Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 37
XXXIII - Lar


Notas iniciais do capítulo

our love is plastic, we'll break it to bits...

https://www.youtube.com/watch?v=rMgBJmfpsfw
DIIV - Home.

https://www.youtube.com/watch?v=RvXkx3IcOi4
Grimes - Heartbeats.

https://www.youtube.com/watch?v=7E0fVfectDo
Arcade Fire - Reflektor.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/653186/chapter/37

XXXIII

Lar


“You’ll never have a home till you go home...”¹

— DIIV; Home.


Nunca iria voltar para casa porque não tinha casa.

Na sua mente, sempre que imaginava, sua casa era um chalé no meio do deserto, e nele, viviam ela e Annik em paz, para sempre. Ela era sua única família, e aquele chalé era sua única casa. O problema é: não havia nenhum chalé e nenhuma paz.

Não tinha casa nem ali, nem em qualquer outro lugar. Até Annik tinha uma casa, e a casa dela era aquele deserto inteiro. Mas Alice não pertencia ao deserto, e ele, consequentemente, não poderia ser sua casa.

Sentia-se abandonada por todos e sozinha porque, naquele ponto, ela e Annik eram completamente diferentes. Naquele mundo, todos tinham uma casa, e provavelmente em outros mundos também. Apenas as areias lhe confortavam. Elas eram tiradas de suas casas, o deserto, pelo sarlik — o vento, como Annik explicara —, e eram levadas para bem, bem longe dali, para lugares sem areias — o que as areias considerariam um deserto, já que não havia nenhuma de suas semelhantes ali —, e lá permaneciam sozinhas e abandonadas assim como a Menina Sem Nome.

Chorava. Na sua mente, chorava copiosamente e se esperneava, mas no carro, estava apenas encolhida, sem fazer som algum, deixando as lágrimas escorrerem um pouco para limpá-las logo depois — o rosto molhado a incomodava — e olhando para a paisagem estática do deserto. O carro andava, mas parecia estar sempre parado porque a paisagem do lado de fora nunca mudava. Era apenas areia dormindo ao relento.

Estava cansada de chorar, de ver a mesma paisagem e de se sentar na mesma posição. Aquela posição tinha deixado de ser confortável há algum tempo, quando sua coluna e seu ombro começaram a doer, mas pelo menos prevenia seu ferimento debaixo do braço de ficar pior. A sua lesão estava melhorando a cada momento. Antes, mal podia se mexer, mas agora já podia ter um pouco mais de liberdade e respirar com muito mais facilidade.

Annik também estava absorta em seus pensamentos, pois não olhou para ela um único momento sequer e também estava com os olhos calmos e serenos, diferente dos seus olhos de águia que se mantinham atentos a tudo.

Mesmo que gostasse de sua privacidade para poder chorar sozinha, a Menina ainda queria que Annik a visse e tentasse fazê-la se sentir melhor. Apesar de não ter paz nem o chalé que aparecia na sua mente, ainda tinha ela. Talvez... ela fosse a única casa que poderia ter. Aquele pensamento a fez querer chorar ainda mais, mas se controlou enquanto os lábios tremiam e mais e mais lágrimas escorriam sobre sua face como se gotas de chuva escorressem de uma folha. Annik era a única casa que poderia ter, mas ela a levava para uma outra casa, uma que não sabia como, onde era. Por que deveria trocar algo conhecido por algo que não sabia como era? E se a sua casa verdadeira fosse pior que aquele deserto? E se aqueles que conviviam com ela fossem piores que Annik? E se ela estivesse completamente sozinha lá, ainda mais do que estava no deserto? Aquilo a aterrorizou. E se ela não tivesse casa em lugar nenhum? Começou a chorar mais alto, e Annik obviamente ouviu. E, claro, não pôde se manter calada enquanto a Menina se prostrava em tristeza.

— O que você tem? — a voz dela era suave e preocupada.

— Eu... eu nunca vou voltar pra casa... — As lágrimas fluíam e Alice já não tinha mais a preocupação de limpá-las, embora mantivesse a cabeça baixa em vergonha por chorar. Queria e ao mesmo tempo não queria que Annik a visse naquele estado. Sentia-se fraca por chorar diante dela, mas ao mesmo tempo queria que ela a reconfortasse e fizesse-a se sentir melhor.

— Por quê? Eu vou levá-la para sua casa, Alice. Eu... estou tentando, certo? Eu sei que você quer voltar, mas... eu preciso de tempo. Preciso descobrir como.

— Não tem nada a ver com isso... snif... Tem a ver com... snif... com... — Puxou um pouco de ar. Estava soluçando tanto que não conseguia nem mesmo respirar corretamente —... com o fato de eu não ter casa...

— Como assim, não ter casa? — Annik arqueou as sobrancelhas em dúvida.

— E se eu não tiver uma casa?... snif... E se lá... for pior que aqui...?

Annik permaneceu em silêncio, digerindo aquilo de uma maneira que Alice jamais saberia como. Ponderava sobre as coisas mais profundas em questão de segundos. Mas daquela vez durou minutos. Longos momentos em que Annik ficou paralisada olhando para ela e para o nada ao mesmo tempo.

— Eu prometi levar você de volta para casa — ela disse simplesmente, como se todo aquele pensamento, aqueles minutos de reflexão, tivessem se tornado inúteis, e ela descartado-os. Alice apenas quis pegar a cara dela e bater de ódio e tristeza. Ela não a entendia, nunca entenderia, porque agora ela se sentia tão triste. Ela iria ser levada de volta para uma casa em que talvez não quisesse viver e deixaria uma na qual se acostumara a isso. Poderia se acostumar muito bem à outra casa, de fato, mas e se fosse pior? E se não tivesse ninguém? Esse era seu maior sofrimento. Poderia se acostumar a viver em situações piores, mas talvez não se acostumasse, nunca se acostumasse, a viver sozinha.

— Você não tá entendendo! — sua raiva fez com que parasse de soluçar e começasse a berrar. — E se eu não quiser mais voltar, Annik? E se lá for pior? E se lá eu não tiver ninguém? Você não consegue responder essas perguntas, Annik, porque você também não sabe a resposta!! — Estava ofegante depois que falou tudo, que jogou tudo na cara dela. Sentiu o local onde fora ferida dar uma pontada de dor. Pôs a mão para tentar aliviar, e Annik tentou ajudá-la a se reclinar na poltrona de maneira mais confortável, enquanto a respondia:

— Eu disse que eu estou procurando a resposta. Eu... nós só precisamos de tempo.

— Talvez eu não queira mais nenhuma resposta. Eu... eu não consigo suportar a ideia... de que talvez eu possa ir pra um lugar pior. Pra um lugar que eu talvez... não tenha ninguém. Talvez... eu só queira ficar aqui...

— Se você não quiser ir mais para casa, você só precisava ter dito. — Aquilo fez Alice se arrepender de ter gritado com Annik. Ela não merecia aquilo. Ela tinha passado por coisa igualmente pior e não estava surtando e chorando feito um bebê como a Menina. Ela suportava sofrimentos piores e ainda assim mantinha-se inquebrantável.

— Ah... — Passou a mão no rosto para limpar as lágrimas, mas descobriu-as já secas. — Desculpa. Por ter gritado com você. Eu só quero... — As lágrimas voltaram a descer —... que você me entenda...

Annik enxugou as lágrimas da menina. Suas mãos eram frias e ásperas, mas elas pareciam quentes e macias em contato com sua pele. As mãos dela tinham um efeito calmante sobre si.

— Está tudo bem — ela disse calmamente, como se a gritaria da Menina nunca tivesse acontecido. — Mas se você não quer ir para casa... para onde...?

— Aqui. Aqui é minha casa agora. E você. Não quero ir pra outro lugar. Não me deixa ir pra outro lugar, Annik... — Alice abraçou subitamente Annik, e as lágrimas voltaram a verter de seus olhos enquanto Annik correspondia ao seu abraço.

— Não vou deixar — ela respondeu num sussurro bem próximo ao seu ouvido. — Eu prometo.

Não sabia se sentia-se feliz ou desolada por ela prometer aquilo. Ela prometera levá-la para casa e agora quebrara a promessa.

— Não faça promessas que você não pode cumprir — Alice respondeu-a, se desfazendo do abraço.

— Essa eu posso. — Nos seus olhos, havia uma urgência em provar-se verdadeira. Alice conseguia ler. Não havia nenhuma veracidade nos seus olhos, apenas o leve desespero de provar que iria cumprir aquela promessa recém feita para Alice. Por mais que não lia verdade em seus olhos, Alice conseguia ler força de vontade, então não mais a importunou a respeito disso.

— Bem, parece que tudo o que nós fizemos até agora não vai servir para nada, não é? — Todo o esforço para nada. A Menina matou, sofreu, quase morreu, e tudo aquilo para nada. Mas não se arrependia. Estava decidida a ficar ali, não importasse as consequências. — Espero que você não fique com raiva de a gente ter feito um monte de coisa pra nada.

— Eu não estou com raiva. Digo, eu fico feliz... de você querer ficar aqui... — Ela parecia sem jeito, tímida. Alice sorriu.

— E pra onde a gente vai agora? A gente tá andando nessa Rodovia faz um tempo, sem ter um lugar pra ir. Agora que eu vou ficar aqui, a gente pode ir pra qualquer lugar desse mundo! — Foi difícil, mas a Menina conseguiu sorrir em meio às lágrimas que já cessavam.

Annik apenas deu um sorriso travesso e disse:

— Vamos continuar seguindo a Rodovia. Vamos ir até aonde ninguém nunca foi. Vamos até o fim. Até o Fim do Mundo.


“If this is heaven

I need something more

Just a place to be alone

‘Cause you’re my home…”²

— Arcade Fire; Reflektor.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹Na frase inicial: "Você nunca vai ter uma casa até ir para casa".

²Na frase final: "Se isto é o paraíso / Eu preciso de algo mais / Apenas um lugar para ficar sozinho / Porque você é minha casa".



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Entropia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.