Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 25
XXII - O Sonho


Notas iniciais do capítulo

o capítulo mais trabalhoso até o momento.

P.S.: Entropia chegou aos 42 comentários. Acho que todo mundo deve conhecer a importância desse número [spoiler: a vida, o universo e tudo mais]. Agradeço a todos que comentaram e agradeço àqueles que continuam acompanhando e apreciando o meu... "trabalho" com esta história =)

would the wind fly round as she tumbles?...

https://www.youtube.com/watch?v=7pEltqAXbdQ
Grimes - Caladan.



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XXII

O Sonho


“We all haunt in the sky at night

Under a sea of clouds I fly…”¹

— Grimes; Caladan.


Boiava em escuridão fria e rodopiava, deixando a correnteza torvelinhante sugar sua consciência.


Era assim que os sonos da Menina Sem Nome eram. Negros, sem conteúdo, sem consciência.  Sem palavras e sons. Sem existência. E era por isso que gostava tanto deles: porque eles faziam-na se sentir como se fosse um ser ainda inexistente, esperando nos confins do universo para ser criada, para cair em algum universo qualquer, em algum mundo qualquer e existir.

Entretanto, naquele sono em específico, aconteceu algo diferente.


A Menina Sem Nome e Sem Sonhos sonhou.


Nadava quando percebeu que sonhava. Mais precisamente, afundava. Sentia os membros lentos, como se a tivessem enfiado dentro de uma gelatina azul gigante. Escalar a água era difícil, pois parecia que havia infinita água sobre sua cabeça. Como se não houvesse superfície, apenas o fundo, para onde ela era empurrada pela força da maré.

O ar já era escasso. Ela lutava contra a ânsia de respirar debaixo d’água. Mas em algum momento, seus pulmões não iriam aguentar e ela iria respirar. Então a água iria penetrar pelas suas narinas e descer até os pulmões, e ela iria se asfixiar. Morreria afogada.

Seus braços já doíam de tanto lutar contra a força d’água. Ela iria morrer e acordaria, com certeza. Quem diria que alguém poderia morrer afogado no deserto.

Antes que pudesse desvanecer-se por completo daquele sonho, alcançou a superfície, que, do fundo do mar, parecia tão longe quanto à lua. Arfou pesadamente, o coração batendo muito mais rápido que o normal, tendo ficado muito tempo sem oxigênio e bombeado o pouco que sobrara para as muitas células. Seu ofego pareceu um rugido, mas não um atemorizador e que passava a clara mensagem de perigo às presas: era um rugido fracassado e derrotado, um leão que perdera uma luta.

Seus olhos inquietos e completamente perdidos vasculharam o pouco que conseguia ver da superfície. Parecia que o oceano havia entrado em seus olhos, pois tudo o que via era água e mais água, infinitamente água, um mundo feito apenas de água e mares.

Ao longe, quando pensou que não havia solo para pisar nem uma praia ao longe para onde pudesse nadar e desmaiar quando finalmente as forças já estivessem esgotadas e apenas as ondas do mar a carregassem, a Menina pôde ver uma ilha muito pequena. Sentada no único pedaço de terra dali, havia uma figura observando ao longe. Não sabia, no entanto, se ela observava céu ou mar.

Nadou na direção da minúscula ilha, a força das ondas ainda insistindo em empurrá-la para trás. Agora podia ouvir o som do mundo fora d’água, o som da superfície que era abafado assim que submergia. Cada onda era tão forte que o som de uma delas era equivalente uma árvore bem grande indo direto ao chão após ser partida por um lenhador. Multiplique por dez mil e talvez o som obtido como produto dessa multiplicação se aproxime ao barulho de todas as ondas. Ou talvez seja mais fácil exemplificar desta forma: um raio com energia suficiente para eletrizar todo um oceano, vindo das mãos de Zeus em pessoa (ou divindade, se preferir), partindo uma montanha de mais de dez mil metros de altura.

A figura, que antes olhava para tão longe que podia jurar que seu olhar ultrapassava a linha do horizonte e que conseguia enxergar além dela, bruscamente pôs seu olhar sobre a Menina Sem Nome, e Alice soube que conhecia aqueles olhos assim que os viu. Pareciam ser dois buracos negros: sem luz e tão profundos quanto o ponto mais profundo do oceano².

Antes que pudesse pensar em quem era o dono dos olhos — apesar de que seu inconsciente sabia quem era, só que a informação ainda não havia ido para uma parte exterior, que lhe diria, com todas as letras escritas e o rosto da pessoa, quem ela era. É quase a mesma coisa de ter uma ideia fantástica e nem mesmo conseguir traduzi-la em palavras, de tão profunda e complexa ela é —, uma onda tão grande que parecia ser um tsunami deu-lhe um tapa e a impeliu para dentro do oceano novamente.

Voltou ao mundo silencioso, apenas o som dos membros se movimentando em meio a água e das bolhas subindo e subindo… Ao mundo onde tudo era em câmera lenta, onde cada movimento demorava uma eternidade. Ao mundo onde não havia ar e morreria naquela cena linda e perigosa. Via a si mesma afundando, as bolhas escapando de sua boca e indo em direção à superfície onde virariam ar de novo e deixariam de ser bolhas. Era lindo de se ver, uma dança silenciosa. E mortal, se ela demorasse demais. Um mundo coberto de azul, como se o azul do céu da noite refletisse sobre e dentro da água, que imitava seu rival, o céu.

Via aquela paisagem quieta, flutuando no fundo do mar, sem forças para emergir. Seus braços e pernas já doíam de tanto lutar contra a água. Ali seria seu fim, observando o azul, e quando seu pulmão já não aguentasse mais respirar, ela iria acordar ou voltar à escuridão de sempre.


Espere.


Aquilo era um sonho… então ela não precisava prender o fôlego! Aos poucos e debaixo d’água, a Menina Sem Nome inspirou, e nenhuma água entrou pelo seu nariz. E ela pôde voltar a nadar sob a grande seda azul, uma floresta em que os peixes eram os animais, e as árvores e outras vegetações, os corais e as algas.

O fundo do oceano parecia distante e cheio de dunas, como ondas que tivessem virado . Talvez fosse por aquele motivo que chamavam o Deserto de Mar de Areia. Ele parecia tão distante como as estrelas pareciam estar da terra. Era como observar luas ou planetas distantes: eles aparentam estar próximos, mas na verdade estão a anos-luz de distância.

A quilômetros de quilômetros de quilômetros de quilômetros de distância.

Parecia flutuar àquela altura, como se as propriedades da água simplesmente não existissem, ou como se estivesse no espaço, no céu que costumava admirar pela janela do carro. Abaixo de si, o Deserto.


E Alice observava.


Annik dizia, no carro, que o Deserto observava a tudo e todos. Ele era o juiz e carrasco de todo ser, vivo ou não-vivo, que tivesse o lamentável destino de cair ali. Ele era senciente. Em cada grão de areia, ele sentia o suor e o sangue derramado; ouvia as palavras serem ditas; ele sentia o calor apocalíptico que parecia exalar da própria areia — o suor das areias — e não do sol e também sentia o frio congelante das noites sem fim, elas sentiam a escuridão consumindo o mundo quando as luzes se apagavam e não havia ninguém, nem mesmo o próprio Deserto, como a criatura quase divina que em cada grão conseguia ultrapassar os cinco sentidos, tinha poder para destruir a escuridão e o que vem junto a ela.

Segundo Annik, cada grão de areia do Deserto era uma palavra. Eram tantos grãos que era como se o kra’vstan fosse quase interminável; um dicionário com bilhões e bilhões de páginas, tantas páginas que poderia ir de uma galáxia a outra e, se cada página fosse dobrada mais de cem vezes e posta uma sobre a outra, poderia ir de um universo a outro ou até mais. Cruzar uma infinidade de universos existentes e ainda ter folhas o suficiente para voltar e contar a história. Segundo ela, nem mesmo “apenas” os grãos de areia do Deserto eram suficientes para comparar o número de palavras existentes no kra’vstan; para ter uma medida real, era necessário somar o número de grãos de areia de todos os desertos existentes naquele universo e em todos os outros universos infinitos universos existentes.

Mas mesmo o Deserto sendo poderoso e tão grande que se tornava incontável, tinha uma fraqueza: ele era incontável, mas não era infinito. E, da mesma forma, seu poder tinha fim. Talvez fosse por aquele motivo que as palavras tinham poder; porque elas não tinham fim. Eram incontáveis e infinitas. O Deserto podia ter sua fraqueza, mas havia muito poder naqueles que por ele perambulavam, e um poder sem fim. E era por aquilo, por ter sua fraqueza, que ele temia a escuridão e tudo o que ela trazia. Porque mesmo com seu poder, ele não era capaz de detê-la. Mas talvez as palavras conseguissem. Porque apenas o interminável tem poder, e como dito e não esquecido, as palavras têm poder.

Naquele momento, ela se sentiu mais poderosa que o Deserto. Ela estava flutuando sobre ele, observando o observador. Entretanto, devido à sua grandiosidade, nada podia observar o universo, e por isso ele era absoluto. Mais absoluto do que o Deserto ousava ser. E ele não era absoluto, pois era arrogante e agia feito um carrasco perante aqueles que o contemplavam, mas porque ele era sem fim.

Annik lhe contava que as pessoas do deserto acreditavam que ele era infinito, mas ela própria afirmava que aquilo era “bobagem”. Ela sabia que o Deserto era limitado e estava certa. Entretanto, só não estava correta em um único ponto: quando ela agia com desprezo em relação ao deserto. Reparava quando ela dizia sobre si e o seu passado — eram raras as vezes em que isso acontecia, mas quando acontecia, a Menina mantinha os ouvidos atentos — e ela parecia tratar o Deserto como um ser maquiavélico, que sempre tramava contra aqueles que Nele viviam, agindo como se fosse um Lúcifer. Entretanto, a Menina sabia que aquilo não fazia sentido. Não havia sentido em tratar o Deserto daquela forma, uma vez que havia formas de poder tão grandes quanto o multiverso dentro Dele, mesmo Ele sendo limitado. O destino daqueles que caíam Ali não era lamentável; muito pelo contrário. Talvez fosse o mais sortudo de muitos outros destinos que caíam em outros desertos, em outros mundos, em outros universos. Porque era naquele deserto, daquele mundo e daquele universo, que poderia haver algo tão incontável e grandioso quanto o próprio multiverso, a vida ou até mesmo um buraco negro, de escuridão incontável e queda infinita até a singularidade. Era naquele deserto que as palavras assumiam uma forma quase divina, que as palavras tinham poder.


As palavras têm poder.


Alice via o deserto como uma estrela, ou melhor, como um cometa, afinal, ela ainda podia navegar ou flutuar por aquele espaço, movimentar-se como um cometa podia fazer.

Havia oceanos de água, barulhentos, tumultuosos, como se cada onda fosse uma multidão se chocando contra outra, provocando um barulho ensurdecedor. Havia o Mar de Areia, o qual ela observava. As ondas do deserto eram apenas dunas e vento quente e ardente. Não era possível nadar sob ele, mas sim, sobre ele, tal qual um messias. E não havia nenhum som além do sarlik, a canção do deserto, cujo maestro e instrumentistas eram o vento, unicamente. E a Menina descobriu que havia outro tipo de oceano. Um que estava sobre suas cabeças durante todo aquele tempo, mas Alice só o compreendeu quando o vislumbrou em seu ápice majestoso.

E quando o entendeu, ela pôde mergulhar sob e sobre ele. Porque, naquele oceano, não havia mais o conceito de superfície, apenas o de profundeza. Afogar-se era inevitável.

Observando o Saar, Alice viu figuras como se elas estivessem a quilômetros de quilômetros de distância, ou talvez ainda mais distante, como o brilho refletido de uma estrela que na verdade estava a anos-luz de seu observador, ou até mesmo já nem existisse. Seriam as estrelas sonhadores que se afogaram ali e agora apenas observavam? A Menina não sabia. Jamais saberia.

Ela visualizou, primeiramente, várias figuras: quatro diante de uma figura negra. Uma delas falava em kra’vstan, de modo que a Menina não entendeu quase nada do que foi dito.

At vant vudromha.

Et üs agramt — as outras quatro vozes pronunciaram num coro tão perfeito que poderia ser confundido com uma única e poderosa voz.

A Menina tentou aproximar-se daquela cena, mas ela parecia diferente à medida que chegava perto.

Viu dois seres, um negro e outro bege correndo pelo deserto. Queria saber quem eles eram. Uma parte de si sabia quem era um daqueles seres, mas queria saber quem era o outro. Queria ver por que eles corriam. E então navegou para mais perto, mas a cena mudou-se ainda mais rapidamente.

Dessa vez, ela ficou turva, como se estivesse mergulhando em águas novamente, e não em vácuo cósmico. Estaria ela indo embora do sonho? Não podia, não ainda. Não enquanto não visse quem era aqueles seres. Mas parecia que, quanto mais ela navegava, mais distantes eles ficavam e mais angustiante toda aquela sensação lhe parecia.

Viu algo que parecia com um enorme prédio, e mesmo de cima, Alice tinha dificuldades em vê-lo. Uma figura negra adentrava o prédio, e vozes foram derramadas dentro da mente da Menina.


Tão especial… É mesmo uma pena… Uma pena…

 

Sopraram dentro de sua mente como nitrogênio líquido.

Viu um grupo de retângulos beges, todos muito desfocados — e Alice não sabia por quê. Naquela cena, não houve vozes nem na cena nem dentro de sua cabeça. Ela era silenciosa como o mundo imerso em águas.

Então tentou mergulhar mais.

E o sonho se tornou instável como um canal perdendo a transmissão momentaneamente. Era como se seu sonho estivesse tendo interferências constantes, as imagens ficaram estranhas, quadriculadas, como se fosse um dado corrompido, assim como as vozes viraram chiados. Estava entrando numa televisão de tubo, era isso?

Então toda a água do oceano barulhento e caótico jorrou diante de si, como um gigantesco gêiser, empurrando-a de volta para a superfície — e para a realidade.


ARGH.


Ofegava. Primeiro ofegou, depois abriu os olhos. E viu o carro, ainda respirando rápida e profundamente. O que era tudo aquilo? Ela existia? Onde…? O quê…? Não sei, não sei de nada, por quê, por quê…

O carro… agora se lembrava. Ele estava parado, estranhamente. Não era para ele estar andando? Annik. Alguma coisa deveria ter acontecido para ela ter parado o carro.

— Annik… — a voz soou dormente. — O que aconteceu…? Eu… sonhei…

— Não foi um sonho — a voz dela soou quase ríspida. Alice viu-a levantar a cabeça, segurando com as duas mãos o volante. Ela sangrava pelo nariz quando seu reflexo apareceu no retrovisor.

— O que aconteceu… — sua voz estava tão letárgica que não conseguia nem mesmo dar um tom interrogativo a uma frase. — Por que você tá… sangrando…

— Você não teve um sonho — ela continuou, dessa vez menos rígida. Falava com um tom sussurrante de sempre, difícil de ler, mas que Alice interpretou como uma descrença quebrada. Annik parecia tão cansada quanto ela. Ela estava ferida, é claro que estaria cansada. Teria batido com o nariz no volante numa freada brusca? Ou alguém havia tentado matá-las?

— Annik, alguém tentou… sei lá, matar a gente? — já conseguia falar de maneira mais normal. — Por que você tá machucada?

Ela suspirou antes de dar a resposta. E Alice soube pelo suspiro que aquela era uma resposta árdua.

— Porque você entrou na minha mente.


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Notas finais do capítulo

¹Na frase inicial: "Nós todos assombramos nos céus à noite / Sob um mar de nuvens eu voo..."



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