Paranoia escrita por Yokichan


Capítulo 10
Epílogo




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Durante duas semanas, Mark quase não saiu do apartamento — seu chefe na empresa lhe deu uns dias de folga ao saber da morte de Annie. Passava a maior parte do tempo na cama lembrando-se dela e sentindo seu cheiro no travesseiro. Abria as portas do guarda-roupas e via as coisas de Annie, o vestido azul que ela tinha usado na noite em que ele a pediu em casamento e os casacos de frio pendurados nos cabides. Sentava-se diante da penteadeira dela e ficava ali durante quase uma hora olhando para os frascos de perfume e para a caixa de joias fechada para sempre. Na escova ainda havia fios de cabelo. Mark não sentia fome e comia apenas porque estava acostumado a comer, assim como tomava banho e vestia roupas limpas porque havia feito aquilo durante vinte e seis anos. Contudo, a vida tinha perdido a cor.

Às vezes, ele chorava como um menino até soluçar e, em outras vezes, se perguntava por que. Por que aquilo aconteceu, se eles tinham tantos planos e se davam tão bem? Por que ele não percebeu nada em todo o tempo em que moraram juntos e só viu o problema quando não havia mais o que fazer? Por que ele não ficou mais tempo com Annie, ao invés de trabalhar? Por que ela ficou doente? Por que não houve uma segunda chance? Por que Annie se atirou da ponte sobre o canal? Por que ela morreu? Mas por mais que Mark pensasse e revirasse aquilo na memória, ele não conseguia entender. O fato era que nunca mais veria Annie outra vez.

Quando conseguiu se convencer de que não adiantava ficar trancado ali porque nada era capaz de reverter a morte e começou a suportar estar no mundo lá fora outra vez, Mark contratou uma diarista para encaixotar todas as coisas de Annie e deixar o ar entrar novamente pelas janelas. Ele só não teve coragem de se desfazer da estante de livros da qual ela gostava tanto — seria como desonrar sua memória.

Enquanto a mulher fazia seu trabalho, Mark permaneceu sentado à mesa da cozinha com uma xícara de café frio nas mãos. Não queria ver uma pessoa estranha tocando nas coisas de Annie com indiferença, coisas que ainda eram sagradas para ele, mas das quais precisava se afastar — ou não conseguiria continuar. Então quando a diarista foi avisar que já tinha terminado e que em meia hora os carregadores chegariam para levar as caixas, ela deixou um envelope sobre a mesa. Era um envelope grande, desses em que se colocam documentos importantes e exames, e tinha o nome de uma clínica médica.

— Estava numa gaveta, debaixo das roupas. — disse a mulher. — Pensei que talvez fosse importante.

Depois que Mark a pagou pelo serviço e a diarista foi embora, ele abriu o envelope. Era o resultado de um exame que Annie havia feito há cerca de dois meses e que dizia que ela não podia ter filhos. “Deficiência na ovulação que impossibilita a paciente de engravidar”, estava escrito. Mark leu o diagnóstico várias vezes.

Annie queria ter um filho. Um filho seu.

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No mesmo dia, Mark recebeu um e-mail do Dr. Edgar.

Meu amigo,

sinto muito por sua perda. Anna era uma mulher jovem e, pelo pouco que pude conhecê-la, uma pessoa encantadora. Eu tinha grandes esperanças de que ela se recuperasse se aceitasse iniciar o tratamento, mas infelizmente não tivemos tempo suficiente para isso. Compreendo que você está passando por um momento difícil e muito doloroso, me perdoe por tocar na ferida novamente, mas penso que talvez minha análise do bloco de sonhos de Anna possa ajudá-lo a compreender os motivos que a levaram a pôr um fim à própria vida.

Estive estudando as anotações que Anna fazia de seus sonhos desde que você me entregou esse bloco. Não foi difícil para mim, como psiquiatra, entender que aqueles sonhos eram sinais claros e preocupantes de uma doença da mente em estado bastante avançado, e quando tive a chance de conversar pessoalmente com Anna em sua casa, tive a certeza de que ela sofria de paranoia. Por algum motivo que poderíamos ter entendido melhor se Anna tivesse permitido que nos aproximássemos mais do problema, os sonhos desencadearam um processo patológico de paranoia. Penso que ela foi deixando de distinguir sonho de realidade até imaginá-los como uma coisa só, e isso a fez perder completamente a razão. Geralmente, esses casos são acompanhados do que chamamos de “delírio à luz do dia” e o paciente passa a ter visões e a confundir-se sobre o que realmente aconteceu e o que ele pensa ter acontecido. Esse é um tormento tão terrível para quem sofre de paranoia que você mal pode imaginar. Pelo triste modo como Anna resolveu acabar com seu sofrimento, estou convencido de que ela se enquadra nessa situação de delírio.

Outra questão chamou minha atenção enquanto tentava interpretar os sonhos de Anna. Não sei se vocês tinham a intenção de ter filhos ou se ela alguma vez lhe falou sobre o desejo de ser mãe, mas o conteúdo de seus sonhos é claramente relacionado à maternidade e ao sentido de origem, de gerar uma criança. Por exemplo, no sonho em que ela vê a mãe enforcada e um cavalo que se atira pela janela, são o desejo e o medo inconscientes de Anna de ser mãe que constroem essa imagem. O cavalo, na psicanálise, representa a origem primitiva da natureza e do homem e também a parte inconsciente de nossa mente, estando, assim, próximo do sentido de mãe. Mas o cavalo é uma força selvagem e, como diz Jung*, a vida animal se destrói a si mesma. Quando esses sonhos tomaram conta de Anna, foi isso o que ela fez.

Faço esses comentários porque imagino que você deva estar confuso com o rumo que as coisas levaram e espero poder aliviar sua carga. Os paranoicos dificilmente falam sobre o que lhes acontece e é difícil perceber a doença até que ela se manifeste no corpo físico, então não se culpe, Mark. Você não tinha como evitar. Sei que demorará até que você queira e consiga falar sobre isso, mas quando precisar conversar, não hesite em me procurar. Além de médico, sou amigo de sua família há anos e, portanto, seu amigo também. Espero sinceramente que você fique bem e que retome sua vida, e isso não quer dizer que precise apagar Anna da memória.

Abraços.

Edgar.

Mark ainda ficou durante um tempo diante da tela do notebook olhando para o e-mail aberto sem realmente vê-lo. Pensou nas coisas que Annie fazia e dizia, pensou no olhar perturbado que ela às vezes tinha, pensou em como a amava — mesmo que ela fosse paranoica. Pensou que daria tudo para que ela ainda estivesse ali. Mas então aquele aperto no peito se fez sentir outra vez e ele foi procurar uma garrafa de vinho para abrir. Mark se perguntou se um dia aquela dor morreria com Annie.


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Notas finais do capítulo

* Carl Gustav Jung (1875 – 1961): psiquiatra e psicoterapeuta suíço que inventou a psicologia analítica.
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E esse foi o último capítulo.
Espero que tenham gostado. Se sim, comentem, deixem sua opinião.
Obrigada a quem acompanhou a história até aqui.



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