Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 5
IV - Kra'vstan




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IV

Kra'vstan


“Uma coisa sem nome não tem substância. Se algo existe, tem um nome.”

— George R. R. Martin, A Morte da Luz.


O suor escorreu de sua testa e ela limpou.

Silêncio. E medo de quebrá-lo.

Annik não ficaria feliz se ela o quebrasse, certamente. Desde o início notara: poucas palavras, muitas reticências. Muitas observações quietas.

Os sentimentos da Menina Sem Nome ou Kra'vstanlas, como fora não-nomeada, eram divergentes no início. Ah, mas Annik parecia tão legal e solícita! Não. Pare de sonhar, porque ela não era nada daquilo. Ela era uma pessoa… silenciosa. Misteriosa. Que parecia que iria, em algum momento aleatório, tirar seu taco de baseball das costas e espancá-la até a morte. Então seria mais fácil aprender a calar a boca e deixar apenas os passos falarem com a areia.

Annik por vezes parava no meio da viagem. E ficava lá, parada. Ela não estava esperando ninguém. Não tinha brisa naquela manhã sem fim para ela sentir. Ela só ficava lá, vendo o que quer que fosse, porque não tinha nada para ver.

Só areia.

E mais areia.

E mais.

A menina já estava ficando louca. Louca por causa do silêncio, do calor, da areia. A sede já batia. Fome, ainda não. Ela torcia para que saíssem do deserto antes da fome vir, porque, se viesse, ela morreria de inanição. Mas o deserto parecia engoli-las num labirinto sem paredes, curvas e becos sem saída.

Abriu a boca. Momento vazio de hesitação no seu cérebro. Não. Melhor não. Medo.

Era isso. Ela tinha medo de Annik. É lógico que teria medo. Ela andava com um taco de baseball nas costas, e ele não parecia muito limpo. Algumas manchas marrons na madeira. É, era exatamente aquilo que se imaginava.

Abriu a boca de novo. Talvez não fizesse mal. Ah, só uma vez não vai fazer mal. O máximo que ela vai fazer é… bem, isso não vai acontecer, certo?

— Annik — chamou. O nome dela soou muito duvidoso na língua, como um alimento que era estranho, de gosto ora bom ora ruim.

A mulher não respondeu. Mas também não tirou o taco de baseball das costas, o que era um sinal mais ou menos bom.

— O que é aquilo que você me disse quando eu te acordei? — foi mais ousada. Uma frase mais longa, daquela vez.

Kra'vstan — ela respondeu imediatamente, e seguiu falando como se fosse um assunto muito pertinente. Talvez fosse, na verdade. — A língua incomum. Eu já te expliquei essa parte.

— Sim, mas… eu não consigo entender. O que é essa língua? Pra que ela serve se já estamos falando normalmente? E você me chamou de kravs… como era mesmo?

Kra'vstanlas. Sem Nome.

— Sim, você usou palavras parecidas para coisas diferentes. Uma significa nome e outra, língua. Não entendo. Nada.

— Não esperava que entendesse, de qualquer forma — Annik deu de ombros com um suspiro e virou-se, mas a Menina foi insistente.

— Eu quero entender.

Elas se olharam fixamente mais uma vez. Annik, captando friamente o brilho no olhar interessado, pidão, da Menina. E esta, tentando convencer apenas olhando para a interlocutora, pedindo por favor mentalmente por incontáveis vezes.

— Tudo bem. Mas não explicarei nada muito… avançado. — A palavra se encaixou bem. Avançado. É. Serviria. — Para entender o que significa o kra'vstan como um todo, você, primeiramente, deve entender que as palavras têm poder. Lembre-se disso. É a regra número um. E com isso quero dizer que elas podem causar consequências. Boas ou ruins. Isso depende de como você lida com elas. Isso é basicamente o kra'vstan, Sem Nome. A língua que nós falamos agora é banal, sem profundidade. Cada palavra tem o peso de um átomo. No kra'vstan, não. As palavras têm poder, isso eu já lhe disse. E elas, além de ter poder, têm peso. Isso é outra regra. Elas não são como penas. Falar o kra'vstan exige mais que domínio da língua por si só. Exige emoção. E essa é a regra mais simples e uma das que você mais deve se lembrar. As palavras têm sentimentos. Elas carregam aquilo que sente. Eu não poderia, jamais conseguiria, falar que me sinto imensamente feliz quando estiver chorando copiosamente. E a última regra, talvez a menos importante, mas a mais misteriosa e a que nos mostra a imensidão do poder das palavras é que as palavras não têm fim. Lembre-se dessas quatro regras e você então entenderá os princípios da língua incomum.

“Mas apenas a primeira regra já basta para entender o conceito de kra'vstan como algo individual. Essa é a única palavra de nossa língua que contém três significados. Todas as outras, apenas um. Enquanto na língua que falamos, lar pode significar tanto um local amado quanto uma residência, no kra'vstan, lar ou dom, é apenas um local amado e não há mais nenhum significado além desse. Com a palavra que dá nome à língua incomum, isso não acontece. Ela pode ter três significados, sendo um deles ‘língua incomum’. Outro deles, como eu lhe disse, pode ser resumido pela primeira regra.”

— Palavra com poder? — a menina respondeu, ainda com dúvidas.

— Sim. Palavra com poder, ou, como a tradução mais exata diz, “palavra profunda”. Quanto ao terceiro significado, eu creio que não serei capaz de explicá-lo. Pelo menos não agora. Ele é bastante… complicado de entender. Não para aqueles que nascem com as palavras consigo. Para nós, é algo natural. Mas para você, Kra'vstanlas, isso tomará um pouco de tempo. Posso lhe dar a tradução do terceiro significado, mas recomendo que não me questione a respeito porque não saberei explicar por enquanto.

A menina não respondeu nada, mas respirou fundo de curiosidade. Annik não era capaz de ler seu rosto, mas conseguia ler o que suas expressões e gestos significavam. E ela estava curiosa e ansiosa para saber. Annik não sorriu, mas, dentro de si, ela sentiu algo próximo de satisfação.

— O terceiro significado é, traduzido literalmente, “nome”. O sufixo “-las” significa “sem”, portanto kra'vstanlas significa “sem nome”.

“Apesar de todos esses significados parecerem se remeter a coisas diferentes, saiba que, no Mundo, eles são interligados. Ou seja, o terceiro significado tem uma conexão com o primeiro e o segundo, que por sua vez tem uma conexão com o terceiro e o primeiro, que por sua vez tem conexão com o segundo e o terceiro. Isso é mais complexo, mas é tudo que você precisa saber por agora.”

— Espera aí — a Menina falou imediatamente após a conclusão de Annik. — Se todas as palavras estão… interligadas, isso quer dizer que algo sem nome não tem tudo aquilo, peso, poder, e aquelas outras coisas, certo? — Annik assentiu, concordando com a afirmação. — Logo — ela disse calmamente, sua mente ainda processando o que ela iria falar em seguida —, eu também me encaixo nisso?

— Você é uma jovem bastante esperta. Acho que nenhuma outra pessoa iria pensar dessa forma. E, respondendo à sua pergunta, sim, você se encaixa. Mesmo nós temos nomes, kayrnva, e kra'vstanva, que fazem com que tenhamos personalidades, percepções e profundidades diferentes. Você não os tem, portanto, está desprovida de tudo isso. Porém, Menina Sem Nome, isso é uma explicação para outro dia.


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Notas finais do capítulo

1) as palavras têm poder;
2) as palavras têm peso;
3) as palavras têm sentimentos;
4) as palavras não têm fim



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