Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 30
XXVII - Vaerteyn


Notas iniciais do capítulo

Vou aproveitar que ninguém ainda leu (acho) e dar um aviso sobre a história.

Darei uma pausa na história. Esse será o último capítulo que eu postarei por algum tempo, e o XXXIII será o último que vou escrever por enquanto. Quero voltar a estudar inglês em casa e começar a estudar para o vestibular, ler meus livros, ver se consigo ajudar em revisões de histórias pra alguns amigos e pra quem estiver precisando e traduzir algumas coisas. E claro, pensarei sobre os futuros capítulos de Entropia, arranjarei algumas ideias para poder finalmente escrever capítulos futuros.

Por enquanto, deixo meus adeuses a vocês (ou não, ainda podem me chamar no privado sempre que quiserem), mas também meus até logos.



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XXVII

Vaerteyn


Suas mãos eram frias como as de um cadáver.


Era a primeira vez que sentia o toque necrótico e morto de suas mãos. Elas também eram ásperas e magras, de modo que suas veias ficavam bastante proeminentes sob a pele.


A pele que agora tocava em seu rosto.


Entretanto, não era um toque carinhoso, muito menos amoroso. Era rude e ameaçador. Ameaçador, pois era exatamente isso que a dona das mãos cadavéricas fazia. Era seu costume, sua natureza, seu destino. Ser o caos ambulante, ameaçando a morte por onde passava.

Não ameaçador de uma forma geral, em que sua pessoa era um ser ameaçador. Bom, também. Mas, naquele momento, ela também ameaçava, e ameaçava justamente aquela que jamais imaginara machucando ou fazendo-lhe algum mal. Nenhuma delas imaginaria aquilo, para falar a verdade.

É claro que ela possuía seus motivos para tal, ao passo que a ameaçada possuía seus medos.

A Menina Sem Nome não imaginaria, depois de todas as reviravoltas sem fim que sua mente sem fim tivera, que Annik iria praticamente agarrá-la pelo pescoço e apontar uma pistola em sua cabeça.

É claro que toda aquela situação não fora simplesmente aquilo, mas aquilo era tudo em que a Menina Sem Nome conseguia se focar no que houvera antes e no que haveria depois. Seu mundo havia se reduzido numa arma apontada para sua cabeça e uma mão gelada e com unhas pontudas apertando seu maxilar. Não havia passado recente ou longínquo, assim como não havia futuro próximo ou distante. Cada segundo era uma memória única que parecia estar presa nos olhares, nas gotas de suor frio, em cada movimento dos tendões e dos dedos de Annik.

Não acreditava que tinha real risco de morrer ali. Ali ela era moeda de troca e, se Annik não estivesse disposta a entregá-la — o que definitivamente não estava —, iriam simplesmente disparar contra ela. Annik poderia ser a assassina que fosse, mas não era imortal, e mesmo tiros de apenas uma submetralhadora seriam capazes de matá-la. Assim como Annik não estava disposta a entregar Alice, esta também não estava disposta a deixá-la morrer por sua culpa e faria o necessário para ajudá-la. Teve de novamente segurar em uma arma e escondê-la na parte de trás da calça para que, quando o momento chegasse, ela de novo tivesse que atirar. E, se nada desse certo, as duas iriam ter de matar. E, assim como não estavam dispostas a deixar a outra morrer, também não queriam ter de pressionar um gatilho de novo, porém, cada uma por motivos diferentes.

Ambas eram ameaçadas, ambas temiam pelas vidas uma da outra, ambas não queriam sequer ver uma arma de fogo novamente. Situações idênticas, porquês diferentes.

— Eu já tô cansado de segurar essa arma — falou o homem da submetralhadora, o líder do grupo de mercenários. Não podia ver seu rosto porque estava coberto, assim como o dos outros dois ajudantes, mas era certamente um homem por causa da voz rouca, quase arrastada. — Annik, Annik... por favor! Não vê que nós todos queremos o bem de vocês?

Annik limitou-se a cuspir no pé deles, e um dos perdigotos caiu em Alice. Argh, que nojo. Talvez ela ainda estivesse se vingando pelo fato de a Menina ter vomitado em sua camisa e por cada ironia que Alice proferira contra ela no carro, que agora estava parado, mas com o motor ronronando levemente.

— Não sei que bem — ela disse, com rancor e desprezo na voz. — Vocês a querem para usá-la, se sabe-se lá como irão fazer isso. Eu particularmente nem quero imaginar. E aposto que você irá me fuzilar assim que eu lhe entregá-la.

— Eh. — O homem riu. — Talvez seja verdade. Mas você nunca vai ter certeza se não me entregar a menina.

— Se for assim, prefiro não ter certeza. — As unhas dela cravaram mais fundo na sua bochecha e a Menina tentou esconder uma careta de dor. — Por que eles a querem?

— Eles? Nããão, Annik, você entendeu tudo errado! Nós a queremos! Ela, como você deve saber, é o ser mais importante que tocou as areias do deserto e que irá tocar. Nós nem mesmo deveríamos estar apontando armas para você diante dela. Eu me sinto um pária fazendo isso, sabe? É como ser mal-educado diante de um rei.

— Se você se sente tão mal assim, poderíamos largar as armas e deixar que ela decida com quem quer ficar. Ela não é o ser mais importante? Então deixe que ela escolha.

O homem fez uma cara feia para Annik. Tentou ser esperto, mas Annik usou sua esperteza contra ele próprio. Ela não era apenas uma assassina nem um rosto bonito, mas ela era muito mais inteligente do qualquer um que a desafiava. Sabia como blefar e barganhar. Era boa com as palavras, com armas, com a música e com os sonhos — pelo menos fora isso que o gordo Isaac dissera. Não havia nada em que ela fosse ruim. Ela era o ser quase perfeito, mas a própria Alice, que nada daquele mundo conhecia, disputara contra ela e vencera. Ela era a Kra’vstanlas e era o ser mais que perfeito, apesar de que não se sentia como tal. Ainda era fraca, burra e perdida, enquanto Annik era resistente, esperta e familiar com tudo ou quase tudo daquele mundo.

— Tudo bem, então — disse o homem. — Ela escolhe. Tenho certeza de que você a assustou o suficiente pra que ela tenha nojo de você.

Annik não respondeu, apenas tirou a mão de seu rosto e colocou em seu ombro.

— Você sabe o que fazer — ela disse.

E Alice sabia, sim. Estava morrendo de medo, mas sabia passo a passo.


Os poucos milésimos foram arrastados como se tivessem pegado o rosto de alguém e esfregado contra uma parede áspera.

Annik havia lhe assegurado que não teriam de usar armas de novo, mas ela certamente não esperava uma emboscada como aquela. Os mercenários simplesmente estavam parados na estrada, o líder com a submetralhadora apontada bem na direção do carro, e Annik não teve outra escolha senão parar.

Sua mão na arma nas costas. As mãos de Annik aos poucos perdendo o contato com seu ombro esquerdo à medida que a Menina caminhava em direção aos mercenários. As mãos dela iam ao encontro da outra que segurava o revólver. O revólver dela, antes na sua cabeça, lentamente apontava para o homem da submetralhadora.

Ele, no primeiro milésimo, não suspeitou de nada. Só no segundo milésimo que sua expressão mudou completamente de prazer para confusão e raiva.

Porque no segundo milésimo, a Menina tirou a arma das costas e, mais rápido que um milissegundo, a apontou para o homem atrás do de submetralhadora.

Annik efetuou o primeiro disparo e o líder caiu, mas ainda era possível ver que estava vivo e tentava pegar a arma que deixara cair enquanto era ferido pelo tiro. A Menina acertou a pessoa da direita, que não sabia se era homem ou mulher. Provavelmente era uma mulher, por causa do grito agudo que ela emitiu quando fora atingida no estômago.

A terceira figura ainda estava recebendo toda a informação e reagiu desajeitadamente ao súbito ataque. Apesar disso, conseguiu ferir Alice com uma faca na testa, impelindo-a para trás e fazendo-a cambalear no corpo da mulher que atingira — agora morta. Seu revólver fora jogado longe quando caíra. [Ouviu socos e grunhidos, deveriam vir de Annik ou do líder dos mercenários.] O sobrevivente se lançou para cima da Menina e a fez se levantar. Colocou-a de pé [ouviu tiros, três em sequência] e encostou a faca fria e prateada em seu pescoço.

Annik se levantou do corpo do líder, que sangrava como uma vaca no abate, e apontou a pistola para a figura que rendia Alice.

E a figura pareceu gostar daquilo, porque riu levemente atrás dos panos que lhe cobriam o rosto. Seu riso era frio, duro e sádico. Era provavelmente masculino, também, mas Alice não se importava se quem a segurava era homem ou mulher. Só queria se livrar do abraço cruel do homem e do beijo da faca tão gelada quanto à noite do deserto. Sentia suas próprias mãos geladas sob as luvas de couro que achara dentro do porta-luvas do carro e imaginou como Annik não sentia frio nas mãos, que outrora estavam nuas, mas agora estavam envoltas em sangue.

Nem ela nem o homem disseram uma sequer palavra. Annik apenas ofegava, com a arma apontada para a cabeça dele, e ele, por sua vez, respirava tranquilamente, olhando-a com uma apatia calculista.

Ele pressionou a faca um pouco mais na garganta da Menina, e Annik rugiu, atirando próximo a ele e fazendo as areias se agitarem de medo.

— Não ouse atirar de novo, desgraçada — ele falou, sua voz rasgando na garganta, cheia de ódio que fez Alice sentir um calafrio. — Atire e eu enfio essa faca na garganta dela. — Ele pressionou a faca ainda mais, fazendo a Menina sentir uma pontada de dor. Gemeu baixinho, a ponto de apenas o homem poder ouvi-la. Depois sentiu algo escorrendo de onde a faca a perfurara.


Então, houve o caos.


O rosto de Annik se contorceu numa fúria indescritível. Ela atirou na testa do homem que a segurava, fazendo-o cair para trás e levando Alice junto com ele, mas ele não lhe faria mais mal. Estava inerte, os braços e pernas moles, morto. Não era o que Annik acreditava, provavelmente, porque andava a passos largos, quase corria, em direção ao homem. Alice se levantou e, quando a viu daquele jeito, fez questão de ficar o mais longe possível dela.

Ela descarregou o pente da arma no homem morto, todos os tiros na cabeça, enquanto ela gritava loucamente de ódio. Depois parou de gritar e atirar — porque já não tinha mais balas —, e passou a bater com a arma no rosto do homem, urrando a cada golpe.

Alice não soube o que sentir. Pena e medo misturados. Medo dela se voltar contra si mesma, apesar de que sabia que as possibilidades de aquilo acontecer eram bem baixas. Pena porque a viu sucumbir em seu ódio quase irracional que ela tentava controlar.

Ela ficou naquele estado por pouco menos de dois minutos, quando a Menina aproximou-se dela, tocou em seu ombro e ela imediatamente se aquietou, como uma criancinha arrependida. Annik estava de joelhos perante o corpo sangrento do homem, cujo nome iria morrer para sempre, apenas observando o estrago que fizera. Observava aquilo como uma derrota lamentável, e de fato era. Alice agachou-se ao seu lado e a abraçou de um modo desajeitado. Annik não tentou impedi-la, estranhamente. Ela não gostava muito de contato físico, e aquela era a primeira vez em que ela permitia uma demonstração de afeto daquele tipo.

Por que fizera aquilo?, a Menina se perguntava. Não sabia. Talvez fosse compaixão, pena, afeto... Não soube explicar; fizera aquilo automaticamente, sem precisar de porquês ou desculpas.

— Já chega disso, Annik — falou. — Vamos embora daqui.

Annik assentiu apaticamente. Murmurou um pedido de desculpas tão fraco que a Menina mal pôde ouvir e nem reagiu a ele. Ela parecia doente daquela forma, mas Alice sabia que não havia doença no Mundo senão a loucura. E Annik sucumbia a ela.

Percebeu que Annik não era a pessoa boa que imaginara ser. Sua mente tentara a convencer do contrário, mas agora ela estava certa que Annik ainda era, de fato, um ser repugnante e que merecia, em parte, desprezo. E dó. No entanto, Alice não conseguia desprezá-la. A pena superava qualquer nojo que poderia ter dela e a cegava perante a maldade e crueldade da Assassina. Ela esforçava-se para tentar controlar seu desejo de morte, mas não conseguia. Não conseguia porque aquilo era parte de sua natureza. Mas seus esforços eram em vão. Era como tentar ser uma pessoa diferente da que realmente se era. E era por isso que a Menina sentia pena: porque sua sede por violência era irreversível, irreparável, e mesmo assim, Annik tentava se consertar. O que era impossível, porque, teoricamente, ela não estava quebrada. Ela não era um vaso quebrado. Ela era um vaso... diferente. Um vaso feio, velho e empoeirado que ninguém quer usar para decorar a própria casa.

Mas, contrariando a própria lógica, Alice não a desprezava. Sabia que a culpa não era dela, mas da maldita natureza que a destinava a ser daquela forma cruel. Não era ela em si que merecia ser desprezada, mas seus impulsos sangrentos. Alice os desprezava, mas não Annik. Se não fosse por aquilo, ela seria, literalmente, a melhor pessoa daquele mundo. Ou pelo menos a melhor pessoa que Alice conhecera ali.

Ainda mais doentiamente, Alice sabia que Annik era uma peça de decoração horrível e que provavelmente estragaria o ambiente de qualquer casa, mas mesmo assim, a Menina decoraria sua casa com ela. Não porque a achasse bonita ou útil, mas por sentimentalismo puro. É como manter aquela decoração brega que alguém importante lhe dera, mas apenas porque veio de uma pessoa especial.

Pensar naquilo a deixou deprimida. Saber que Annik jamais seria a pessoa boa que ela tentava ser era muito doloroso. Sentiu lágrimas nos olhos, mas, felizmente, Annik não as percebeu. Estava se sentindo mal demais para notá-las. Se percebesse, iria perguntar o porquê delas, e a Menina não queria contar a dura verdade. Ainda esperava que Annik acreditasse nas próprias ilusões e realmente conseguisse se tornar melhor. Ainda tinha esperanças, mesmo que quase nulas, de que ela mudasse e deixasse de ser uma criatura de impulsos desprezíveis na mente de um ser benigno. Tinha dó de contar a verdade a ela e ela ficar tão deprimida quanto a Menina já estava. Tinha mais medo de que, se contasse a verdade, ela se tornasse incontrolável.

Assim como Annik não fora mais Annik nos poucos minutos de fúria que se passaram, ela também deixaria de ser ela própria quando fora de seu êxtase violento. Naquele momento de insanidade, ela tinha sido o Diabo, a Morte e a Crueldade. Era um ser que conseguia reunir toda a desgraça do mundo em um só ser, e se contasse a verdade, ela seria um demônio para sempre.


Ela seria Vaerteyn, apenas Vaerteyn, e nunca mais Annik.


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