tocava, mais frio a Rainha sentia, mais as areias sob seus pés pareciam se remexer, se contorcer como se algo as apertasse desconfortavelmente.

E o Bardo seguia sua música parecendo nem perceber o que se passava. Não sentia o frio que pairava sobre o Deserto naquele momento nem a areia se remexendo sem razão sob suas pernas. Tudo o que havia em sua mente era música. Estava num estágio quase hipnótico em que não percebia nada além dos próprios sons que fazia e nas sensações que eles lhe transmitiam.

Ao longe, a Rainha viu as areias engolindo os guardas, puxando-os para dentro do deserto como se os sugassem. A terra pareceu tremer feito um terremoto, e a Rainha, Aaron e Kurt tiveram que se segurar para não caírem no chão. Apenas Adam conseguiu se manter estável, como se não tivesse sentido nenhuma daquelas vibrações no solo.

O Deserto, então, cuspiu figuras humanoides, todas envoltas em areia. Todos tinham armas, também feitas de areia, e nenhuma expressão no rosto. Possuíam rostos vazios, lisos. Pareciam ser vários bonequinhos que foram mergulhados na areia e depois removidos, agora completamente sujos. E eles eram tão silenciosos quanto sua mãe, o Deserto. Os únicos sons que emitiam eram os sons de seus passos, que soavam como um monte de grãos de areia sendo despejado por vários caminhões. Fora isso, não falavam nem respiravam. Várias daquelas figuras foram surgindo do fundo da areia a ponto de encher aquele local com incontáveis delas.

— O q-que é isso...? — perguntou Kurt, temeroso, mas ninguém lhe respondeu, porque estavam entretidos demais observando o aparecimento daqueles soldados de areia.

E foram surgindo tantos que, quando Adam finalizou a música, um exército de soldados de areia fora formado diante deles.

— Um exército... de areia... — sussurrou a Rainha. — O Exército de Areia.

O exército ficou em riste assim que a Rainha terminou de falar, e todos os outros ficaram em silêncio, apenas observando-os.

— Parecem pessoas cobertas por areia — Kurt comentou, tocando em um deles, que permaneceu parado feito uma estátua.

— Melhor entrarmos. Ainda há muito a ser feito. Aaron, amarre o senhor Adam novamente antes que ele tente algo perigoso contra mim. Enquanto isso, eu e Kurt entraremos na Pirâmide.

Aaron fez como lhe foi ordenado, mas Kurt rebateu a afirmação da Rainha:

— Não sei, senhora, olhe pra lá — Ele apontou para a entrada da Pirâmide. — Aparentemente os guardas do Faraó perceberam que havia algo estranho acontecendo aqui e vieram verificar.

— Não devemos nos preocupar, senhor Kurt — ela lhe respondeu. — Nós temos um exército ainda mais obediente do que o deles para nos defender.

O exército preparou suas armas num som arenoso — o mesmo som de quando a areia era escavada — e marchou ainda mais sincronicamente que o exército dos Corvos. Quando os guardas da Pirâmide aproximaram-se para o combate, logo foram dizimados. As armas de areia do exército eram tão afiadas quanto armas de metal bem amolado e rasgaram carne feito manteiga derretida. Mutilavam com tanta facilidade que braços, pernas e cabeças foram perfeitamente separados de seus corpos de origem com ainda mais limpeza nos cortes do que se tivessem sido feitos com armas tradicionais, de metal ou aço.

Teoricamente, nenhum soldado de areia morreu durante a batalha, pois assim que eram atingidos, explodiam em vários grãos de areia e caíam no chão para se recomporem logo depois. Um exército verdadeiramente invencível, não aquela mentira inventada pelo Hasir e pelos Corvos.

— Estão todos mortos? — perguntou Kurt.

— Provavelmente deve haver algumas sentinelas e os guardas pessoais do Faraó — respondeu a Rainha. — Nada que o nosso exército não dê conta. Se esse exército for tão poderoso como eu imagino, eles têm o poder para destruir tudo e todos sem precisarem dar um passo na direção de seus alvos.

— Então por que não acabar com o Faraó de uma só vez?

— Acalme-se, senhor Kurt. O Faraó é meu. E depois disso, terei cumprido o meu plano, e você terá sua esperada recompensa.

Ao ouvir aquilo, Kurt abriu um largo sorriso.

— Aaron — a Rainha pediu —, peça a Adam para tocar mais algumas notas. Peça para tocar as notas certas. Ele saberá quais são.

Aaron concordou, tirou sua faca de dentro de suas roupas, e colocou-a em seu pescoço como fizera no dia em que ele retornara com a Música. Aquilo foi intimidante o suficiente para o Bardo tocar as notas.

Notas que foram o gatilho para que o exército de areia agitasse o chão com suas armas. Assim que a corda da última nota parou de vibrar no violão de Adam, o exército pegou suas armas e as bateu com força no chão. O som, apesar de arenoso, foi forte. TUM. E ecoou por todo o deserto. A Pirâmide até mesmo estremeceu diante daquele som que acentuou ainda mais o silêncio do deserto.

— Acredito que podemos entrar agora, senhor Kurt — disse a Rainha. — Aaron, acredito que já é tempo para prendermos Adam novamente. Desta vez, amarre suas mãos e o amordace. Eu e Kurt entraremos na Pirâmide, e você ficará aqui para vigiar nosso... subalterno. — Ela sorriu, e Aaron apressou-se para cumprir o que lhe fora ordenado.

Juntamente com Kurt, a Rainha entrou caminhou pela passarela até à Pirâmide, agora sem se preocuparem com guardas para lhes impedir.

O salão do trono estava num breu que só era cortado pela claridade de algumas poucas velas. Apesar de o salão estar aparentemente vazio, lá dentro não estava tão silencioso quanto do lado de fora, no Deserto. Lá dentro, pelo menos era possível ouvir os próprios passos ecoando. Os saltos das botas da Rainha e de Kurt faziam um toc, toc agradável aos ouvidos. Porém, após andarem alguns passos, os seus saltos não mais fizeram toc, toc, e sim, um som que se assemelhava a pisar em areia. A Rainha olhou para baixo e viu areia espalhada por todo o chão.

— O que toda essa areia está fazendo aqui? — perguntou Kurt, tentando limpar a areia que se alojava em alguns sulcos de suas botas.

— Eu não tenho certeza, mas tenho uma ideia do que seja... — ela respondeu, olhando ao redor à procura de vestígios do Hasir.

— Caramba, o Faraó queria criar um outro deserto aqui dentro? — Kurt andou se chacoalhando todo, tirando a areia que entrava em suas roupas.

A areia que outrora estava no chão e nas roupas de Kurt então começaram a deslizar para fora do salão.

— Que merda é essa? — indagou Kurt.

— As areias querem se reunir com o exército, senhor Kurt.

— Quê? Como assim?

— Essas areias são apenas resquícios daqueles que estiveram neste salão. Todos eles, transformados em pó. Com exceção do Hasir, é claro. Ele ainda está por aí, escondido. E é melhor que ele saia.

Você... — uma voz ácida surgiu do fundo da sala, vindo bem de onde se localizava o trono. Kurt e a Rainha logo se viraram em direção à voz. O Hasir estava de joelhos atrás de seu trono e engatinhava para sair daquele lugar. Seu olhar era pura ira. Mesmo naquele breu, seus olhos de fúria pareciam pegar fogo. Ele apontou para Kurt e vociferou: — TRAIDOR!!!

— É a segunda vez que me chamam de traidor hoje — respondeu o subalterno da Rainha. — Sinto lhe informar que isso não me ofende, senhor Faraó.

O Faraó deu um berro raivoso, levantou-se e partiu para cima de Kurt com uma faca em sua mão esquerda. Kurt tentou se desvencilhar, mas não conseguiu e foi ao chão, o Hasir sobre ele, tentando cortar sua garganta apesar dos esforços do subalterno de tentar afastar a mão do Faraó. Em suas tentativas de evitar o golpe, Kurt conseguiu fazer com que a faca caísse da mão de seu oponente. A Rainha, não perdendo a oportunidade, abaixou-se e pegou a faca. Quando se levantou, viu que Kurt conseguira chutar o Hasir para longe, e agora este cambaleava no chão do seu salão, provavelmente percebendo que seu reinado estava prestes a ter um fim ali.

A Rainha aproximou-se do Hasir com a faca firme em sua mão e proferiu:

— Por muitos tempos sonhei em fazer isto, em acabar com você com minhas próprias mãos. É chegada a hora do seu fim, Faraó. — E ela esfaqueou sua garganta num golpe sangrento e violento. Atingiu bem sua artéria, que começou a jorrar sangue, enlambuzando as mãos e o vestido da Rainha e o chão do salão. — Está feito — ela disse, quando o sangue que jorrava do golpe final que Faraó recebera se estancou. — O plano foi cumprido com êxito.

— Minha recompensa... Senhora... — Kurt respondeu, sua voz ofegante por causa da luta.

— É claro, senhor Kurt.

A Rainha foi até o corpo do Faraó e removeu a faca de sua garganta. Aproximou-se de Kurt e disse:

— Aqui está ela, senhor Kurt.

— O... quê...?!

E cravou a faca em seu peito, fazendo-o soltar um gemido fino de dor, quase um choramingo.

— Diferente de Adam — ela comentou —, você não tem mais propósito para mim, senhor Kurt. Você foi chamado de traidor duas vezes hoje. Não quero que isso aconteça uma terceira vez. Mas eu vou deixá-lo observar minha vitória enquanto agoniza.

Caminhou lentamente em direção ao trono de mármore Faraó e nele se sentou. Era gelado e desconfortável, no entanto, para a Rainha, era como estar se sentando num sofá de couro.

— O senhor sempre foi muito ambicioso, senhor Kurt — disse enquanto se ajeitava no seu novo trono —, e eu sempre admirei isso em você, mas você nunca foi tão ambicioso quanto eu.

— E-eu sempre achei que a senhora fosse algo próximo da... da ordem... Mas agora... vejo que você... — Ele soltou outro gemido muito agudo. —... Vejo que você é o c-caos... O caos em pessoa... — Kurt soltou mais um gemido, vomitou uma golfada de sangue e, por fim, soltou um suspiro. Um último suspiro.

Talvez Kurt estivesse certo ao dizer que ela era o caos. Na verdade, ele estava certo. O caos age por meios estranhos, às vezes, meios que parecem ser ordenados, mas que geram uma enorme desordem em seus fins. Ou talvez nunca gerem fins. Podem gerar apenas meios e meios e meios, incontáveis meios, desordenados e caóticos, que se acumulavam feito uma bola de neve. A Rainha era exatamente aquilo: um processo ordenado, mas que mudava completamente de curso em seu final. Se houvesse um final, é claro. Mas aquele não era seu plano final. Havia outros e haveria outros. Apenas haveria um fim para seus planos quando morresse.

A Rainha permaneceu sentada no que agora era o seu trono, a sua Fortaleza, o seu Mundo. E o silêncio permanecia, pairava naquele local que agora era dominado pela morte — talvez fosse por causa daquilo que o silêncio fazia parte daquele lugar: por causa da morte —, até quando finalmente Aaron apareceu através da porta, perguntando por ela:

— Senhora...?

— Sim, Aaron?

— O que... o que houve aqui...?!

— Meus planos tiveram êxito, Aaron.

— O senhor Kurt...

— O senhor Kurt está morto, Aaron.

— E-e o que é i-isso? — Ele apontou tremulamente para sua mão suja de sangue.

— Isto? Oh, não é nada com o que se preocupar, Aaron.

— C-c-certo... E quanto a Adam? O que devo fazer com ele? Ele está muito agitado, senhora.

— Deixe-o vivo. Embora esse plano tenha sido finalizado, eu ainda tenho outros em mente, Aaron, e o senhor Adam, querendo ou não, faz parte deles.


“Os fins justificam os meios.”

— Autor desconhecido.


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