Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 24
XXI - Silêncio




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/653186/chapter/24

XXI

Silêncio


Adam bateu na porta, primeiro suavemente. Toc, toc. A madeira fez um som tão bonito que parecia se sentir lisonjeada, como se tivesse o cabelo acariciado e elogiado.


Nada.


Bateu de novo. Toc. Toc. O som da impaciência e da frieza. Havia uma pausa muito maior entre um toc e outro, o que significava um alerta. Um alerta em forma de silêncio bem breve. A madeira perdeu o som bonito e ficou neutra. Ficou como se alguém apertasse sua mão friamente. Como se alguém a tratasse como ela era de verdade: uma porta de madeira.


De novo, nada.


Toctoctoctoctoctoctoc. Dessa vez, sem breves silêncios de aviso. Era pressa para ser atendido, quase sem nenhum sentimento presente naqueles sons senão a impaciência e a irracionalidade. Fora isso, mais nada, se é que aquelas duas coisas poderiam ser consideradas sentimentos.


E nada.


— Chega disso — Dusq falou, impaciente como sempre, e escoiceou a porta, que se abriu como se fosse papel soprado por uma ventania.

— Você não precisava ter feito isso — foi apenas o que Adam conseguiu dizer.

— É claro que precisava — a Serpente retrucou. — Era isso ou ficar plantados aqui, esperando a boa vontade do dono da casa. Se ele não quer nos receber, nós vamos recebê-lo.

— Se é que ele está mesmo aí… — o cavalo disse. — Vocês sabem, a Organização está caçando os antigos membros da Legião.

— Eu não sabia — respondeu Adam —, mas não me surpreende nem um pouco. Sempre nos caçaram e não vai ser agora que isso vai mudar. Principalmente depois do serviço malfeito que fizeram em tentar nos aniquilar.

— Eles ainda temem o poder que os sobreviventes do massacre podem ter — disse a cobra. — Temem que nós possamos recriar a Legião e finalmente destruí-los. Também têm medo de que o resto do mundo, ou pelo menos aqueles que eles controlam com o medo, descubram que eles não terminaram o massacre, que deixaram sobreviventes. Eles espalharam tantas mentiras e blasfêmias contra nós, que o povo, que antigamente nos apoiava contra a tirania do Hasir e da crueldade da Organização, agora nos teme igualmente.

— Você tem razão. Eles sabem que nós não fomos oponentes fracos. Não éramos qualquer um.

— A organização da Legião deu medo justamente a quem possuía aquele nome. A Legião era mais organizada e disciplinada que a própria Organização. Que irônico. — A Serpente sorriu.

— Enfim, vão ficar conversando ou vão entrar? — Dusq, apressado, apontou com a cabeça para a porta, jogando sua crina negra para o lado. Ele provavelmente ficaria de fora; seu porte equino não o deixaria passar pela porta. Adam não se sentia bem invadindo uma casa, mas era a única opção que eles tinham no momento.

O tipo de Crepúsculo não era o tipo de gente com quem Adam gostava de mexer, mas depois de toda a desgraça que acontecera consigo mesmo e com todos aqueles que podia considerar amigos, não importava mais com quem conversava. Se havia matado um ou mil, não importava, desde que o ajudasse. Não importava se era um babaca estúpido ou uma pessoa racional e bondosa, ele só queria caminhar mais um passo naquela jornada que parecia não ter fim. O que era estranho era que a pessoa mais próxima de si mesmo fora Annik, uma assassina sem tamanho, o tipo de gente que o próprio Adam e a Legião repudiavam… e estranhamente, fora justamente onde ela parara. Na Legião e com Adam. Sempre se perguntou por que Annik nunca se aliara à Organização. Talvez fora por que ele havia a conhecido na Universidade, a Instituição, e ela não havia o achado um idiota, e então resolveu seguir seus passos. Talvez não tivesse outro lugar para ir depois dali, ou talvez apenas não tivesse descoberto seu instinto assassino na época. Aquilo também o fazia pensar se ela havia se arrependido de se juntar à Legião, que condenava aquele tipo de gente.

— Tudo bem, estou indo — Adam apressou-se e passou pela porta.


Assim que entrou, seus pés ressonando na madeira, ele soube que havia algo errado.


A madeira rangia como se estivesse inquieta sob seus pés. A atmosfera ao redor parecia muito… errada. Parecia desorganizada. E Isaac nunca fora de ser desorganizado. Ele transmitia uma aura de limpeza e organização, não… aquilo.

Deu mais um passo para ter certeza do que aquele som lhe dizia. Era ainda pior do que ele esperava.

O segundo passo lhe disse coisas piores. Ela estava não apenas inquieta, mas também atemorizada. Era como se cada passo despertasse o susto, por isso aquele som lhe saía tão temeroso. Era completamente diferente da porta, que, ao primeiro toque, fora suave, mas depois ficou fria. Era pior. Era um som de inquietação, ansiedade, suor frio, medo. Medo de que Adam fosse um psicopata assassino que iria esquartejá-la.

O terceiro passo foi um grito. Um grito completamente apavorado, pânico ecoando por todos os lados. E, se a certeza tivesse um patamar além da própria certeza, Adam diria que estaria nesse ponto, pois a Serpente também foi capaz de captar algo diferente naquela casa.

— Cheiro… de morte.

— O q-quê?!

— Sinto cheiro de sangue, Adam — ela disse, com a língua bifurcada à mostra. — Está vindo do andar de cima. — Ela apontou com a cabeça para as escadas no minúsculo hall de entrada.

Adam subiu as escadas correndo, os passos abafados por conta do carpete bege quase marrom. Aqueles sons abafados não significavam nada, por enquanto.


Mas o silêncio de quando seus pés pararam, já no segundo andar, foi o suficiente para explicar tudo.


— Ah, não… — Os olhos de Adam estavam arregalados. Seu corpo, paralisado, tentava decifrar a cena. Mas não havia como decifrar o que já estava resolvido. Adam ficou mais decepcionado do que chocado. Por um momento, depois de ouvir os passos, o que a Serpente havia dito no primeiro andar e o fato de ele não atendê-lo, parecia que o Bardo já sabia que aquele seria o resultado daquela visita, só não queria enfiá-la na cabeça.

— Chegamos muito tarde… — A Serpente rastejou da mão de Adam para perto do corpo de Isaac.

O cadáver estava estirado no chão, ao lado de uma mesa cheia de armas. A barriga estava aberta e rasgada de uma maneira tão repugnante que era como se fosse uma assinatura da Organização: a crueldade extrema, desumana e grotesca. Era possível ver alguns de seus órgãos, como um pedaço do estômago, fígado, um rim e a vesícula biliar, além das costelas um pouco expostas. Era como se alguém tivesse aberto sua barriga e feito um festim com sua carne. Realmente não duvidava que a Organização tivesse se alimentado do corpo de Isaac. Eles bebiam sangue dos inimigos, nada os impedia de também serem canibais.

Adam vomitaria, mas felizmente (ou não), seus tempos na Legião o fizeram se acostumar com imagens sórdidas como aquela ou piores.

— E agora? — perguntou a Serpente. Sua voz estava meio embargada. Ela sempre fora meio emotiva quanto aos amigos e companheiros, mas não tanto quanto Adam fora.


Entretanto, Adam não mais chorava nem se lamentava.

Rever a Serpente fora um choque, um choque muito bom que quase o fez chorar, mas ver seus ex-companheiros morrendo já não o assustava mais.

Porque Adam já havia se acostumado com a morte.

Já havia se acostumado primeiro em matar, na época da Legião. Não havia nem um pouco de prazer naquilo, mas a repulsa havia ido embora. Depois, em ver os mortos nos campos de batalha, lavando a areia com sangue. Também não havia prazer em ver inimigos mortos, muito menos em ver aliados. Mas a morte atinge a todos igualmente, e Adam não sentia, da mesma forma, nenhum desprazer em ver os cadáveres de ambos os lados jazendo no chão. Aprendera que sentir coisas pelos mortos era perda de tempo, porque não havia mais nada o que sentir por eles. Eles já não eram mais nada além de cascas sem vida. Era claro que não gostou de ter aprendido aquilo, mas o dogma da Legião ficou tão incrustado na sua cabeça que era difícil de tirar depois de tanto tempo.

E, tempos depois, Adam também se acostumou a morrer.


— Agora? — Adam perguntou. Não fazia ideia nem do futuro, imagine do agora? — Vamos dar uma olhada no que ele tem por aí. Ele tem uma estante cheia de livros, com certeza deve ter alguma coisa sobre o que procuramos.

— Adam — a Serpente ainda choramingava —, olha isso.

Ele virou-se. Não viu nada além da cobra.

— O que foi?

— Alguém esteve aqui recentemente.

— É, eu sei, a Organização.

— Não, Adam. Outra pessoa. Outras pessoas.

— Como você sabe?

— Sinto o cheiro delas. E está faltando um item aqui.

Oh, meu Deus. Adam soube o que era. Soube quem era.

— O casaco dela…

— Sim. Isaac jurou que ia cuidar daquele trapo que ela usava, mas ele não está aqui. Alguém o levou embora.

— Pode ter sido a Organização…

— Por que eles iriam levar embora um sobretudo velho e empoeirado? Pense, Adam! Foi ela. Sinto o cheiro dela. O dela e de mais uma pessoa. Acredito que é a que a estava acompanhando.

— Quem é essa pessoa? A Rainha me disse nos sonhos que ela estava acompanhada, mas… quem?

— Ninguém faz ideia. Ninguém conseguiu ler o kayrn de quem estava com ela.

Kra’vstanlas?

— O quê? — a Serpente riu um pouco com aquilo. Parecia ter esquecido que o corpo de Isaac jazia ali, como se tivesse feito parte de um jantar. — De onde você tirou essa ideia?

— Você disse que ninguém conseguiu ler o nome da outra pessoa, então…

Ela sacudiu a cabeça, negando.

— Não, não é possível. Provavelmente não deu para ver o rosto da pessoa, ou coisa do tipo. Kra’vstanlas? É sério? Você me faz rir mesmo quando não tenho motivo para isso!

— Sabe… eu sempre tive a esperança… na época da Legião. — Ele era imbecil por acreditar naquela fantasia da época da Legião. Entretanto, ele não era o único.

— E foi essa esperança que nos destruiu.





Silêncio. Adam Não gostava daquele som, ou da falta dele. Muito… embaraçoso. Ele era um homem de sons. A falta deles, obviamente, não o fazia se sentir bem. Fazia-o se sentir envergonhado e fraco, idiota e inútil. Ele era fraco demais para começar um novo parágrafo num mundo silencioso.

Mas não era fraco para começar uma nova canção.

Tirou o violão das costas e começou a dedilhar seus sentimentos.

— Adam, isso não é hora para tocar — repreendeu a Serpente.

— Uma melodia para o nosso amigo — ele disse apenas, nem mesmo tentou se desculpar. Não havia pelo que se desculpar. A Serpente pareceu achar aquela uma justificativa louvável e não o interrompeu mais.

Aproximou-se do corpo destroçado de Isaac, ainda vibrando corda por corda de um acorde qualquer que fazia na escala do violão. Abaixou-se devagar, sem perder o ritmo da música ou errar uma sequer nota — era sua precisão com os sons que fazia dele o Bardo. O cheiro de sangue e vísceras franzia seu nariz involuntariamente.

Dovan — Adam gastou seu kra’vstan após acumular durante tanto tempo. Bem, ele iria ter de gastá-lo em algum momento, principalmente depois de tanto pensar em Annik e em toda sua desgraça. Agora tinha mais uma nova desgraça para pensar. — Dovan, menya ame’ni. Adeus e obrigado, meu amigo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Entropia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.