Justiceira escrita por Clarisse Arantes


Capítulo 10
Parte nove




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            Por incrível que pareça, eu acordei muito cedo. Muito cedo mesmo. Tão cedo que ainda era considerada “Madrugada”. Eu havia voltado para casa uma hora da madrugada, me deitado na cama às uma e meia. E eram quatro da madrugada quando meu organismo quis acordar-me.

            Revirei-me centenas de vezes na cama, o que fez o lençol desprender-se, meu cobertor cair no chão e milhares de outros acontecimentos que me fizeram ter somente uma certeza: eu não conseguia dormir.

            Talvez meu arquiinimigo tivesse jogado uma macumba sobre mim, para que não pudesse mais dormir. Seria bem cruel.

            Depois de rolar mais uma dezenas de vezes, decidi que não tinha jeito. Levantei-me e liguei o computador. Logo o som do gabinete trabalhando deixou-me mais confortável. A luz do monitor fez doer minha vista. Aproveitei para terminar o meu texto sobre o evento, revisar algo aqui e acolá. Adicionei também a “queda de energia” que houve.

            Ninguém havia descoberto que fora eu quem desligara a energia. Isso me fazia rir, internamente. Mas, ao lembrar-me do estresse que passei, minha raiva somente aumentava.

            Depois de um tempo, resolvi dar um pause e desliguei o computador. Não antes de enviar-me os arquivos. Passei na cozinha e comi uma coisa básica, para refogar o estômago. Tirei o pijama e coloquei minha calça jeans, uma blusa de seda e um sobretudo preto. Então deixei meu apartamento. Dessa vez, lembrei-me de fechar a janela.

            Ao passar pela portaria, dei graças a Deus, por ele ainda não ter chegado. A última vez que vira algo sobrenatural por ali, ficara com a ideia por diversas semanas.

            Passei a caminhar lentamente para a direção de um local tão bem conhecido. Era um boteco não muito longe. Eu gostava de frequentar, e às vezes, quando precisava de dinheiro, apostava no pôquer. Eu conseguia ser melhor que dez caras numa mesma mesa. E nem precisava de meus superpoderes.

            Ao chegar ao local, como esperado, eles tinham acabado de abrir. Eram cinco horas da manhã. O ambiente possuía um ar bem século XIX, entretanto, os cardápios eram atualizados. Escolhi uma banqueta para sentar-me entre tantas vazias. O lugar chegava a ferver de pessoas em dias comemorativos.

            A atendente, Sra. Garcia, que tanto me conhecia bem, sorriu, ao ver-me ali. Já com as vestes usuais do trabalho, e seu avental, ela aproximou-se.

            — Fico feliz em vê-la por aqui — disse-me. — Faz tempo que não vem. — Fez cara triste e eu ri.

            — Não andei freqüentando outra franquia se é o que quer saber.

            Foi sua vez de rir.

            — O que vai querer para hoje?

            Sorri, ela já sabia.

            Apesar de ser um boteco, era o meu preferido porque se assemelhava a uma lanchonete. Eles possuíam desde café quente a um uísque bem gelado. Desde um pão francês fresco a uma porção de batatas fritas. Diversidade.

            — Hoje vou ficar com o pão de queijo mesmo — ela assentiu e esperou. — E um café bem quente.

            — Anotado. Na mente — riu.

            Enquanto Sra. Garcia pegava o meu pedido, fiquei a batucar minhas unhas no balcão freneticamente. Meus pés também não paravam quietos. Eu sentia meu nervosismo. E não sabia o porquê.

            Depois de um tempo aguardando, Sra. Garcia trouxe-me meu pedido. O café estava realmente pelando e o pão de queijo reaquecido. Sorri para ela, que me deixou sozinha, indo cuidar da cozinha.

            Foi questão da Sra. Garcia virar-se para que o meu celular começasse a tocar. Olhei para a tela, o número era desconhecido, mas eu já havia decorado todos os dígitos de meu arquiinimigo.

            Silenciei o celular e dei uma mordida em meu pão de queijo. Minha hora de comer, minha hora sagrada, ninguém iria atrapalhar. Sequer mesmo, meu arquiinimigo. Garoto Solitário.

            Depois de saborear um pedaço do céu, paguei a Sra. Garcia e deixe o estabelecimento. Peguei o celular, que até então não tinha recebido outra ligação e retornei meu arquiinimigo. Um toque foi o preciso para que começasse a ouvir sua respiração entre cortada sobre o celular.

            — Diga-me o que quer — bufei após dizer. — Aonde devo te encontrar. Aonde?

            Ele riu.

            — Quero outro jogo, minha querida.

            Eu começava a ficar nervosa novamente.

            — Outro jogo? Devo repetir uma bela frase: quem ensina, não sabe fazer. Ensine-me o novo jogo, mas entre nele também, para que eu possa te derrotar em tudo que faz na vida. Se você quer jogar, digo-te, eu também quero e pior, eu sei. Um bom jogo é um jogo que se joga a dois.

            Não tenho tempo para raciocinar muito bem o que ele diz:

            — Não se esqueça que fui eu quem te ensinou a jogar bem, minha querida.

            Uma mulher estava atravessando a rua, normalmente e calma, porém eu sabia que estava sendo observada pelo Garoto Solitário. Sabia disso, porque, no instante seguinte, um carro estava vindo em toda velocidade. A mulher tinha fones de ouvido nas orelhas e o barulho alto sequer chamou sua atenção.

            Tenho que correr rápido o bastante e impedir que ela seja atingida. E assim que alcançamos a calçada ela está mais assustada do que nunca. Consigo ouvir seu coração acelerado e descoordenado.

            — Obrigada — disse ela, ainda muito assustada para assimilar qualquer coisa. Depois que perceberia que o que aconteceu foi algo perto do impossível. Eu não sou rápida, porém, orgulhava-me nas aulas de Educação Física, entretanto, eu havia voado com ela. E quando percebesse isso, ela saberia os traços de meu rosto.

            [...]

            Depois de uma luta interna, finalmente compreendi que, talvez, ela nem tivesse percebido, e se tivesse, saberia que era algo impossível. Nem todos ainda inferiam que havia super-heróis na grande cidade de São Paulo.

            Caminhei de volta para casa, mais relaxada e aliviada. Separei o uniforme da empresa e troquei-me. Coloquei o uniforme de heroína dentro da bolsa. Estava quase no horário de ir trabalhar. Parei no banheiro e passei uma maquiagem leve para tirar minhas olheiras e meu rosto inchado.

            Juntei a bolsa no ombro e sai de casa. As janelas estavam devidamente trancadas, assim, meu arquiinimigo não poderia entrar e qualquer outro ser voante.

            Com cinco minutos de antecedência, achei que seria uma das vezes que chegaria à empresa sem estar atrasada. Então percebi que estava sem o meu crachá. Tive que voltar para casa, rapidamente, pegar o crachá e voltar para empresa. Chegando atrasada. O que posso fazer?

            Está no sangue. Corre em minhas veias.


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