Paranoia escrita por Yokichan


Capítulo 6
Capítulo 6




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É a oitava vez que Annie relê o sonho daquela noite. Ela está sentada no chão entre o sofá e a parede com o bloco de papel na mão. São quase onze da manhã, e desde que acordou e saiu da cama, ela ainda não penteou o cabelo ou comeu qualquer coisa. Annie só consegue pensar naquele sonho.

E o relê pela nona vez.

~

Ela está escalando a mesma montanha e o mesmo vazio sem fim a puxa para baixo. Seus dedos machucados pela rocha sangram e doem, mas ela já não sente medo. Desta vez, Annie não cai. Ela encontra um caminho — um caminho que antes não percebeu porque quase não existe — e continua subindo, mesmo quando alcança o topo da montanha e não há mais pedra em que se agarrar. Annie sobe pelo ar como numa escada invisível e desaparece lá em cima.

~

Ela olha para os dedos dos pés e pensa que não quer ficar sozinha. Ela não quer se perder como no sonho. Mark jamais a encontraria se ela subisse tão alto, e sabe-se lá que tipo de coisas ruins ela poderia encontrar naquele lugar. Annie sente uma angústia tão profunda como nunca antes.

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Vendo-se refletida no espelho do banheiro, ela se lembra de um dia há muito distante. Aquilo foi quando ela ainda estava no primário e usava meias brancas até acima do tornozelo. Naquele tempo, Annie não conhecia essa angústia que agora a toma como um câncer, ela era só uma garotinha como todas as outras. Annie se lembra de ser boa em matemática e do caderno carimbado com estrelas amarelas pela professora — estrelas de bom desempenho. E se lembra também das garotas que eram suas amigas e que faziam o lanche com ela durante o intervalo da tarde, amigas que com o tempo foram ficando para trás.

Annie se lembra do garoto que estendeu o pé para que ela caísse e do chute que ela lhe acertou na canela quando conseguiu se levantar. Todas as outras crianças estavam rindo. O rosto do garoto ficou vermelho de raiva e ele ergueu a mão para agarrá-la pelo cabelo, mas nesse ponto Annie fica confusa. Ela não consegue decidir o que realmente aconteceu naquele dia, pois tanto a memória do garoto puxando-a pela franja quanto a da professora chegando e acabando com a briga se misturam dentro de si. Annie sente que tudo se tornou líquido e escorregadio e se pergunta qual das lembranças é a verdadeira.

Ela se olha através do espelho e não reconhece em si aquela garotinha do passado. Elas agora são duas pessoas diferentes separadas pelo tempo. Annie toca seu reflexo na altura da testa para ter certeza de que aquela no espelho ainda a acompanha.

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Por um momento, Annie não sabe o que fazer quando o porteiro do prédio avisa pelo interfone que um entregador da clínica Woman Care está subindo. Então quando ele começa a chama-la num tom impaciente porque ela já está em silêncio com o fone na mão há tempo demais, Annie diz que está tudo bem e agradece. Em seguida, a campainha toca. Ela espia o garoto de jaqueta preta e cara de sono pelo olho mágico da porta antes de abri-la.

O entregador recua um passo ao perceber a figura nervosa de Annie.

—Srta. Hawkins?

— Sim.

— Entrega de exame. — ele lhe estende uma folha. — Assine aqui, por favor.

Annie olha primeiro para a folha de papel e depois para o garoto. Ela se pergunta se ele não é como eles, como aqueles que são seus inimigos e que querem fazer-lhe mal. Se concentra no rosto dele, pronta para ouvir o chiado e os sussurros, a mão apertando com força a maçaneta da porta. Mas não ouve nada. O garoto continua ali esperando que ela assine o recibo de entrega, imaginando o que aquela mulher está tentando fazer, e Annie decide que ele não é uma ameaça. Coloca seu nome no papel e recebe o envelope, batendo a porta atrás de si.

Então ela se dá conta de que não quer abri-lo. Annie tem medo do resultado do exame, medo de descobrir que há alguma coisa errada com seu corpo e que não pode ter filhos. Mas sim, ela pode. Nesse exato momento, Annie sabe que está grávida. O exame não importa, foi feito há um mês e nesse tempo as coisas mudaram. Ela pensa que agora é diferente e que o médico está errado — embora não tenha aberto o envelope. Annie decide que não precisa de nenhum exame e o esconde numa das gavetas da cômoda do quarto, debaixo das blusas de verão.

E ri de si mesma por ter sido tão tola. Aquilo quase estraga a surpresa que ela quer fazer para Mark.

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Mas Mark liga e avisa que vai chegar mais tarde porque tem um trabalho importante pra terminar na empresa. Annie não reclama, mas sente-se desmoronar. Ela não gosta de ficar sozinha à noite. A noite é quando os sonhos vêm, quando as coisas ruins acontecem, quando ela se sente mais fraca. Mark quase sempre está ali para impedir que ela afunde, mas essa noite ela precisa se virar sozinha.

Annie mantém todas as luzes do apartamento acesas — como se isso pudesse livrá-la do escuro. Come torradas com ketchup. A televisão do quarto está ligada e passa o noticiário local enquanto ela toma banho. A água morna parece desgrudar de sua pele aquela sensação pegajosa de solidão, mas quando ela deita na cama com o cabelo ainda molhado o sentimento retorna e a abraça. Ela não quer dormir, apesar da hora avançada. Quer esperar por Mark, quer ouvir sua voz cansada e poder olhar para ele. Ela quer senti-lo por perto quando adormecer. No entanto, o banho amoleceu a tensão do corpo e Annie não pode evitar pegar no sono.

Ela escorrega sozinha para aquele mundo que a assusta.

~

Então Annie está nua dentro de uma bolha de água. Ela força as mãos contra a membrana gelatinosa que a envolve, tenta rasga-la com os dedos, mas não consegue. Ela prende a respiração até não suportar mais a pressão e deixar a água entrar pela boca e nariz. Enquanto se afoga, Annie sente que o desespero é uma dor profunda que se espalha por todo o seu corpo. Ela está morrendo dentro daquela bolha de água idiota e não há nada que possa tirá-la dali.

~

Quando acorda num susto, Annie só não grita porque parece não haver ar suficiente nos pulmões. O peito dói e os olhos estão molhados porque ela chorou enquanto dormia. Mas nada disso importa mais porque agora Mark está ali. Mark a abraça com força e a acalenta como se faz com uma criança.

Mark diz que agora está tudo bem.


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