Depois da estranha visão que tive da reunião de Ryan não pude deixar de pensar no que se tornaria minha vida de agora em diante. Para evitar que os pensamentos pessimistas continuassem me perturbando decidi ligar o rádio no volume mais alto que podia e resolvi pintar algo que extravasasse minhas emoções. Quando percebi estava fazendo um desenho abstrato, repleto de linhas em todos os sentidos e em todas as cores, representando a confusão que se passava em minha mente naquele momento. Continuei a pintar não me importando com a sujeira que fazia ao redor de onde o quadro se encontrava. Levei um susto ao constatar que a música tinha parado subitamente e me virei mortificada, com medo de quem poderia ter feito isto.

– Eu não acredito que você já está pintando! – Cindy falou indignada.

– Nunca mais faça isso, sua louca! Eu levei um susto! – xinguei-a.

– Se o som não estivesse tão alto você teria me ouvido – falou como se não fosse nada demais o fato de quase me matar de susto.

– Não adianta discutir com você mesmo – suspirei – o que você faz aqui?

– Vim saber como foi a sua noite com Ryan – Cindy disse e sorriu maliciosa, logo se dirigindo até o meu sofá.

– O que você quer dizer com isso? – perguntei sem a encarar.

– Não me diga que eu preciso explicar – riu – eu vi o beijo que Ryan lhe deu quando aquele homem bêbado se aproximou.

– E o que tem? – questionei e me virei para assinar o quadro que já havia finalizado.

– Ele não passou a noite com você?

– Não, ele somente me deixou em casa – menti descaradamente.

– Eu não acredito nisso Sophie, um homem lindo, que está claramente apaixonado por você e ele não passou a noite aqui? – perguntou descrente.

– É exatamente isso, não... espera, você disse apaixonado? – fiquei chocada com a informação – Isso não é possível!

Ryan nunca poderia estar apaixonado por mim, Cindy está imaginando isto, ele é um anjo que pela primeira vez veio à Terra e beijou uma humana, é só isso. Tem que ser.

– Você às vezes é tão ingênua, fofa – ela disse e levantou para me apertar as bochechas.

– Não faça isso – me afastei de Cindy – mas... eu e Ryan acabamos de começar a namorar, é muito cedo para ele estar apaixonado.

– Não duvide de mim, eu entendo dessas coisas – Cindy falou me olhando nos olhos – mas eu não consigo entender como ele não ficou com você! Eu e Faith saímos juntas justamente para deixar vocês sozinhos!

– Eu sabia que esse era o motivo de você sair arrastando a garota, mas Ryan sabia que eu estava cansada depois de passar a noite naqueles saltos altos e assim que chegamos ele se despediu – dei de ombros.

– Vocês parecem um casal de velhos, que coisa mais sem-graça – resmungou – mas já que eu estou aqui vamos assistir algum filme – olhou em volta – melhor ainda: vamos ao cinema!

– Cinema? Não estou com paciência de sair – reclamei.

– Nem pensar! Deixa essa preguiça de lado e vá se trocar – disse, me empurrando em direção ao meu quarto.

Sem opção, tomei um banho rápido para me livrar das tintas que haviam pingado em mim. Sai do banho e Cindy já havia separado as minhas roupas: um vestido florido tomara-que-caia com um cinto e sandálias de salto mediano.

– Eu não vou vestir isso Cindy! – protestei – nós estamos indo ao cinema, eu não preciso usar saltos ou vestidos.

– Se arrumar para sair de vez em quando não faz mal para ninguém – argumentou.

Eu sabia que não faria sentido discutir com Cindy, pois ela sabia ser muito insistente. Me vesti e deixei os cabelos soltos, sem paciência para me maquiar.

– Vamos logo antes que eu desista – falei enquanto ia em direção à porta, deixando uma Cindy que mexia no celular para trás.

Fomos para o cinema que estava consideravelmente vazio e decidimos por ver um filme que acabara de ser lançado. Eu não tinha ideia do que o filme falava até que numa das primeiras cenas do filme o personagem principal revela ser super-forte e possuir asas. Nem no cinema os anjos me deixavam em paz! Após a descoberta fiquei bem menos animada com o enredo, mas uma cena me chamou a atenção: o anjo se apaixona por uma mortal e decide viver na Terra com ela. Será que isso poderia se tornar realidade?

– Que filme fantástico! – Cindy comentou logo após sairmos da sala de cinema – Será que anjos são reais? – os olhos dela brilhavam.

– Tudo é possível até que se prove o contrário – ri sem graça tentando me desviar da pergunta.

– Eu adoraria ter um anjo lindo, alto, forte e musculoso me salvando de todos os perigos. Você acha que anjos, se existirem, são capazes de se apaixonar?

– Não tenho a mínima ideia Cindy – foi o que respondi. A verdade é que essa era a pergunta que não me saía da cabeça.

Saímos do cinema e fomos andando e conversando sobre o filme até chegarmos a minha casa. Ao nos aproximarmos notei uma figura familiar ao lado da minha porta.

– Faith! – interrompi a loira ao meu lado para chamar a atenção da garota que parecia perdida em pensamentos.

– Sophie, eu estava preocupada com você! Você não atendia o telefone! – repreendeu-me a mais nova.

– Eu estava no cinema, desculpa – falei, envergonhada de fazer a garota vir até aqui por mim.

– Hey Faith, eu e a Sophie vimos um filme sobre anjos agora! Você acha que eles são reais? – perguntou e não percebeu a expressão de espanto de Faith.

– Não posso afirmar nada – respondeu tensa.

– Vamos entrar um pouco, garotas? – perguntei antes que Cindy falasse mais alguma coisa.

– Eu acho que vou indo, eu preciso terminar um trabalho para amanhã! – minha melhor amiga deu de ombros – até mais!

Nos despedimos e rapidamente abri a porta para eu e Faith entrarmos.

– Escolha interessante de filme – riu-se a loirinha.

– Cindy que escolheu – suspirei – fiquei preocupada que você pudesse falar algo.

– Eu tenho contato com humanos há anos, Sophie! Eu sei o que posso e o que não posso falar – disse ofendida.

– Eu sempre esqueço desse detalhe – fui até meu quarto – mas o que você faz aqui?

Enquanto esperava a resposta da garota tirei os sapatos que estavam me incomodando e coloquei uma roupa mais confortável. Intrigada com a falta de resposta de Faith voltei para a sala, onde a garota encarava o quadro que eu pintara antes de sair.

– Você nunca pinta quadros abstratos – observou.

– Eu precisava extravasar um pouco – disse – mas você ainda não me respondeu.

– Ah sim, eu queria saber porque você tinha saído de casa quando eu lhe disse para não sair – me olhou de um jeito um pouco ameaçador.

– Eu esqueci disso – admiti – e Cindy sabe ser muito insistente quando quer.

– Você não podia ter esquecido, Ryan ficou muito preocupado ao saber que você tinha saído de casa.

Ryan preocupado? Como ele sabia que eu tinha saído de casa? Faith pareceu ler minha mente, pois no instante seguinte ela disse:

– Quando a batalha terminou ele tentou lhe localizar para ver se o feitiço estava funcionando e quando ele percebeu que você não estava em casa me pediu para ver se estava tudo bem.

– A batalha hoje foi difícil – murmurei não esperando que a loirinha ouvisse.

– Como você sabe disso? – perguntou chocada.

– Eu tive uma visão de Ryan conversando com outros anjos enquanto você os curava – não entrei em mais detalhes, esperando que ela não tenha percebido que eu ouvira tudo o que eles falaram.

– Foi difícil, mas acho que por um tempo os Caídos vão ficar afastados, nossos anjos lutaram muito bem – disse orgulhosa – falando nisso, Ryan deve voltar para cá daqui a pouco, eu fiquei esperando você voltar enquanto ele resolvia alguns assuntos.

Mal a garota terminou de falar e Ryan se materializou na sala da minha casa, me assustando.

– Sentiu minha falta, querida? – falou como se a noite anterior não tivesse acontecido.

– Na verdade, não – sorri cínica.

– Ryan, na verdade eu acho que ela sentiu sim – riu-se Faith – ela até foi ver um filme de anjos.

Ryan ficou surpreso com a notícia.

– Faith! – ralhei com a garota – Cindy que fez questão de ver o filme.

– Um filme sobre anjos, isso deve ter sido interessante – disse Ryan – E do que se tratava o filme?

– Um anjo que vem a Terra resolver alguns assuntos celestiais e se apaixona por uma mortal – disse como se fosse algo sem importância.

– Interessante – Ryan respondeu sem me olhar.

– Bom, já que terminei o que tinha que fazer por aqui eu já vou indo, tchau casal – dito isto a loirinha simplesmente desapareceu.

Ryan e eu ficamos em silêncio por alguns minutos.

– Me desculpe por ontem à noite, eu não suportei ver aquele homem se aproximando de você – o anjo disse e mexeu no cabelo, nervoso.

– Não tem problemas, afinal nós somos namorados – sorri, mesmo sem achar graça.

Para evitar que o momento se tornasse ainda mais constrangedor resolvi limpar a sujeira que havia ficado em volta da minha pintura. Peguei um pano e comecei a limpar a parede.

– Você sabe que eu posso resolver isso em um instante, não é? – perguntou divertido.

– Pode? – me virei espantada.

O moreno simplesmente sorriu e em um movimento de suas mãos toda a sujeira havia se extinguido.

– Uau! – exclamei – isso é impressionante!

– Obrigado – ele se aproximou da minha pintura – por que um quadro abstrato?

– Bem, eu... – pensei e decidi contar-lhe a verdade – eu vi o que você falou para os anjos sobre mim.

– Você viu? – perguntou curioso.

– Sim, eu não conseguiria parar de pensar no que você disse e acabei por pintar esse quadro – dei de ombros como se não fosse importante.

– Eu não entendo como o filtro dos sonhos impede que você tenha visões dos outros mas não de mim – ele falou se aproximando de mim.

Ficamos nos encarando em silêncio por um momento, até que Ryan suavemente passou a mão pelo meu rosto, me fazendo fechar os olhos. Ele continuou com a carícia por um curto tempo e de repente se afastou.

– Eu não posso fazer isso, eu não posso me aproximar de você – falou num sussurro.

Fiquei sem reação ao perceber o que tinha acontecido e decidi que o melhor era sair dali.

– Eu vou preparar alguma comida – anunciei.

Fui em direção à cozinha e preparei um sanduiche para mim, pensando no que Cindy havia me falado mais cedo. Será que ele estava mesmo apaixonado por mim?