Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 64
LVI - Pré-Guerra




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/653186/chapter/64

LVI

Pré-Guerra


Os dias que se passaram no acampamento dos Nômades foram diferentes do que a Menina estava acostumada.

Logo depois de Annik ter tido aquela longa conversa com Alice, ambas arrumaram a tenda onde ficariam. Era estranho para a Menina ter um lugar para dormir. Tinha se acostumado a dormir dentro de um carro, ao relento, ou sobre um cavalo. Os únicos momentos em que ela realmente tivera um teto sobre sua cabeça foi quando fora para a casa de Isaac e, depois, para a casa de Ahmed, mas sempre como hóspede. Ali, naquela tenda, não havia ninguém senão ela e Annik. Na verdade, não havia ninguém além dela mesma, já que Annik ficava quase sempre fora.

Na maioria das vezes, ela estava atirando com alguma arma. Alice gostava de ficar assistindo-lhe sem que ela visse. Era melhor do que ficar dentro da cabana, entediada. Via-a atirar com rifles de precisão, rifles de assalto, espingardas, pistolas, todos os tipos de armas de fogo, e sua mira era sempre excelente com qualquer arma. Não era à toa que Seth a queria no seu exército: Annik valia por dez soldados. Alice via-a competir com outros Nômades e sentia, no fundo, um orgulho dela, porque ela era melhor que qualquer um ali.

O problema é que quase não havia ninguém para conversar. Seth era o único que parecia mais aberto a trocar palavras. Todavia, Alice não se sentia muito confortável em conversar com ele, apenas com Annik. Contudo, mesmo no pouco tempo em que ela ficava livre, ela parecia estar sempre com a mente em outro lugar e não falava uma palavra. Parecia que ficar naquele lugar estava tornando-a silenciosa novamente, como quando haviam se conhecido.

Alice, em seu tempo livre, também ficava pensando constantemente nas palavras que Annik tinha lhe dito no dia em que tiveram aquela longa conversa. It utrat vus, fora o que ela tinha dito. Não tinha ideia do que aquilo significava, mas sabia que era algo agradável. Àquela altura, a Menina não tinha dúvidas de que Annik a estimava muito e não imaginava que ela lhe diria algo grosseiro. Mesmo sem saber o que significava, era agradável de ouvi-la dizer aquilo mentalmente. O kra’vstan era um idioma muito agradável de ser ouvido.

Havia alguns livros sobre o idioma dentro da caixa que tinham aberto para decorarem a tenda onde estavam morando. Alice aproveitou aquele tempo livre para lê-los e aprender mais sobre aquele idioma. No entanto, o livro que lera não era nenhum dicionário, então continuou sem saber o significado daquelas palavras. Estava mais para um livro sobre a gramática do kra’vstan, que misturava linguística com o pensamento. Era estranho, mas a Menina pôde finalmente compreender alguns preceitos básicos do idioma falado no Mundo.

Às vezes, Annik terminava seus afazeres e ia para a tenda onde, pelo menos naqueles tempos, moravam. Ela deitava-se no tapete — que servia como uma cama, para os Nômades —, ao lado da Menina, mas não falava nem dormia. Apenas ficava deitada, olhando para o teto, pensando no que haveria de ser. A Menina percebia algumas vezes quando ela ia se deitar, porque sempre acordava quando ela entrava na cabana.

Havia dias em que ela nem mesmo entrava na tenda e ficava do lado de fora, olhando o deserto, sentada sobre uma caixa de mantimentos. Alice sabia disso porque, em um desses dias em que Annik não entrou para se deitar, a Menina acordara e, não a vendo ali dentro, procurou-a do lado de fora e a viu sentada perto de onde treinava todos os dias.

Estava muito frio do lado de fora — as noites do deserto eram sempre muito frias —, mas Annik não usava seu sobretudo; tinha deixado-o pendurado num cabide dentro da tenda. Vestia, ao invés do sobretudo, sua velha camisa branca, deixando à mostra suas tatuagens incompreensíveis. Apesar de que Alice já a tinha visto até mesmo sem roupa, era muito estranho vê-la sem suas vestes usuais.

— Annik — disse a Menina, mas Annik não lhe respondeu, apenas abaixou a cabeça. A Menina, não satisfeita com aquela resposta, se é que poderia chamá-la assim, aproximou-se dela e tocou em seu ombro. — Annik — repetiu. — Por que você não vem pra cama?

— Quero ficar aqui fora, pensando — mesmo tendo respondido à Menina, Annik o fez sem virar o rosto para vê-la. Sua voz soava deprimente. Alice imaginava o porquê. Na verdade, sabia o porquê. Depois daquela confissão enorme que ela havia lhe feito, não era difícil de ter certeza, para falar a verdade. Às vezes, quando se pegava pensando em alguns detalhes do que Annik tinha lhe dito, ficava com lágrimas nos olhos.

— Tá bom. Só não fique aqui fora o tempo todo, tá? — A Menina abraçou-a e beijou-a na testa. Annik reagiu ao afeto de uma forma inesperada: ela puxou-a mais para perto de si e abraçou-a com força, recostando sua cabeça no ombro de Alice. Sentiu a respiração quente dela em seu pescoço. A Menina logo sentiu o coração bater mais rápido: não sabia como reagir àquilo. Quando se desfizeram do abraço, que demorou bastante, Annik continuou em silêncio, sentada e observando o Deserto ao longe, e a Menina voltou à tenda para continuar seu sono.

Também tinha tentado conversar um pouco com Dusk, mas ele era muito insuportável para a Menina. Estava sempre tentando incomodá-la falando de Annik ou dela própria, mas não tanto quando ainda estavam a caminho do acampamento. Agora que ele estava lá — Seth tinha permitido que ele ficasse junto dos outros animais —, era bem tratado pelo povo que vivia ali.

— Estar aqui é melhor do que com a Rainha — ele dizia. — Pelo menos aqui ganho mais torrões de açúcar do que com ela.

E então a Menina continuava entediada, apenas trocando algumas palavras com Dusk enquanto assistia a Annik fazer alguma coisa que normalmente envolvia armas e silêncio, muito silêncio.

O tédio só acabou após alguns tempos, quando Os Lobos chegaram. Ao invés de responderem à carta de Seth, eles subitamente apareceram, para a surpresa de todos.

— Eles são assim, Os Lobos — explicara Annik. — São sem rodeios para as coisas.

Eram um povo de feições duras e que parecia igualmente áspero. Vivendo no ambiente em que viviam, Alice entendia por que eram daquele modo: a Tundra era um local ainda mais perverso que o Deserto. Já as pessoas do Deserto, por mais resilientes que fossem, mantinham feições menos grosseiras, vide Annik, que cometera várias atrocidades, mas ainda assim mantinha um rosto limpo de cicatrizes e até mesmo de maldade.

Em poucos tempos, o acampamento, que era um local relativamente pequeno, tornou-se enorme, um verdadeiro campo, cheio de tendas e cabanas, quase como uma cidade. Porém, uma cidade ainda silenciosa. Os Lobos também eram bastante silenciosos, até mesmo no que se referia a gestos corporais.

Sobre gestos corporais, a Menina teve de reaprendê-los. Annik tinha lhe ensinado alguns quando Alice tinha lhe perguntado.

— Como vocês fazem pra se comunicar aqui?

— Usamos gestos ou atitudes. Nós dificilmente usamos gestos para falarmos de coisas triviais, mas sim para demonstrarmos como nos sentimos em relação a outra pessoa ou a algo. Mas eu não sei como explicar a você como usá-los. Apenas aja do jeito que você achar melhor.

A partir daquilo, Alice tentou interagir mais através de gestos, ou pelo menos os gestos que ela achava ser apropriados para cada situação. Mesmo assim, ainda era difícil ver pessoas usando gestos publicamente.

— As pessoas não demonstram seus sentimentos publicamente na maioria das vezes — tinha explicado Annik. — Normalmente, tudo é feito a sós. Os gestos, também, são usados de maneira muito... Como explicar? Hum... — Ela passou a mão no queixo. — Profunda. Muito intensos e demorados. — Aquilo explicava o motivo de Annik ter se demorado no abraço com a Menina havia alguns tempos. Também explicava o motivo de Annik estar mais sensível aos sentimentos, coisa para a qual ela perdera a sensibilidade. Estar naquele ambiente, cuja linguagem era puramente emotiva, tornava-a mais sensível àquelas formas de afeto.

Aquilo a tornou tão sensível que, certa vez, enquanto Alice dormia, Annik a acordou, dizendo que queria conversar.

— Alice. Alice — ela dizia, sempre cutucando-a entre uma palavra e outra. — Alice.

Alice abriu os olhos.

— Hum. Que foi? — Alice respondeu, bastante sonolenta.

— Eu... preciso conversar com você.

— Agora? — Passou a mão sobre o rosto, como que para retirar o sono impregnado.

— Sim.

A Menina bocejou antes de responder-lhe:

— Tudo bem, sobre o que você quer conversar?

— Não aqui. — Annik a ajudou a se levantar puxando-a pelo braço. — Lá fora. Venha comigo.

Bocejando, a Menina seguiu Annik, que ainda a segurava pelo braço. Annik tinha a levado para o mesmo lugar em que tinham conversado anteriormente. Ela se sentou sobre as mesmas caixas e simplesmente jogou o que tinha para dizer sobre a Menina:

— Eu estou com medo.

Contudo, a Menina não soube como segurar aquilo muito bem.

Quê? Como assim? Medo de quê?

— Da batalha. Do Caos. Durante esses tempos, fiquei pensando muito nisso.

A Menina suspirou.

— Você devia esquecer essas coisas. Tipo, deixar pra lá.

— Eu sei, mas... não é tão fácil quanto parece.

— Apenas... faça outras coisas, tipo... ler! Aliás, você ainda tem aquele livro que a gente pegou na Universidade?

— Não. Ele deve ter ido embora junto com o carro, quando ele explodiu. Eu o tinha deixado no porta-luvas.

— Eu tinha esquecido completamente dele.

— Eu também. Enfim, eu vou seguir o seu conselho. Vou procurar desviar minha atenção para outras coisas. Acho que vou ficar mais tempo no estande de tiro e também vou ajudar na construção das trincheiras.

— Trincheiras?

— Sim. Buracos na areia. Vai ser nossa estratégia de combate. Os Lobos são os donos da ideia. O líder deles, Sven, tem ficado o dia inteiro com Seth, conversando sobre isso.

— Por que você não ajuda eles nisso?

— Seth não me pediu ajuda nem me deu permissão para eu interferir em seus assuntos com Os Lobos. Vou deixá-los a sós. Eu confio neles. Seth pode parecer um bruto ignorante a princípio, mas nada do que ele faz é sem motivos. E Sven, bom, eu nunca troquei palavras com ele, apenas ouço falar de que é bastante estratégico no que diz respeito a batalhas. Apesar de que o exército contra o qual nós vamos lutar nunca perdeu uma batalha sequer, acredito que temos uma chance.

— Eu queria lutar também.

— De jeito nenhum. É perigoso demais.

— Ah, invadir a Universidade foi bem tranquilo, sim. E no deserto de sal? Aquilo lá foi ainda mais sem graça, não acha?

— Alice, você sabe o que é estar no meio de uma guerra? Isso não chega nem perto do que nós passamos durante todos esses tempos. Imagine quando invadimos o Instituto, mas cem vezes pior? Isso é uma guerra. Vai haver gente morrendo do seu lado, o som constante de gritos e tiros, corpos sendo mutilados das formas mais horrendas que você nem conseguiria imaginar, o cheiro de carne ferida se alastrando pelo ambiente, sangue escorrendo a ponto de encharcar suas roupas... Acredite, Alice: você não quer estar nesse ambiente. Eu já me preocupo bastante com Seth, que vai lutar também. Não me faça ter de me preocupar com você também. Eu... Eu iria enlouquecer, eu acho. — Mais uma vez, ela abaixou a cabeça, escondendo seu rosto com as mãos. — Uma das poucas coisas que me acalma no meio de tudo isso é saber que você estará bem e segura aqui.

— Tudo bem, eu entendo. — Alice acariciou seus cabelos. Naquele dia, ela também não usava a usual boina que sempre estava sobre sua cabeça. Annik sorriu e a abraçou apertado, assim como tinha feito da outra vez.

Depois de se desfazerem do abraço, Alice já ia caminhando em direção à tenda, mas Annik a chamou:

— Alice, espere! — Ela correu em sua direção. Alice se virou e viu-a carregando algo em suas mãos. — Eu quero entregar uma coisa.

— O quê?

— Isto. — Ela abriu suas mãos e revelou uma espécie de colar, com uma plaquinha de metal como pingente. Annik o colocou no pescoço da Menina, que o examinou interessadamente, feito uma criança que ganha um novo e desconhecido presente. — Se caso alguma coisa acontecer... isso talvez a ajude. Agora eu preciso ir. Sinto que a batalha se aproxima, e eu tenho que distrair minha mente. — Ela a abraçou mais uma vez, porém mais rapidamente, e depois beijou sua testa. — Boa noite. Upra’stze.

A Menina também se despediu desajeitadamente de Annik e caminhou de volta para a tenda, analisando o pingente daquele colar. Pôde sentir alguns sulcos nas duas faces da placa de metal. Eram duas palavras diferentes, uma em cada face, mas estavam escritas de uma forma que a Menina não entendia.

Quando chegou à tenda, deitou-se sobre o tapete e dormiu um sono profundo e sem sonhos, até que foi acordada subitamente pelos sons da guerra.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Entropia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.