Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 68
LX - Revelações




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LX

Revelações


O céu da noite escura do Deserto estava deixando de ser escuro e apenas estrelado para conter finalmente algumas belezas cósmicas a mais. Da última vez que tinham visto um céu daqueles, ainda estavam no frio insuportável da Tundra, voltando para a secura e a solidão do Deserto.

À medida que se distanciavam do acampamento dos Nômades — que agora nem mesmo podia ser visto ao longe —, mais a Rodovia se tornava um desafio a ser enfrentado. As suas pernas não mais aguentavam dar tantos passos. Eventualmente, Annik e Alice necessitavam parar para descansar para depois se levantarem e continuarem a árdua caminhada. Annik dizia que já estavam chegando, mas ela não parecia animada com a ideia. Uma atitude estranha para ela, que sempre teve como objetivo chegar ao Fim do Mundo. A Menina, todavia, não se incomodou muito. Talvez ela estivesse apenas cansada de tanto vagar. Sabia que, quando realmente estivessem chegando lá, ela ficaria mais animada com a ideia.

Caminhavam, então, seguindo a Rodovia, apenas tendo como cenário as dunas do deserto e a noite que ia se iluminando aos poucos. Porém, em certo momento, viram uma enorme árvore ao longe, com grossos troncos e de copa cheia de folhas. Ela crescia em meio aos grãos de areia do Deserto, e a Menina se perguntava como ela conseguia resistir à aspereza daquele lugar. Annik também pareceu reparar naquela árvore, pois estava com os olhos fixos nela enquanto caminhava.

— É aqui — ela subitamente disse.

— Aqui o quê? — a Menina perguntou.

— O lugar que Ahmed nos falou sobre quando estávamos em sua casa. Ele nos disse para seguir a Rodovia e que o lugar era bem peculiar. Bem, nunca vi nada mais peculiar que uma árvore crescendo no meio da areia, então assumo que seja aqui.

Enquanto caminhavam até lá, a Menina pôde perceber que uma cabana de madeira se assentava num dos grossos galhos da árvore. Havia uma escada entalhada no tronco que levava até à porta de entrada da casa. Quando chegaram até à árvore, puderam perceber que havia uma espécie de sineta sobre uma banqueta de madeira, como as usadas em lojas para alertar o vendedor de que há um cliente à espera.

Annik tocou a sineta, esperou um pouco, mas nada aconteceu. Ela tocou de novo, esperou e mais uma vez, nada aconteceu. Tocou pela terceira vez, e finalmente algo aconteceu, contudo, não era exatamente o que esperavam. Ao invés de o dono daquela casa aparecer e recebê-las, a porta da cabana de madeira simplesmente abriu, rangendo de um jeito tão insuportável que a Menina sentiu um arrepio na espinha e uma vontade de se contorcer toda.

— Acho que ele quer que nós entremos — analisou Annik. A Menina simplesmente assentiu, ainda com o barulho horrível na cabeça, sem nem prestar atenção no que Annik dissera.

Em seguida, as duas subiram a escadinha e entraram.


Entraram para não saírem do mesmo jeito.


Assim que a Menina pôs os pés na madeira barulhenta da casa do homem, sentiu um forte cheiro de incenso. Aquela cabana parecia ser uma casa de bruxa como nas histórias que os pais contam aos filhos antes de dormir: havia prateleiras com vários objetos estranhos, como ossos, jarros com insetos e pedaços do corpo humano, folhas, tigelas de madeira com ingredientes em pó e outras coisas que Alice não sabia nem mesmo descrever. O dono daquela casa remexia um caldeirão de onde saía um estranho brilho verde, tal como uma poção. Automaticamente, a Menina assimilou a imagem do velho com a de um feiticeiro.

Ele não se importou com o fato de ter visitas em sua casa, aparentemente, pois não desviou seu olhar de seu caldeirão e continuou a acrescentar ingredientes e a remexer seu caldo verde fosforescente.

— Ahm, senhor... — Annik o chamou. Ela aproximou-se dele por trás e o tocou no ombro, e só assim ele virou-se e olhou para elas.

Era um velho muito enrugado, sem barba, lábios finos e murchos que indicavam gengivas sem dentes, narizes e orelhas enormes e olhos minúsculos incrustados em sua face. Ele deu um sorriso desdentado para Annik, mas depois voltou a mexer sua poção — ou o que quer que fosse aquilo.

— Ahmed nos enviou até aqui, senhor... — continuou Annik. — Por que não consigo ler seu nome?

Kra’vstanlas — ele simplesmente disse.

— O quê? — Alice respondeu. — Ele é um sem nome que nem eu?

— Acho que ele está se referindo a você — Annik observou. — Senhor, eu... Nós gostaríamos de respostas.

— Todas as respostas levam a outras perguntas — o velho subitamente disse. — O kra’vstan por muito tempo foi incompreendido. Hoje, eu possuo as respostas.

Annik e Alice surpreenderam-se com a fala inesperada do velho, e ele desatou a dizer:

— Achavam que o kra’vstan era inútil. Pobres tolos... O kra’vstan é uma das maiores armas existentes no Mundo. “As palavras têm poder”, é o que dizem, e é verdade. Posso ver que seu kra’vstan é muito poderoso, senhora Annik. — Era estranho para a Menina ver alguém chamando Annik de senhora. Primeiro, porque ela não parecia ser uma senhora; na verdade, parecia ser muito jovem. Segundo, porque era difícil ver pessoas tratando-a daquele modo educado e, de certa forma, superior. — Imagine se todos os kra’vstanva fossem reunidos? Todas as palavras?

— Isso... Isso é possível?

— Sim, minha querida, sim... Esse é o objetivo primário do kra’vstan, senhora Annik, ser uma arma. O kra’vstan é a espada do Kra’vstanlas contra o Caos. O Kra’vstanlas é o mestre das palavras. Enquanto todos são dominados por elas, ele as domina e as usa como artifício para destruir as forças do Caos. “As palavras têm poder”, lembrem-se disso, e o Caos também o tem. Mas eu imagino que vocês tenham perguntas mais importantes para agora...

— No que resultaria a reunião de todos os kra’vstanva existentes?

— Eu infelizmente não tenho o poder para saber isso, minha querida. Apenas o Kra’vstanlas o tem, como Mestre das Palavras. Mas digam mais, por favor, acredito que suas perguntas não se resumem apenas a isso.

— Q-quem é você? — Annik já estava ficando assustada e desconfiada com aquilo.

— A senhora me conhece como Alexander.

— Príncipe Alexander...! — Ela arregalou os olhos. — Por que não posso ler seu nome?

— Tenho uma técnica que torna os nomes ilegíveis. Isso, porém, não significa que eu seja um sem nome como ela. — Apontou para a Menina. — Falando nisso, acredito que vocês tenham perguntas em relação a isso, não é mesmo?

— S-sim — Annik gaguejava. Para uma pessoa de fala firme como ela, gaguejar deveria significar estar diante de algo muito impactante.

— Pois bem, minha querida... — O velho Alexander parou de remexer seu caldeirão, buscou um banco perto de si e se sentou nele. — Durante meus anos de estudo em reclusão, após ter fugido da Organização, eu, por acaso, descobri o motivo, o porquê de o Kra’vstanlas não possuir nome.

— Por favor, diga... — Os olhos de Annik brilhavam de curiosidade. Seus punhos estavam cerrados tamanha a ansiedade que sentia.

— Eu lhes diria, mas agora, vejo que posso lhes mostrar. — Ele caminhou até o fundo de sua cabana, pegou algo de uma de suas prateleiras, voltou até elas e lhes entregou dois espelhos, um para Annik e outro para Alice. — Observem. Observem—se. O que veem?

— Eu vejo minha imagem no espelho.

— Sim, sim, minha querida, mas já observou as feições dessa que chama de “Alice”?

— É claro que sim.

— Annik — a Menina se intrometeu —, eu entendi o que ele quis dizer.

— O quê?

— Ele quis dizer que nós somos parecidas. Não a ponto de sermos idênticas, mas temos semelhanças muito grandes.

— Como quais?

— Temos os mesmos olhos. O mesmo formato, a mesma cor, o mesmo jeito de olhar para as coisas. Caramba, como eu nunca reparei nisso? Pra falar a verdade, até reparei, mas não achei que isso fosse tão... importante e nunca dei muita atenção pra isso.

— O que você está querendo dizer com isso, Mestre Alexander?

— Sabe, senhora Annik, acredito que você já tenha ouvido falar sobre outros mundos além deste. As pessoas não caem no Mundo à toa, minha querida. Todas elas vêm de algum lugar, de algum universo além deste. Cada um que cai aqui, recebe um nome. Você foi agraciada com o nome “Annik”. Mas por que ela — Ele voltou-se para Alice — não possui um nome?

— Eu... Eu não sei. — Annik deu de ombros.

— Talvez ela possa ter um nome igual ao de outra pessoa, não? Nunca parou para pensar por que não existem duas pessoas de nome igual no Mundo?

— N-não, mas...

— Existem vários universos paralelos, minha querida, e existe uma representação de você em cada um deles — ele continuou. — Algumas com histórias bem similares umas das outras, outras com vidas completamente diferentes. Mas em cada um desses mundos, você existiu, existe ou existirá.

— N-não pode s-ser... — Annik levou a mão à boca. Ela estava vermelha como se tivesse se queimado de sol num dia de praia. — V-você não está querendo dizer q-que eu... Alice... N-não... — Ela parecia completamente perdida. A Menina também estava boquiaberta, mas não tão impactada quanto Annik.

— Sim, minha querida. É isso que estou querendo dizer. Você e Alice, são, na verdade, uma só pessoa, separadas por universos diferentes, mas agora, ligadas uma à outra por um vínculo ainda maior do que vocês imaginavam. Alice é, na verdade, Annik.

E então, a Menina Sem Nome passou a ter um nome.


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