Paranoia escrita por Yokichan
Ao abrir os olhos na manhã seguinte, Annie se sente estranha. Preguiçosamente, estica o corpo num gemido sonolento e rola para o lado. Mark ainda está dormindo, metade do rosto afundado no travesseiro. Ela observa o silêncio do quarto e — como não acontece já há algum tempo — percebe que não é um silêncio hostil, mas inocente. Um silêncio que lhe dá vontade de fechar os olhos outra vez e continuar dormindo. Só então Annie descobre o que parece estar fora de lugar ali: ela não sonhou durante a noite.
Não sonhou nada.
Aquilo a faz abrir um sorriso.
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Mark está de folga do trabalho hoje. Deitado no tapete da sala ao lado de Annie enquanto passa Donnie Darko* na TV, ele não presta atenção no filme, mas apenas nela. A claridade que passa através das cortinas dá a impressão de que os olhos castanhos de Annie estão molhados. Ela sorri ao perceber que ele a admira, um sorriso que convida. Mark quer beijá-la inteira, e o faz. Os pés, os joelhos, as pernas brancas e esguias. O contato de sua boca com a pele quente de Annie faz os pelos de seus braços ficarem de pé e ele abre os botões da camisa — sua camisa — que ela veste. Mark beija-lhe o umbigo e o espaço entre os seios. A respiração de Annie treme quando ela sente os lábios dele, úmidos, sobre os bicos de seus seios, um de cada vez.
Por sobre um ombro de Mark, ela vê o rosto horrível do coelho na tela da TV e fecha os olhos. E sente o corpo formigar de prazer. Sente as mãos de Mark deslizando por suas pernas enquanto ele desce-lhe a calcinha e a sensação de ser preenchida por ele. Sente o vazio desaparecer. Sente que há verdade no suor brotando do corpo.
Mark sente apenas que a ama.
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Annie está fritando bacon para comerem com as panquecas enquanto Mark, sentado à mesa, fala ao celular com o irmão. Ela espia os arranhões vermelhos nas costas dele — Mark veste apenas calças de moletom — e morde um lábio ao pensar que precisa parar com aquilo. Vira uma última vez as tiras de bacon na frigideira e as coloca num prato, que leva para a mesa.
Mark despede-se do irmão com uma risada.
— Estão querendo saber quando vai ser o casamento. — ele diz.
— O que você acha?
— O que você acha?
— Por mim, podia ser agora mesmo.
Ela despeja o molho sobre as panquecas no prato de Mark.
— Sua mãe nunca te perdoaria. — ele nega com a cabeça.
— Nem toda a sua família.
Mark a envolve pela cintura com um braço e a puxa para seu colo. Com uma colher suja de molho ainda na mão, ela ri e coloca-lhe um naco de bacon na boca.
— Que tal novembro?
— Eu acho que novembro está ótimo. — ela concorda.
Sim, novembro. Annie pensa que até lá há tempo suficiente para enviar todos os convites, escolher a decoração da festa, os noivos em miniatura que ficarão sobre o bolo de quatro camadas, as flores do buquê e, é claro, o vestido. Ela já tem o modelo desenhado com todos os detalhes na imaginação. Então ela passará a ser Anna Hawkins Campbell e aquilo a enche de uma felicidade quase infantil.
Uma felicidade que desmorona como um castelo de areia arrasado pela onda quando ela abre a porta da geladeira para pegar o suco. A maçã estragada não está mais lá — Annie a jogou fora —, mas sua ausência traz de volta a memória. E a dúvida. Na mente de Annie, agora tudo faz sentido: ela não teve sonhos na noite passada porque não acordou. Annie ainda está sonhando. Tudo aquilo — o bacon, as panquecas, a maçã e Mark — faz parte daquele mundo que só existe dentro de sua cabeça, e a ideia a deixa aterrorizada.
Annie sente que sua vida não existe.
Então ela se deixa cair de joelhos diante da geladeira, o ar frio a envolvendo e Mark perguntando coisas que ela não sabe responder, e chora.
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* Donnie Darko: filme lançado em 2001 pelo diretor americano Richard Kelly.