Paranoia escrita por Yokichan


Capítulo 9
Capítulo 9




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O que Annie sonha naquela noite, ela não escreve no bloco de papel. Não há mais motivo para escrever ou para continuar ali porque agora ela entende. Annie entende o que vai acontecer se ela não acabar logo com aquilo — o sonho lhe mostrou.

Ela e Mark estão caminhando por uma estrada sem fim. Não há nada fora da estrada além de plantações douradas de trigo que se estendem até onde os olhos podem alcançar. Ele segura-lhe a mão e diz que agora falta pouco, mas Annie sabe que eles nunca chegarão . De repente, a terra debaixo de seus pés fica tão fofa e macia que começa a puxá-los para baixo, a engoli-los inteiros. Eles apenas se olham e não dizem nada, não tentam fugir. Eles estão abraçados quando são tragados pela escuridão. Annie sente o cheiro úmido da terra e sente que aquele é o fim.

Então ela desliza para fora da cama em silêncio, veste as calças e troca a camiseta de Mark que usa para dormir por outra, sua, e enfia os pés nas sandálias de salto baixo largadas perto da cômoda. Annie olha para Mark uma última vez e sente vontade de chorar porque precisa deixa-lo. Annie sabe que é a única maneira de salvá-lo, de evitar que ele afunde junto com ela. Lembra-se do dia em que eles se conheceram e de como, através de uma brecha nos livros da estante da biblioteca da faculdade, o olhar que trocaram foi misteriosamente longo. Lembra-se da primeira vez que Mark a beijou, em meio àquelas mesmas estantes — porque ambos gostavam muitos das obras de Melville. Lembra-se de quando fizeram amor no banco de trás do carro dele e dos vidros que ficaram embaciados. Lembra-se, com os olhos cheios de água, de como Mark sempre a compreendeu melhor do que ninguém e de como sempre esteve ao seu lado, segurando-a pela mão — como no sonho. Mas agora o tempo está passando e ela precisa libertá-lo daquele vínculo de dor, daquele círculo vicioso que nunca parará de girar e ficará pior dia após dia.

Annie diz a si mesma que ela consegue fazer isso.

E sentindo que algo se rasga dentro dela, Annie deixa o quarto e então o apartamento. O ar da manhã ainda está frio e faz seu corpo tremer enquanto ela caminha pela calçada para longe dali, para longe de Mark. Algumas pessoas passam por ela e percebem seu nariz vermelho e o rosto que chora, mas a maioria nem a nota. Annie sabe que agora está perdida, que a porta se fechou, e respira sua própria destruição. Ela pensa que aquilo tinha mesmo que acontecer porque ela nunca teve um lugar realmente seu, e que esse tipo de gente é como uma semente que não vinga. Pensa em Mark dormindo sozinho e sente vontade de gritar, mas consola a si mesma porque todo o seu sofrimento logo vai acabar.

Ela para na beira da calçada enquanto os carros passam e olha para o outro lado. Annie recua um passo ao ver as sombras alongadas que esperam por ela. Não sombras de pessoas, mas sombras de coisas que escaparam de seus sonhos e agora estão ali para agarrá-la e jogá-la naquele mundo outra vez. No chiado de televisão que as sombras fazem, Annie percebe que elas estão rindo. Então ela corre na direção oposta porque não quer ficar presa em um sonho ruim para sempre. Ela só olha para trás quando para, exausta, sobre a ponte que atravessa o canal de Riverport. As sombras não estão mais ali, mas Annie sabe que elas podem encontrá-la onde quer que ela esteja.

Annie tem consciência de que não há mais tempo.

Então ela atravessa a bolsa sobre o peito, sobe na mureta e pula. A água congelante e abraça e a empurra para o fundo como se Annie fosse uma pedra. A última sensação que a domina antes de tudo se apagar é a da felicidade. O sonho, finalmente, acabou.

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Alguns minutos depois, um garoto vê o corpo boiando no canal e chama a polícia. No amontoado de curiosos que se junta ao redor do cordão de isolamento para observar a retirada do corpo, uma mulher de meia idade ouve falar que era uma pessoa ainda jovem, uma garota, e balança a cabeça em comiseração enquanto tenta entender como a ordem natural das coisas pode ter se invertido dessa maneira. Dentro da bolsa encharcada e enroscada ao corpo da menina morta, a polícia encontra os documentos dela.

Mark está atravessando a praça em frente ao mercado quando o celular toca e ele recebe a notícia. E sente a vida inteira desabar sobre seus ombros.


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