Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 65
LVII - As Trincheiras de Areia




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LVII

As Trincheiras de Areia


O coração de Annik pulava de medo e nervosismo quando chegaram ao campo de batalha.

As trincheiras foram sendo ocupadas pelos Nômades, e Os Lobos dominaram o território em frente às escavações, que não tinha sido remexido. Os Nômades apontavam suas armas de fogo para fora das trincheiras, e Os Lobos estavam em formação bem à frente delas.

Annik também apontava seu fuzil, mas suas mãos tremiam muito, fazendo com que ela se mexesse constantemente. Os outros Nômades que estavam na trincheira com ela deveriam estar se sentindo bastante incomodados com sua agitação.

Seth infelizmente não estava com ela. A presença dele iria acalmá-la, mas ele estava em outra trincheira, fazendo sua preocupação aumentar ainda mais. E se ele fosse ferido? Como ela iria lutar sem saber como ele estava? Ao menos não tinha de se preocupar com Alice, mas seu maior medo, no fundo, também era relacionado a ela. Se morresse, o que aconteceria com ela? Sentiu sua mandíbula tremer de tanto medo que aquela pergunta lhe causava.

Em um curto período de tempo, Annik começou a ouvir os sons dos passos pesados do exército da Organização, o exército jamais perdedor de uma batalha sequer, caminhando em direção às trincheiras. Tentou manter sua mão estável, apontando para frente e com o dedo rápido no gatilho de seu fuzil de caça não-automático. Assim que viu a primeira sombra dos inimigos, apertou os olhos para ver um pouco melhor, e quando a cabeça deles surgiu sobre a areia, Annik atirou.

Durante aquele momento até o final da batalha, tudo o que se ouviu foram os sons de tiros e gritos de dor. A primeira vítima de Annik fora atingida na cabeça, bem no olho esquerdo.

Annik atingiu outros mais. Depois da primeira morte, algo inflou em seu peito, fazendo-a com que quisesse matar mais e mais. Mas aquilo não parecia completá-la nunca. Sempre que matava uma pessoa, depois queria matar duas. Após matar duas, queria quatro e assim por diante, numa progressão geométrica sem fim.

Os membros do exército ainda estavam como alvos fáceis, visto que estavam engalfinhados na batalha corpo a corpo contra Os Lobos. Porém, logo mais inimigos vieram das laterais, atirando contra os soldados nas trincheiras, e as primeiras mortes dos Nômades começaram a ser contabilizadas. Um soldado bem ao lado de Annik também foi atingido na cabeça. Um ferimento horrível, para falar a verdade. Tinha vindo de uma sniper, muito provavelmente, porque a bala era tão poderosa que abriu um enorme buraco sangrento em sua cabeça, de onde saía até mesmo pedaços de cérebro.

Tão rapidamente quanto o início das mortes, o cheiro dela também começou a exalar. Annik conhecia bastante bem aquele cheiro nojento de pus e ferimento infeccionado — tinha o sentido bastante em suas batalhas ainda mais sangrentas contra a Organização na época em que era Legionária.

Os outros soldados da trincheira onde estava começaram a entrar em pânico assim que o primeiro morreu. Annik, por mais experiente que fosse, também sentia que estava com muito medo. Na verdade, ela nem mesmo sabia como se sentir diante daquela situação, se deveria se acalmar ou pegar firme no gatilho e atirar com ainda mais ardor.

Então, começou a sentir como se tudo estivesse ficando devagar demais. Pôde perceber o som de cada disparo; do seu fuzil, das metralhadoras dos outros Nômades perto de si, das snipers dos inimigos ao longe. Parecia que o seu dedo no gatilho ficou mais devagar, também. Sentiu claramente a textura lisa e gelada da arma em suas mãos. Viu os inimigos caminhando, e não correndo, em sua direção. As balas pareciam flutuar no ar, de tão lentas, atingindo os inimigos. Naquela velocidade, parecia que elas iriam apenas bater nos corpos deles e cair, como se tivessem sido simplesmente jogadas ao vento, não atiradas através de uma arma de fogo. Mas elas perfuravam, e o sangue parecia não ter gravidade, porque tudo estava tão devagar que parecia que os líquidos eram mais viscosos que o mel. Até mesmo o suor que escorria em sua têmpora teimava em não cair. Sentiu as balas dos inimigos zumbirem próximas aos seus ouvidos e levantarem seus cabelos. Até mesmo suas balas estavam devagar: quando atirou, viu perfeitamente o fogo da arma, sentiu perfeitamente seu recuo e viu sua trajetória até atingir o pescoço de alguém. Todavia, para caminhar também era igualmente difícil; seus pés pareciam ter sido acorrentados a chumbo, porque estavam pesados e demoravam a obedecer aos seus comandos.

Apenas sua mente permanecia na velocidade normal, porém estava silenciosa. Estava mais silenciosa do que uma cabine isolada acusticamente. Nem mesmo conseguia ouvir seus próprios pensamentos. Não havia o que pensar. Apenas agia conforme seus reflexos mandavam.

E a batalha seguiu-se naquele caos silencioso até o seu fim, quando apenas restaram os seus vencedores: Os Nômades e Os Lobos.

Annik sentiu tudo voltar ao normal: sua mente, seus movimentos, a gravidade. Seja lá o que fosse aquilo, tinha feito a batalha passar mais depressa, mas Annik não sabia se era ou não grata por aquilo. Imaginava que tinha sido o calor e a adrenalina em seu corpo, mas nunca tinha sentido aquilo nas outras batalhas que travara. Ou talvez pudesse ser o Caos. Seth tinha dito que o sentira antes, mas não soube descrevê-lo. E se aquilo fosse o Caos? Porque, para Annik, a sensação que tivera também fora quase indescritível e inimaginável.

Ao fim da ameaça, Annik saiu da trincheira e viu-se num verdadeiro mar de sangue. Os sobreviventes estavam também se recompondo e saindo dos buracos cavados na areia. Muitos feridos eram levados em macas improvisadas, e não eram poucos. A maioria era dos Nômades, com alguns poucos dos Lobos. Já Os Corvos tinham sido completamente exterminados, não restando um único sobrevivente. Aqueles que fugiram ou sobreviveram foram capturados e degolados pelas armas afiadas dos Lobos.

Havia corpos em todos os lugares. Vísceras, tripas, órgãos, sangue, ossos, tudo aquilo era visível naquele campo de batalha. A areia, naquele lugar, tinha se tornado vermelha. Era impossível andar sem esbarrar num corpo ou sem escorregar num órgão esparramado pelo chão. Enquanto Annik andava, às vezes ouvia um crec, e quando olhava para baixo, via que tinha pisado num osso de algum ferimento exposto de alguém, mas não era muito comum.

Naquele momento, Annik estava à procura de Seth, a maior fonte de suas preocupações, mas uma voz alta e grave chamou-lhe a atenção:

— Annik! — Annik virou-se e viu Seth ileso caminhando em sua direção.

— Seth. — Suspirou de alívio. — Fico feliz que esteja bem.

— E eu fico feliz que você tenha praticamente ganhado essa batalha sozinha! — Ele abriu um largo sorriso e abraçou Annik tão fortemente que ela sentiu seus ossos estalarem e seus pés saírem do chão. Ele logo a pôs de volta, quando viu a cara dela contorcer de dor e desagrado. Annik gostava de quando Alice a tratava com afeto, mas Seth era um pouco bruto no que dizia respeito a contato físico. — É uma pena que a gente tenha perdido muitos dos nossos. Inclusive aquele seu cavalo, Dusk, morreu. Estava servindo de montaria pra um dos nossos, mas uma lança de um desgraçado acertou o cavalo, e o soldado morreu quando caiu. — Annik não sentia nada por aquele cavalo, nem gosto nem desgosto. Aquele infortúnio sinceramente não a abalava. Contudo, suas feições ainda estavam preocupadas, pensando na estranha sensação que tinha sentido durante a batalha, e aquilo sim lhe era mais preocupante que a morte de Dusk. — Mas o que você fez ali foi... incrível! Nunca vi alguém abater tantas pessoas tão rápido assim. O que você fez?

Annik engoliu em seco e respondeu, sem nem olhar para Seth:

— Seth, eu o senti. Senti o Caos.

— O quê?

— Eu nunca senti algo tão... estranho. Por um momento, foi como se tudo ficasse devagar e em silêncio. Até mesmo minha mente pareceu ficar em silêncio. Eu conseguia pensar, mas foi como se o meu pensamento não se transformasse em palavras. Ele era simplesmente... pensamento.

Seth colocou a mão sobre a boca, mas suas sobrancelhas deixavam claro que ele estava surpreso — e preocupado, também.

— Foi exatamente o que eu senti quando eu senti o Caos pela primeira vez. Não sei como você consegue pôr todas essas coisas em palavras, mas, Annik, se você sente alguma coisa, seja ela mínima, por aquela sua garota...

— Alice.

— Sim. Se ela não tem o poder de fazer nada contra isso, você tem que mandar ela ir embora daqui. Você sentiu agora como esse Caos pode nos afetar, Annik, e olha que nem estamos nas Bordas do Mundo ainda. Se aqui ele tem esse efeito sobre nós, imagina lá no Fim? Mas se eu não posso impedir suas loucuras, pelo menos posso impedir que você faça isso com outra pessoa. Então por favor me escute: leve a menina pra longe daqui.

Annik abaixou a cabeça. Imaginou que fosse se sentir pior ao finalmente ter que ouvir aquilo, ter que tomar aquela decisão, porém, no fundo, sua mente já sabia que aquela era a única alternativa.

— Tudo bem, Seth. Você está certo. Eu... Eu jamais seria capaz de deixar Alice aqui, no meio desse Caos, por mais que ela seja uma pessoa muito especial para mim. Mas se você puder me ajudar uma última vez, me diga como vou fazer isso?

— Sei de alguém. Me disseram que era uma espécie de navio. Um navio que navegava, mas não pelos mares, e sim pelos céus. O seu capitão é um homem que se diz Petrov. Ouvi esses boatos de um viajante que passou por nós certa vez. Disse que sabia de muitos segredos, e um deles era esse. Ele me contou quando eu falei sobre ele do Caos e acrescentou que esse homem poderia te levar pra qualquer lugar. Duvido muito de que seja verdade, mas por que não tentar, não é mesmo?

— E onde esse Petrov fica? Ele pede alguma coisa em troca?

— Segundo ele, basta seguir a Rodovia até encontrar, ao longe, um enorme navio ancorado no ar. Não tem erro. E pelo que minha fonte me contou, Petrov é um colecionador. Gosta de tralhas. Apenas torça para que o que você der a ele também lhe agrade.

— Eu... Eu vou fazer isso. A segurança de Alice vale mais para mim do que tudo que eu já tive ou quero ter. Mas por que você também se importa tanto com ela?

— Eu sei que ela é importante pra você. Olha o jeito que você fala dela! Ela é a pessoa mais importante que você já teve desde Adam, e não quero que nem ela nem você tenham o mesmo fim que você e Adam tiveram.

— Não quero que ela vá embora. — Por um momento, pareceu impossível resistir à tentação de chorar, mas Annik se controlou. Fez uma pausa, suspirou e então continuou: — Acredito que está na hora de ir. Você me ajudou mais do que o esperado, Seth. Densk.

Seth simplesmente abaixou profundamente a cabeça, mas não o respondeu. Annik também fez o mesmo e em seguida voltou para o acampamento. Lá reencontrou Alice, que a abraçou ainda mais forte do que Seth fizera quando a batalha terminara.

— Eu pensei que você tinha morrido!! — ela choramingava entre lágrimas e voltava a abraçar Annik novamente. Àquela altura, o corpo de Annik já estava todo dolorido de tantos abraços extremamente apertados ela já recebera. Mas os de Alice a reconfortavam. Contudo, eles também a machucavam quando imaginava que teria de se despedir dela em poucos tempos. Deveria aproveitá-los enquanto ela ainda estava consigo.

Quando terminaram de se reencontrar, Annik e Alice finalmente despediram-se de Seth e dos outros Nômades silenciosamente, apenas com um acenar de mãos. Logo, já estavam com os pés na Rodovia. Daquela vez, não havia o carro nem Dusk para levá-las aonde queriam ir.

Sobre Dusk, inclusive, a Menina reagiu relativamente bem à morte dele. Reagiu exatamente como Annik tinha reagido, para ser mais detalhista. Naquele momento, ela percebeu que Alice também não gostava muito dele.

Alice também perguntara sobre aonde iriam daquela vez. Annik já tinha ensaiado a resposta para aquela pergunta.

— Para o Fim.

— O Fim? Mas Seth...

— Não se importe com o que Seth disse. Vai ficar tudo bem. — E sorriu, apesar de ter se forçado para fazê-lo, porque não era um sorriso verdadeiro. No entanto, era bem menos doloroso do que contar a verdade.


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