Elandrik escrita por NM


Capítulo 2
Ressaca


Notas iniciais do capítulo

Bom, peço desculpas se achar esse capítulo um pouco parado, porém eu preciso apresentar o mundo e deixar clara a personalidade da personagem principal, sem contar a apresentação do cotidiano do povo dos subúrbios e a ambientação da cidade.



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09.09.2099 10h30min –- Alguns meses antes...

Abrindo minimamente os olhos, sentiu a luz ofuscando-os, como se o sol a invadisse de forma luminosa. A realidade bateu fortemente às portas de sua consciência. Levantando-se com cuidado, sentou-se na lateral da cama e, após uma longa espreguiçada, pôs as mãos por sobre a cabeça como se essa fosse sair pulando.

Quase em posição fetal prometia não passar dos limites na próxima vez – em vão.

Sua cabeça latejava. Latejava tanto que mais parecia que seu cérebro comemorava agora a festança da noite anterior e, para piorar, não a convidara.

Movendo-se lentamente foi em busca de uma aspirina, encontrando um armário vazio. Na porta, uma folha de papel: uma lista de contas a pagar, presa por um prego. A bendita lista era até que extensa.

“Maldita!” pensou.

Aquilo só podia ser obra da Dona Dionorr, a proprietária do local. Uma velha gorda e rabugenta que só ela. Havia chegada tão chapada em casa que nem percebera que a mulher usara uma chave reserva, cujo a existência era desconhecida, invadindo seu conforto.

–- Estragou meu armário novo!! –- exclamou de forma enrolada, arrancando a folha de uma só vez.

Observando os restos do papel ao redor do prego, lamentou em um suspiro.

***

Fazia mais de trinta graus. Naquele dia, as pessoas se vestiam com seus trapos sem se importar com os buracos e rasgos causados pelo tempo de uso. De frente para o prédio um grupo de crianças vestidas em sacos se resfolegava -- corriam de um pobre vendedor “Me devolvam, seus trombadinhas!” dizia ele.

Elene se viu atingida por um ar nostálgico.

Olhando para o céu, viu a falta de nuvens em um cinza-celeste sem fundo, fios elétricos pendurados entre as casas e postes de energia cortavam a visão com linhas finas; pipas e tênis velhos pendurados na fiação decoravam o alto das favelas.

Após uma longa tragada a fumaça formou uma nuvem branca, que logo se esvaiu pelo ar.

As ruas estreitas estavam movimentadas. De ambos os lados feirantes ofereciam sua mercadoria, contrabandeada ou não, gritavam e chamavam atenção dos transeuntes, que paravam e observavam o vendedor fazer graça.

“Ultrabook!! Projetor de hologramas!!”

“Holofones na promoção!! Hey, moça!! Na promoção, hein!!”

O ar cheirava a fritura e vegetais em decomposição, as moscas passeavam de um lado a outro e pousavam nas frutas e verduras de péssima aparência. Quando a feira acabou o movimento nas ruas cessara, trazendo novamente o ar de solidão no espaços entre aquelas paredes brancas e sujas, entre aqueles prédios de dezoito andares ou mais. Vira-latas latiam e tombavam as latas de lixo, para assim, conseguir algum alimento.

Ao esvair de mais uma nuvem, a farmácia surgiu logo atrás. Alocada em uma esquina, as paredes brancas compactuavam para a vista sem cor dos subúrbios, o movimento lá dentro era fraco e, do lado de fora, via-se apenas um velho entediado.

–- Eaí, Seu Thomas!

–- Elene, Como vai?

–- Bem... – o cigarro na boca.

–- Eu já te falei, moça... Isso faz mal – disse, sem perder a gentileza

Dando um breve riso, caminhou pelo lugar.

–- Procurando algo?

–- Hm... Alguma coisa pra dor de cabeça...

O velho riu – Bebendo de novo, hein.

–- Aqui... -- Pegando algumas caixas, jogou umas notas no balcão.

–- Err...

–- Eu quero mais daqueles também.

O homem ficou sério. Pegando algumas caixas de trás do balcão disse – Melhor se cuidar mesmo, criança...

–- Falou, velho!!! – exclamou já do lado de fora.

“Criança...” Elene riu diante da frase.

A muito não era mais criança, mas não sabia se aquilo era bom ou ruim...



12h00min

–- Brigada – agradeceu.

Ao dar uma abocanhada, sentiu o sabor da massa, a oleosidade contida naquela fritura e o gosto do frango desfiado, junto a temperos e outras especiarias. Seus dedos todos engordurados deslizaram pelo papel quentinho, que servia de embrulho para o pastel – Uma delícia, como sempre!

–- Só você pra falar umas coisa dessa, Elene! – o vendedor riu – Esse aí é por conta do barraco.

Dando um sorriso travesso, Elene recuou um passo.

–- Espera – disse o feirante – Vai fazer o que hoje de noite? – perguntou passando a mão no topete liso, o excesso de gel assumia pontos brancos em meio ao cabelo negro.

–- Junior... Se acha que passando a mão cheia de gordura no cabelo vai seduzir alguma mulher, Desista – ironizou – Aliás, não tinha arranjado uma mulata?

–- Ahh!! Que mulata o que!? Elas não querem mais um mano das quebrada como eu...

Revirou os olhos e, dando meia volta, tornou a caminhar.

–- Não, espera!! – exclamou deixando a barraca – É sério, gata!! A gente se conhece desde que procurava comida no lixão, qual foi!?

–- Ai Ai! – suspirou

Junior insistia em trazer à tona a origem dos dois. Eram tempos difíceis para todos e, sem exceção, todos arranjavam seu próprio jeito de conseguir alimento: os métodos iam desde roubar, até vagar pela cidade e comer as sobras de bares e lanchonetes.

Ambos cresceram e estiveram juntos em muitos dos altos e baixos da vida, muita coisa pela qual criança alguma deveria ter passado. Forçados a aguentar o pecado do mundo, foram obrigados a crescer antes do tempo. Após muita luta, o rapaz conseguira um emprego e agora era empreendedor de sua própria barraca de pastéis. Ele era como poucos. Ela como a maioria, que não conquista nada na vida.

–- Cara, fala sério...

Alargando o passo, Junior foi deixado para atrás.

–- Já sei – apontou para si mesmo -- é porque eu sou negro!!!

–- Aff...

Houve uma troca de sorrisos.

–- A gente se vê qualquer dia – e voltou a barraca de bom humor.

O sorriso da mulher, no entanto, foi substituído pelo desdém. Sua mente foi preenchida com um só pensamento.

“Isso é pra quem já tá com a vida ganha”

***

09.09.2099 18h23min

Dentro das casas, as pessoas ligavam seus ventiladores e ar-condicionados, abanavam-se com camisetas e leques baratos, enquanto crianças corriam e suavam nas ruas.

Olhando a vida pela janela a mulher deu mais uma tragada. Observava as pessoas passarem, entrarem e saírem a dez andares abaixo; ao horizonte torres curvilíneas e com as mais diferentes arquiteturas marcavam sua silhueta diante um sol vermelho.

Ali estava a cidade.

O lar dos ricos, da correria, do estresse e do cansaço.

O lar das luzes. Do neon...

Mesmo de longe, ao entardecer o centro pulsava vida em contraste com a pobreza, o lar de escórias. Se de dia pessoas engravatadas dominavam o território, a noite os despreocupados alimentavam as festas e shows, onde a putaria rolava solta e as drogas de todos os tipos tomavam conta.

Mais uma onda nostálgica assumia um tsunami no seu cérebro.

Atrás de risos e bebidas, na sombra da alegria e loucura estavam as vítimas de uma sociedade desigual, seres que caíram no mundo no intuito de sobreviver sozinhos.

Crianças...

Enquanto o sol se punha: o roxo, o azul, o amarelo do neon transformavam o fim de tarde.

Cerrou os punhos. E o maço de cigarros entre seus dedos resistiu o quanto pôde.

Revolta. Indignação. Sentimentos fervilhavam, como se o vapor subisse até suas órbitas e descondensassem de vez, formando as lágrimas de uma nuvem qualquer.

Virando-se de vez enfrentou o que sentia com uma frieza absoluta.

Não queria sentir.


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Notas finais do capítulo

Não pretendo demorar muito em postar o próximo capítulo.
Coisas estranhas estão para acontecer.



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