Entropia escrita por Reyna Voronova
XXXI
Upra’stze
Já era noite mais uma vez. O dia mal começara e agora já tinha partido mais uma vez, debandando amedrontado e acovardado com a visão da noite, terrível e obscura noite.
Alice sentia dor, dor, dor... Tinha acordado por causa dela. Não conseguia respirar direito por causa da facada que levara debaixo do braço, e a dor era tanta que a incomodou. Estava menos intensa agora do que quando desmaiara, mas ainda era debilitante física e mentalmente.
As palavras que Annik lhe dissera ainda martelavam em sua mente, principalmente a palavra em kra’vstan. Upra’stze, upra’stze, upra’stze. As palavras batucavam nas paredes de seu crânio em meio a uma dor de cabeça fortíssima, enquanto a dor pungia sua costela esquerda. Dor, na cabeça, na coluna, de tanto ficar reclinada na poltrona, nas costelas, por causa da facada... Por que a dor? O homem louco de ódio e fúria dera-lhe uma facada, lembrava-se, mas aquilo não mais tinha importância. Era passado morto.
— Finalmente você acordou — disse Annik com um tom de animação na voz, mas sem tirar os olhos da estrada.
À frente, a estrada estava iluminada, parecia ser até mesmo feita de ouro. Uma nebulosa dourada parecia escapar de um furo feito no céu. O céu negro era a pele de um deus, e a nebulosa era seu icor que jorrava para fora, o sangue dourado dos deuses iluminando o céu escuro da noite como a luz da alvorada. Era tão reluzente que parecia uma espécie de chamado divino. Um profeta sendo deixado à terra. Talvez fosse, não se sabe. Mas fazia com que parecessem estar dentro dos planos de algum ser maior, ao observar aquilo. Era tão brilhante que alcançava o carro. Os olhos de Annik cintilavam diante do farol galáctico. Até mesmo pareciam cintilar de admiração.
— Sim, eu... acordei — respondeu-lhe languidamente. Não mais falava oscilando, no entanto ainda estava com falta de ar e aquilo a atrapalhava na hora de falar. Falava calmamente, inspirando com a boca e expirando ao falar a palavra. Parecia até mesmo o modo de como Annik falava, porém mais devagar.
— Está se sentindo melhor?
— Um pouco... A dor parece estar mais fraca.
— Isso é bom. — Annik assentiu com a cabeça, olhando para ela rapidamente. — Se tudo der certo, você vai melhorar rápido.
— Ahm... — A dor e a letargia não fizeram com que Alice prestasse atenção nas palavras de Annik. — Certo...
Upra’stze, a palavra batucou de novo e ecoou infinitamente dentro de sua cabeça até que ela a libertasse.
— Upra’stze — repetiu, mas sua voz estava tão fraca que soou como se a dissesse com asco.
— O quê? — Annik virou-se para ela abruptamente.
— A palavra que você me disse antes de eu dormir.
— Sim, eu sei, mas qual o problema?
— O que significa?
— Bom... Essa palavra, upra’stze, significa, resumidamente, um “boa noite”. Mas como no kra’vstan as palavras têm profundidade, obviamente ela é mais densa do que um simples “boa noite”. Ela também é uma espécie de... — Annik buscou a palavra certa, olhando para cima, meio em direção ao retrovisor, meio em direção ao céu dourado inalcançável —... de perdão. — As suas mãos apertaram mais o volante, a Menina pôde notar as veias dela ressaltando sob a pele.
— Por quê...? Você não fez nada de errado! — as palavras soaram roucas devido à sua fraqueza, mas mesmo assim, forçou-se ao máximo para falá-las com vontade.
Annik crispou os lábios.
— Você quase morreu — soltou aquelas palavras num jorro de ar mesclado com o sentimento da vergonha e decepção consigo própria.
— E daí...? Não foi culpa sua...
— Daí que eu não deveria ter deixado as coisas saírem de controle daquela forma.
— Tudo já saiu de controle há muito tempo, Annik.
Annik olhava e não olhava para ela. Parecia perder-se em meio à própria mente, parecia estar olhando para um de seus próprios pensamentos, com um semblante apático.
— Em algum momento nós já tivemos controle de algo? — ela inquiriu.
— Eu... eu não sei, Annik, por que você tá perguntando isso?
— Não foi nada, esqueça. — Ela chacoalhou a cabeça, tirando a máscara inexpressiva do rosto e voltando a ficar séria. — Eu só estava pensando... Parece que nada do que fizemos saiu do jeito que queríamos.
— Mas nada deu errado.
— Ainda não. Quase deu errado, mas ainda não. Quase deu errado por minha culpa.
— Não foi sua culpa...
— Foi sim. Eu deveria ter feito algo naquele momento e eu não fiz. Eu prometi levá-la para casa e não levei. E pior: não sei como fazer isso nem se vou conseguir, se eu souber. Foi por isso que pedi desculpas.
—... Você não tem culpa, Annik. — Olhou para ela com pena. — Se eu nunca sair daqui, bom... a culpa não é de ninguém.
— Mas eu fiz uma promessa a você, e gosto de cumpri-las.
— E se você não conseguir cumprir ela, ou não puder?
— Eu ainda estarei errada por ter feito uma promessa que não posso cumprir.
— E se você não souber que ela não pode ser cumprida?
—... — Annik abriu a boca para falar, mas fechou-a e assentiu em conformidade. — Você tem razão. — Ela esboçou uma espécie de sorriso, mas ele parecia ter dor. Lembrou-se dela acariciando seu rosto e percebeu que aquilo fora tão onírico que parecia ter acontecido séculos atrás.
— E você, tá melhor?
— Sim... Melhor do que pela manhã, pelo menos.
— E então, você leu mais do livro?
— Li. O livro parece estar numa espécie de... metáfora. Como se ele todo fosse uma grande metáfora para alguma coisa da qual não faço ideia. Fala sobre o céu, sobre o deserto, sobre águas, nada que faça sentido dentro do contexto sobre o kra’vstan. O livro tem partes escritas no alfabeto antigo, ainda por cima, do qual não me lembro muito bem. Eu tenho que ser sincera com você: não sei se vou conseguir ler esse livro e interpretá-lo corretamente sozinha.
— Vamos voltar. Ver o seu amigo, Isaac, ele deve saber dessas coisas.
— Não — ela falou a palavra com perfeição e clareza. — Nós não podemos voltar. Se voltarmos, a vantagem que temos sobre eles vai acabar, e exatamente disso que eles precisam para nos matar. Vou ter de procurar outra pessoa que saiba ler isso ou eu mesma vou ter que descobrir o que esse livro quer dizer.
— E pra onde a gente vai agora?
— Vamos seguir a rodovia. Não há nada para nós em outro lugar. Não há nada para nós em lugar nenhum, na verdade.
E assim o carro seguiu, serpenteando na Rodovia, e dessa vez sem previsão de paradas. Ver as curvas ondulando era como hipnose para a Menina. Em pouco tempo, a Menina de novo estava lutando contra o sono que mais uma vez pairava sobre si. Annik também percebeu aquilo e tornou a falar a palavra que atazanara sua mente:
— Upra’stze — disse, dessa vez friamente, mas depois soltou a palavra com uma emoção tristonha antes reprimida: — Upra’stze...
— Não precisa pedir desculpa — disse, mas essas palavras nunca saíram de dentro de sua mente. Foram ditas apenas numa dimensão transitória entre sono e consciência, e Annik nunca as ouviu.
Dormiu.
O carro continuava seu caminho para o indeterminado, para o acaso, para o desconhecido, para o nada.
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