Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 29
XXVI - Ás de Ouros




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XXVI

Ás de Ouros


Ele embaralhava as cartas de baralho repetidamente como um jogador assíduo de pôquer.

Nem mesmo as via; apenas pegava um monte de cartas e as enfiava no meio de outro repetidamente. Era mais um passatempo que um jogo de verdade. Pelo que ele sabia, não estavam ali para apostar nada.

— Então você é o tal camarada que se envolveu com aquela outra guria, e ela te deu um tiro, certo?

Assentiu. Era a versão mais resumida, fria e, ao mesmo tempo, levemente irônica que já ouvira sobre si.

— Haha! Você é um cara engraçado, amigo — ele disse. — Eu tive a oportunidade de conhecer a lenda viva, o cara que sobreviveu à Assassina! Enfim, você e seus outros camaradinhas vieram até mim porque souberam dos meus… serviços, não é mesmo? — Um sorriso perverso surgiu em seus lábios.

Dusq aqui nos contou sobre você — Adam disse.

Dusq? É por isso que você me parecia familiar, amigo, desculpe não ter te reconhecido à primeira vista. — Crepúsculo soltou um “tudo bem” desapontado e nervoso, e Kurt continuou a falar: — Então… — Ele colocou as cartas sobre a mesinha improvisada de madeira e pneus à sua frente. — O que vós desejais de mim, meus camaradas?

— Você tem uma informação que nos pode ser útil.

— Hum… — Kurt remexeu a cabeça e contorceu os lábios. — Pode ser. Desde que vocês possam pagar por ela, é claro, hehe.

— Sabemos de um lugar com livros raros que podem lhe ser úteis — a Serpente barganhou.

— Livros, livros, livros! Eu sou um hacker de memórias, minha senhorita. Não leio palavras escritas em páginas, eu leio memórias incrustadas em mentes, madame. — Ele fez uma mesura para a Serpente, que não gostou nem um pouco daquilo. — Bem, mas vocês nem mesmo requisitaram o produto ao balconista e já estão pechinchando, veja só! É isso que eu chamo de barganhar! Mas não se esqueçam de que barganhar antes de o produto ser exibido pode ser prejudicial a vocês, amigos! Vamos começar isso de novo: o que vocês querem de mim?

— Uma memória sobre a Música do Deserto — Adam foi direto e não vacilou.

— Oh! Um comprador em potencial! E um comprador muito ambicioso, é claro, hehe. Sim, meu amigo, eu tenho esse produto em estoque para sua felicidade! Ou infelicidade, caso não puder pagar, hehehe… Então, o que vocês me oferecem? Saiba que quero algo valioso, muito valioso em troca. Uma memória muito valiosa. — Seus olhos sorriram psicoticamente para Adam.

— Posso lhe oferecer memórias sobre a Legião, sobre o nascimento dela, sobre o Imperador… Enfim, escolha.

— Legião? Quem, eu me pergunto, quem quer saber sobre a Legião? Eles estão mortos!

— Eu não estou morto.

— A-ha! Ótimo argumento, camarada, ótimo argumento! Você não está morto, você renasceu como uma fênix, o que quer dizer que você, amigo, possui memórias valiosas. Você desbravou a morte, rapaz!

Blá, blá, blá. Aquilo tudo não passava de conversa de vendedor para ludibriar o comprador. Adam não cairia no papo daquele homem, mas sabia que ele teria que ceder se a negociação não desse certo.

— Diga logo o que você quer.

— Pra quê a pressa, amigo? Acalme-se, rapaz. Uma boa negociação leva tempo, você deve saber. Continue jogando suas cartas na mesa e eu jogo as minhas! Mas… digamos que eu queira algo diferente. Sabe, você teve contato com pessoas importantíssimas em sua… como posso descrever?… Vida passada, sim. Eu quero algo desse tipo. Conversas secretas. Fatos desconhecidos. Vamos, amigo, agora que eu já entreguei o jogo pra você, não deve estar tão difícil, certo?

— Eu já entreguei o meu há muito tempo, amigo. E mesmo assim, você ainda não é claro no seu pedido. Fale o que você quer saber e seja conciso.

— Ah, hoje em dia não se pode ser um pouquinho mais misterioso que as pessoas perdem a paciência… — Kurt bufou. — Eu quero a sua última memória antes de morrer. Quero a última conversa entre você e a Assassina, Annik. Quero o momento final da sua antiga vida. Fui claro agora?

Aquele pedido era a coisa mais absurda que já ouviu, tão absurda que teve vontade de rir da cara daquele sujeito e deixá-lo ali mesmo. É claro que iria se arrepender depois, portanto não riu nem saiu dali. Apenas continuou estático por alguns segundos como se ele fosse um aparelho defeituoso ou cuja pilha estivesse acabando.

— Sem chance — disse depois que voltou ao normal. Não disse com a mesma intensidade que sua mente imaginara, no entanto. Queria soar mais forte e até mesmo bem-humorado, mas soou fraco feito uma criança assustada, com a voz tão baixa que o vento poderia quebrá-la.

— Bem… neste caso, foi um prazer fazer negócio com você, amigo. Mas esse é o meu preço e não aceito nada menos que isso.

Sentiu a Serpente envolver seu braço num aperto tão forte que parecia prender sua circulação. Olhou para trás e viu Crepúsculo. Seus olhos pareciam tão furiosos que ele não duvidaria que levaria um coice após arruinar aquela troca.

Mas ele não poderia deixar um estranho levar a sua memória mais profunda e enraizada. A memória mais confusa e individual que ele tinha. Era como se aquela lembrança fosse uma parte dele e exclusivamente dele. Sentiria ciúmes se a compartilhasse com alguém. Talvez nem tanto ciúmes, mas o sentimento de incompreensão. Apenas ele chegava perto de compreender aquela memória e ninguém mais. Para qualquer outra pessoa, aquele momento seria algo completamente sem sentido e incompreensível, não faria sentido compartilhar aquilo com mais ninguém. Sem falar que queria manter as palavras de Annik guardadas na sua gaveta mental para sempre. Eram palavras destinadas a ele e unicamente a ele. Só ele tinha o direito de ouvi-las de novo e de novo. A voz dela naquele momento, mesmo tendo um revólver apontado para ele, soou tão calma que fez Adam se sentir daquela maneira também. Apenas ele teria aquela sensação, mais ninguém. Apenas. Ele.

— Veja bem, eu não posso lhe dar isso, mas posso lhe dar qualquer outra coisa. Qualquer outra — Adam voltou atrás, tentando ainda barganhar.

— Desculpe, parceiro, mas eu fui bem claro pra você. Essa memória é muito valiosa tanto pra mim quanto pra você. Você tem sorte que eu não usei ela pra achar a Música. Ainda não. Tenho estado muito ocupado, sabe? E você tem sorte que não roubo sua memória como faço com outros miseráveis que vagam por aí sem um pingo de sanidade. Então, amigo, se você quiser isso, tem que me dar a memória que eu quero.

Sentiu o aperto da Serpente tão forte que controlou um gemido de dor que começava a se espalhar pela garganta.

Não podia dar aquilo. Era como trocar um diamante num livro. Um livro é sempre útil, mas um diamante é valioso.

— E então, amigo, dá pra agilizar aí? Não tenho a noite toda, sabe como é… Muitos outros clientes estão me esperando.

— Eu estou pensando… pode me dar alguns momentos?

Kurt checou um relógio de bolso que tinha no meio dos bolsos do seu sobretudo sujo e remendado.

— Certo. Cinco minutos, amigo.

— Na verdade — a Serpente se intrometeu —, o Adam vai fechar negócio com você.

— Q-quê?! — Os olhos de Adam se arregalaram.

— Adam, chega dessa bobagem. Nós precisamos da memória. Você precisa da memória. Vai valer à pena, Adam. Lembre-se da promessa da Rainha.

Ela atingira seu ponto mais fraco. No fim, valeria mesmo à pena…? A Rainha prometera trazer Annik de volta se ele trouxesse a Música. Se conseguisse a memória, estaria ainda mais perto de encontrá-la. Era como achar o mapa de tesouro, bastava segui-lo e cavar onde o X indicava. Estava mais perto do que pensava. Uma memória por uma realidade. A memória de Annik para, depois, vê-la de novo, pessoalmente. Em carne e osso. Ele prometera para si mesmo que procuraria o porquê, que iria procurá-la nem que levasse tempos incontáveis. Daria tudo para achá-la, mesmo se fosse a coisa mais valiosa que tinha.

— Tudo bem — Adam abaixou a cabeça e acatou. Virando-se para o hacker, disse: — Eu aceito a sua oferta, Kurt.

— Ahh! Sabia que o senhor era um bom negociante, senhor Adam! Você e a madame, hehe. — A Serpente franziu os olhos em direção ao negociante, mas Kurt nem se importou. — Às vezes, pagamos caro por um produto, mas esse produto vai nos ser muito mais útil e durável que um produto mais barato, mas de qualidade inferior. Você sabe: o barato sai caro, amigo.

— E então, onde está a memória?

— Escolha uma carta, amigo. — Kurt tirou cinco cartas do topo do baralho, exibindo-as com a face voltada para baixo para Adam.

— Ahm, não sei, a quinta. Pra quê isso?

— Em breve você saberá, hehe. — Kurt tirou a carta com a outra mão e lamentou: — Oh, errou, meu amigo! Na verdade, a sua carta é a terceira. Pode pegar.

Adam estendeu a mão, hesitante, para pegar a carta. Esperava que aquilo terminasse logo, só queria a memória, não truques de mágica. E também não queria que Kurt fizesse mais uma gracinha que só os atrasasse.

Mas não foi o que ele fez. Adam tocou na terceira carta e a puxou das mãos do hacker com delicadeza e ele nada fez para impedi-lo.

— Ás de ouros vermelho — explicou Kurt. — Minha carta favorita do meu naipe favorito e da minha cor favorita.

— O que isso significa?

— É aí que está sua memória, Adam — Dusq explicou, com certeza impaciente para tanta ignorância. — Ela está na carta.

— Na… carta? Como ela pode estar aí dentro?

— Vire e observe, amigo — Kurt explicou.

Adam virou a carta e deparou-se com um simples Ás de ouros. No entanto… algo lhe prendia naquela carta. Olhava fixamente para o losango vermelho, ele parecia rodopiar, olhava fixamente para o losango, ele parecia se expandir, olhava fixamente para o losango, ele parecia o engolir… Olhava fixamente para o losango, ele parecia se abrir, olhava fixamente para o losango, ele se abriu e dominou Adam.


Sua mente via um palácio… areia… palácio e areia. Céu.

Palácio, areia, céu. Manhãzinha.

Palácio, areia, céu, manhãzinha. Entrou.

Templo decaído, destruído. Ruínas.


Parecia estar tão distante do mundo… Parecia habitar um planeta deserto. O sarlik cantava forte. Parecia invadir lugares que não deveriam existir. Parecia invadir terrenos os quais não se deveria conhecer.


O sol se pôs. Via-o se pondo atrás do templo em ruínas.


Oeste.


E então, a memória o regurgitou.


— AH! — ele tomou um susto, ainda segurando a carta como se segurasse um objeto esquisito nas mãos. — Eu sei para onde devemos ir — Adam avisou, olhando para a Serpente e Crepúsculo. Sentia-se diferente agora. Estava muito agitado, impaciente para viajar de novo. Estavam quase lá. Quase lá. — Estamos perto. Muito perto.

— Eh, certo, amigo — a voz de Kurt fez Adam lembrar-se de sua existência. — Mas agora falta você cumprir sua parte na nossa negociação.

O momento mais difícil. Adam estava ansioso. Nervoso. Com medo. Tremia. O coração batia que parecia que iria rachar seu corpo ao meio. Mas era dever, e dever deveria ser cumprido. Apesar de tudo, era um homem honesto. Desde a época da Legião, cumpria aquilo que lhe era designado, mesmo que fosse difícil demais ou enfadonho demais. E ali não seria diferente. Para que fugir agora sendo que já estavam a um passo de achar a Música? Era só uma dor passageira e depois iria acabar. É como tirar sangue: uma breve picada de agulha, talvez uma ardência, mas depois acabava. Um sofrimento passageiro, necessário e, agora que ele raciocinava, não muito terrível.

— Tudo bem — ele assentiu e deu um passo à frente. — O que devo fazer?

Kurt estendeu uma carta. Rei de copas vermelho.

— Apenas olhe fixamente para esta carta, amigo, e trato feito.


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