Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 36
XXXII - Kurt


Notas iniciais do capítulo

kǎяt.



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XXXII

Kurt


Durante muitos tempos Kurt vagou pelo deserto, caminhando por entre tempestades de areia, cruzando o sarlik, a canção do deserto, e quebrando-o no meio quando o atravessava.

Ele era um nômade — não um Nômade com N maiúsculo, esse pessoal era diferente dele, muito diferente —, vivia a perscrutar o deserto roubando as memórias das pessoas estúpidas (ou hackeava as memórias, como costumavam chamar), mas as trocava por outras memórias ainda mais importantes com as pessoas espertas. Poder-se-ia dizer que ele fora um dos que mais vira o Mundo e tudo isso sem precisar se movimentar demais. Cada uma de suas cartas de baralho tinha uma memória, e se elas não fossem apenas cinquenta e quatro¹, nunca haveria a necessidade de trocá-las. Felizmente, seus dois curingas estavam vazios, mas eles deveriam ser utilizados apenas em situações de emergência.

Tinha a urgente necessidade de trocar suas memórias por outras bem mais interessantes, já que suas cartas estavam cheias, mas tinha uma em especial que iria agradar qualquer um, principalmente o Hasir. E até imaginava o que receberia em troca. Talvez nem recebesse outra memória em troca, poderia receber altos cargos junto do Faraó. Ser alguém. Receber tesouros, artefatos e itens interessantes. Itens que um dia pertenceram aos Obatenva. Ou até mesmo receber uma palavra. Um kra’vstan. Ele tinha o dele próprio, mas ter mais de um significava muita coisa. Alguns roubavam kra’vstanva alheios, mas Kurt era um hacker de memórias, não um assaltante de kra’vstanva. Ele não tinha o dom para roubar nomes, apenas para roubar lembranças.

A Pirâmide era uma visão que parecia ser uma miragem no meio do deserto, mas já era possível de ser vista no fim do horizonte, turva por causa das tempestades de areia daquela noite que tinha tudo para ser tão longa quanto a anterior. Ela parecia um holograma, uma imagem em três dimensões, mas que tremia e sofria com ruídos, assim como a imagem de uma televisão velha.

Kurt visualizou ao longe um grupo de pessoas — talvez umas dez —, vestidas da cabeça aos pés, andando de um lado para o outro, protegendo o caminho que levava à Pirâmide do Hasir. Iriam barrá-lo se ele não tivesse uma boa justificativa para lhes dar. Caminhou na direção deles, que automaticamente apontaram suas armas para sua cabeça. Não falaram nada: aquela atitude já dizia tudo, ande mais um passo e sua cabeça explode.

— Boa noite, hehe — Kurt tentou uma aproximação mais amigável. — Não seria possível ter uma... conversinha com seu superior? O chefão que fica no topo da pirâmide, sabe como é que é... — tentou soar calmo, cômico e familiarizado com a situação, mas as armas apontadas para sua cabeça não ajudavam. Mesmo sem gaguejar, sua fala saiu fria e o suor encharcava sua testa, fazendo seus cabelos grudarem.

— Todos querem falar com o Hasir — um deles, que parecia ser uma espécie de líder dos outros nove, respondeu. — Por que deveríamos permitir que você entre?

— Tenho algo que outras pessoas comuns não têm — falou com um sorriso no rosto.

— Todos também dizem isso. O que você tem?

— Isto. — Retirou o baralho do bolso e mostrou a eles. Sabia que não era prova de muita coisa; eles veriam apenas um baralho velho e sujo de areia, mas não eram as cartas que abririam seu caminho; a curiosidade chamaria mais atenção. Por que um baralho? O que um baralho tem de diferente? De tanto visualizar memórias alheias, Kurt sabia como o interesse agia, por mais que tentassem escondê-lo.

— O Hasir não joga cartas.

— Olha, eu diria que essas aqui — olhou para o baralho e depois para eles com um sorriso —, ele joga sim. — Virou a face de uma das cartas, rainha de espadas, e deixou um lampejo de uma memória que estava guardada ali dentro escapar para os guardas. Eles não pareceram tê-lo captado, ou se captaram, fingiram que não. — Ora, vamos. Eu sei o que está passando dentro da cabecinha de vocês, camaradas. Eu sei que, no fundo, vocês estão morrendo de vontade de saber por que esse baralho é tão... curioso, hehe. Eu sei como funciona a mente das pessoas, e não adianta tentarem me enganar: a curiosidade está borbulhando dentro de vocês.

— Ele é um hacker — outro guarda (que na verdade era a outra guarda) avisou para o colega. — Ele tá invadindo nossa mente!

— Desgraçado. — Ele colocou o dedo no gatilho e iria disparar se Kurt não fizesse algo rápido. Todos os outros nove também o acompanharam e apontaram seus rifles automáticos para o hacker.

— É uma meia-verdade, hehe — sua risada não ajudou, estava ainda mais nervoso com aqueles fuzis apontados para sua cabeça e os dedos nos gatilhos. — Eu sou um hacker, mas não estou entrando na mente de vocês. Saber como a mente funciona não quer dizer que eu esteja invadindo-a.

Alguns tiraram os dedos do gatilho, mas ainda mantiveram os fuzis apontados para sua cabeça. Aquilo aliviou Kurt.

— O baralho — o guarda-líder disse. — O que tem nele?

— Jogos mentais, hehehe... — deixou a risada morrer, mas o sorriso largo permanecia no rosto. — Memórias. Lembranças. De coisas que imagino que o Faraó vá gostar, inclusive. Passei muitos tempos vagando pelo deserto, vasculhando o lixo procurando por tesouros, e agora minhas cinquenta e duas cartas estão cheias de ouro e diamantes. São informações pelas quais o seu Faraó daria o seu kra’vstan para adquirir. E eu as tenho bem aqui, dentro dessas cartas. Vocês podem me matar e pegá-las, claro, mas imagino que o seu Faraó não gostaria de mostrar que faz negócios de maneira violenta. Ele gosta de passar a imagem de homem pacífico, não é? — Na verdade, era exatamente o contrário. O Faraó aliava-se ao grupo mais cruel de todo o Mundo. A imagem que ele iria passar de si mesmo ao fazer aquela aliança não seria a das mais pacíficas, não é mesmo?

— Hm. — O homem meneou com a cabeça de modo relutante. Aparentemente, ela era a chefe ali, e o que Kurt presumia ser o líder estava apenas cumprindo suas ordens enquanto ela observava. Virou-se para a mulher, que também assentiu, e os guardas deram passagem a Kurt.

— Pode ir — disse a mulher. — Mas saiba que se tentar qualquer coisa, você vai levar um tiro na cara e nem vai saber de onde ele veio.

Kurt fez uma mesura e seguiu andando e assobiando, agora despreocupadamente, sem a pressão de ter uma arma apontada para sua cabeça.


O sarlik soprava da direita para a esquerda. Do oeste para o leste. Ele empurrava as areias e as carregava para longe... para bem longe dali, daquele lugar desgraçado. Empurrava para as Planícies e para a Tundra.

Dizia-se que a Tundra era um lugar sem a crueldade daqueles que viviam no deserto, pois o frio fazia o papel de carrasco. Não havia necessidade de seres humanos deploráveis lá, pois o frio conseguia enlouquecer e torturar mais que uma pessoa. O Deserto era observador e calmo, mas a Tundra libertava toda a fúria que o Deserto guardava para Si.

Quanto às Planícies, elas eram apenas sonho.


A entrada da Pirâmide era também fortemente guardada. Duas fileiras de vários homens com lanças que pareciam nem piscar. Todos eles estavam vestidos de túnicas, sandálias e tinham os olhos contornados de preto. Não pareciam se incomodar com o frio daquela noite nem de nenhuma das outras noites que tinham se passado desde que caíram no deserto.

Eles não se importaram com Kurt pois sua passagem já tinha sido autorizada pelos primeiros guardas da Organização e pelo fato de serem apenas decoração. Os verdadeiros guerreiros estavam-no observando através da luneta de um rifle de longo alcance, e qualquer gracinha que Kurt fizesse ali seria recompensada com um tiro na sua testa, em um de seus olhos ou em qualquer outro lugar que eles bem quisessem.

Adentrou a Pirâmide com a sensação de que as paredes tinham olhos, bocas, narizes e pele. Mais que a sensação de se sentir observado, era a sensação de que as paredes cochichavam sobre si e que a respiração e a pele delas emitia uma umidade descomunal naquele lugar, fazendo Kurt sentir ora frio, ora calor.

Uma mulher à entrada lhe indicou o caminho para onde o Faraó estava e disse-lhe que ele esperava por Kurt. Os guardas da Organização e os snipers já deveriam ter avisado por algum dispositivo — um rádio, talvez — a sua chegada. Kurt não pôde não se sentir surpreso com toda aquela rapidez.

Subiu rampas apertadas e depois as desceu, andou por túneis tão estreitos e mal iluminados que quase nem conseguia passar por entre eles. Não sabia exatamente para onde tinha que ir porque não prestou atenção nas indicações da mulher, mas lembrava-se que ela tinha dito que ele ficava no andar mais alto da Pirâmide, então estava sempre subindo. Uma hora ele iria achar o caminho certo. Era apenas uma questão de encontrar a possibilidade desejada dentre várias, ou como ele mesmo diria, a carta certa de cinquenta e duas.

Era por isso que as cartas lhe eram tão interessantes, porque o segredo delas era apenas uma questão de probabilidade. Número de casos favoráveis sobre número de casos possíveis. Mas não era apenas aquilo que lhe interessava: as probabilidades também mostravam o futuro. O futuro é apenas uma questão de possibilidades diferentes, e quem sabe observá-las, sabe ler o futuro. E suas cartas eram ainda mais especiais, pois lhe mostravam o passado, também. E através daquelas cartas cheias de passados diferentes que Kurt tecia o futuro. Mas diferente de suas memórias, ele não trocava suas construções de possíveis futuros por nada, nem mesmo por um kra’vstan.

Quando um dos caminhos lhe permitiu ver a noite estrelada acima de sua cabeça, Kurt soube estar indo para o lugar certo.

Um homem — presumivelmente o Faraó — estava de pé, olhando o céu estrelado com as mãos nas costas. Ele tinha o dobro da sua massa muscular e era cerca de trinta centímetros maior que Kurt. Trajava-se como os guardas da entrada, mas de maneira e porte mais elegantes: uma tiara dourada segurava o pano sobre sua cabeça, os olhos eram mais severos e menos legíveis, a falta de sobrancelhas, os braceletes eram adornados com desenhos e seu cinto era de couro, não uma corda amarrada ao redor da cintura, com espaço para guardar uma faca ou punhal.

— Soube que você tem algo para mim — o Hasir falou sem olhar diretamente para Kurt. Ele não deveria querer olhar para alguém tão insignificante quanto ele. — Deve ser bem interessante, já que deixaram você passar.

— De fato — limitou-se a responder.

— E o que você tem? — a voz do Faraó era de uma solidez incrível. Sem sentimentos, mas ainda mantendo a postura e calma.

— Eu tenho memórias — mesmo a voz de Kurt, difícil de falhar, vacilou junto ao Faraó. Não era mais a mesma voz sarcástica e caricata de antes: era mole, fraca e, diferente da do Hasir, prestes a se quebrar ao meio. A dureza de sua voz estava se rachando perante quase dono do Mundo. Kurt tirou seu baralho do bolso de dentro do casaco e tirou a carta do topo, virada para baixo. Normalmente ele iria tirar cinco cartas e pedir à outra pessoa para escolher uma, mas como a pessoa em questão era uma das pessoas mais poderosas do Mundo, Kurt prosseguiu sem gracejos.

O Faraó pareceu aprovar com um meneio de cabeça.

— E de quem você a roubou?

— E-eu não a roubei. Troquei memórias com ninguém mais, ninguém menos que Adam.

O Faraó arregalou os olhos, ainda olhando para a carta. Rei de copas vermelho.

Adam... — balbuciou. — Ele está vivo?! — olhou em direção a Kurt.

Kurt anuiu.

O Faraó tornou a olhar para a carta.

— Sobre o que é a memória?

— Veja, senhor. — Por um instante, Kurt sentiu sua confiança inflar novamente perto da surpresa do Faraó e permitiu-se ser um pouco mais petulante: — Se eu disser sobre o que é, não vai ter mais graça, hehehe.

O Faraó apenas o observou com espanto e tornou a olhar a carta. Parecia ver e rever a memória toda vez que olhava para ela.

Como você conseguiu pegar isso dele?!

— Foi uma boa barganha, apenas. E ele estava desesperado, haha!

— Você sabe para quê?

— Conseguir uma memória sobre a Canção do Deserto. E o meu preço foi essa memória que o senhor agora tem nas mãos.

— Eu não consigo acreditar... — Ele chacoalhava a cabeça de incredulidade, mas Kurt não sabia dizer se ele estava feliz ou furioso com aquilo. Demorou alguns minutos até que ele recobrasse a rigidez e a seriedade. — Você fez um ótimo trabalho para a Aliança, senhor Kurt. — Ele estava feliz. Como Kurt suspeitava que ele ficasse. — Seus esforços serão recompensados. Em dobro. Por ter me entregado esta memória e por me informar sobre Adam e sua possível localização. Densk. — Os olhos do Faraó fitavam profundamente os de Kurt. Ele não conseguiu não se sentir ameaçado com aquilo. — Acho que posso colocar você com um alto cargo na Aliança. Com certeza você será muito bem aproveitado lá. E um nome. Você merece um novo nome. Um novo kra’vstan. Mas tratemos disso mais tarde. Por agora... eu preciso... — ele engoliu em seco —... pensar. Também pedirei à Isabel, a moça que lhe recepcionou, para lhe dar aposentos aqui na Pirâmide. Agora que você é um alto membro da Aliança, merece morar aqui.

Kurt assentiu pesadamente e agradeceu:

Kra’tsya, menya Hasir. — Mas não se importou com o olhar depois de ouvir sua recompensa. Tinha sido o que esperava. Era exatamente o que ele esperava. Sorriu consigo mesmo enquanto o Faraó voltava pelo caminho que Kurt tinha seguido. Sorrira não apenas por causa da recompensa, mas porque também nunca tinha estado tão próximo de não apenas visualizar, mas de ele próprio moldar o futuro.


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