Pelos Olhos da Loucura escrita por Scout caramel


Capítulo 4
A Ponta Perdida


Notas iniciais do capítulo

Queria mandar um obrigada a Lady Murasaki e ao Red Kun, por seus comentários e apoio! Valeu! Agora, fiquem com mais um capítulo dessa bodega! X3



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"O mundo está cheio de coisas óbvias as quais ninguém, por acaso, nunca observa."
Sherlock Holmes – O cão dos Baskervilles

Após aquele momento de surpresa inebriante, apanhei o celular. Era meu parceiro. Com mais aquela ligação com certeza devia ter estourado a conta daquele mês, mas eu não estava nem aí pra isso. Ouvi o eco da minha voz pelo aparelho quando gritei: —Edgar, você não vai acreditar no que acabou de acontecer… — Ia falar quando ele me interrompeu.
—É, incrível não? Daqui da janela do meu prédio dá pra ver, mas só com binóculos!
—Hã, o quê? Como assim? — Franzi as sobrancelhas, confusa. Meu parceiro continuou a falar, animado:
—Os binóculos? Peguei do meu irmãozinho Tiago, quando ele voltava da escola.
—Não, não é isso, Edgar. O que é isso que você tá vendo daí?

Ele parou, entendendo:
—Hum? Ah é, seu prédio é bem mais longe da praia, mas acho que dá pra ver da janela do banheiro…— Fui andando, celular colado na orelha, até o banheiro. Me esgueirei abrindo a janela basculante. Qual não foi a minha surpresa ao ver, bem ao longe, um estranho brilho esverdeado, refletido exatamente no ponto em que o navio havia estado.

Tremi, sentindo um arrepio percorrer minha espinha enquanto falava:
—Sério, Eddie, como eu pude me esquecer disso! A radiação é fluorescente! Dá pra ver todo o rastro que o navio deixou quando foi rebocado, e isso é um péssimo sinal.

—Péssimo? Por quê?— Me lembrei do quanto Edgar faltava aulas de física e química e entendi o porquê dele ainda não ter entendido o perigo. Inspirei fundo, explicando:

—Porque quanto mais radioativo um elemento é, mais brilho ele emite! Esse brilho esverdeado pode ser sinal de uma exposição a urânio, e das bem fortes...

Ele soltou uma exclamação, assustado:

—Hum, isso é bem ruim, mas por outro quero ver o governador tentar esconder essa evidência! Já até tirei as fotos!
Sorri, imaginando o rosto dele enquanto ele me falava aquilo rindo, tão diferente de antes. Então atinei para o fato de as coisas não serem tão simples quanto o nosso entusiasmo sugeriria, principalmente se tratando do envolvimento das autoridades:

—É, mas tem um problema: Se eles sumirem com as peças do navio, não vai ser possível provar a relação entre os dois. Além do mais, eles podem tentar atribuir isso a uma bioluminescência natural pela quantidade de poluição e microorganismos presentes na água!— Falei, imaginando que seria bem possível da parte deles tentarem sustentar a ignorância do povo apesar de tudo, quando Edgar interrompeu meus pensamentos:
—Isso seria péssimo... Mas vem cá, se não era disso que você estava falando, do que é que você ia falar mesmo?— Ergui as sobrancelhas, me lembrando do frasquinho que ainda segurava numa das mãos:

—Sabe aquela amostra de tecido de um dos cadáveres que eu coletei no navio? Eu ainda estava com ela na jaqueta. Com a nossa discussão e a aquela conversa terrível com o Noronha eu me esqueci completamente do procedimento normal, que seria enviar para a análise de um dos laboratórios que trabalham com a gente. Tá entendendo, Edgar?
Ele ficou por alguns instantes em silêncio, até que ouvi sua voz novamente, falando em pausas:


—Não fode, Jô... Tá falando sério? Você não tá pensando em... Você vai...—Nós vamos sim, Edgar! Eu não vou me acovardar diante dessa sujeira toda debaixo do tapete! Algo me diz que tem alguma coisa muito estranha acontecendo e gente muito poderosa envolvida nisso. Eles só não contavam com a gente... —Falava sentindo a adrenalina percorrendo o meu corpo. Porém eu ainda ouvia a hesitação na voz do meu parceiro:

—Ai, sei não, Joana... Isso tudo aí tá me lembrando aquelas coisa de Máscaras de Chumbo... Sabe aquele caso dos caras que morreram no alto dum morro, hum? Os detetives nunca conseguiram descobrir o que aconteceu e pior, foram sendo eliminados durante as investigações... Me dá até arrepio...
Edgar sabia ser corajoso conforme a necessidade se apresentava, mas antes disso era necessário quase lhe dar um puxão de orelha por sua credulidade, principalmente se tratando de tais “casos insolúveis”, por isso estourei com ele:

—Para de ser frouxo, Edgar! Se você se informou direito sobre esse assunto sabe que pelas pistas, provavelmente foi só mais um caso de assassinato premeditado com motivo de roubo, nada mais que isso. Mas o caso do Morella é diferente: Os marinheiros parecem ter sido atacados por algum outro navio, ou aeronave. Nada tem a ver com envenenamento.
Houve uma pausa, então ele perguntou por fim, ligeiramente agoniado:

—E o que você quer fazer com isso agora?
Suspirei, numerando o passos do que poderíamos fazer naquele momento:

— Certo, primeiro, precisamos confirmar a nossa suspeita inicial sobre a radiação; Depois vamos atrás das outras pontas.
Meu parceiro resmungou um hum-hum, seu tom de voz parecendo um pouco mais receptivo, e falou:

—Olha, Joana eu não tenho um contador Geiger, se é o que você tá pensando... Espera, já, sei minha prima Antônia é professora de Física na faculdade, acho que se eu pedir com jeitinho ela pode malocar um desses pra gente.

—Faça isso, Eddie! E tem que ser logo, a radiação não é uma coisa infinita, aos poucos ela vai desaparecendo com o tempo, e eu quero ter a medida mais próxima da carga que os marinheiros podem ter sido expostos. — Respirei um pouco, me acalmando e lembrando-lhe: — E agora que sabemos da provável verdade, não podemos mais ser descuidados, se entende o que eu quero dizer.

—Ah, sim: Nada de praia, lavar bastante as roupas que usamos quando fomos ao local ou isolar elas, e tomar banho com sabão de coco. Mais alguma coisa?

—Sim: A radiação atravessa a maioria dos materiais, com exceção do chumbo. Sei que posso estar expondo os moradores daqui a radiação da amostra, mas acho que ela é pequena em comparação a que está no mar. Precisamos avisar a todo mundo que a gente conhece pra evitar ir à praia. — E relembrando o brilho esverdeado na água, com certeza era uma boa ideia.

Ele riu um pouco, falando:

—E você vai dormir com esse frasquinho na cabeceira da cama? Cuidado pra não acordar com um pé extra...

— Claro que não, Edgar! Vou procurar um lugar seguro pra ele... Vê se faz o que eu disse. Até amanhã.

Ele se despediu também. Desliguei o celular sentando na cadeira da cozinha, pensando no que faria a seguir. Olhei para o relógio: Já era quase meia-noite e eu precisava dormir tranquila depois de toda essa sequência de acontecimentos. Levei um susto quando meu gato pulou em cima da mesa, fitando fixamente o frasquinho na minha mão, balançando a ponta da cauda para ambos os lados com interesse.


—Sai, Bobby!— Me levantei da cadeira, e ele me seguiu pela mesa, miando alto. E mais alto, enquanto eu olhava por todos os cantos me perguntando onde o frasco estaria seguro e como nós ficaríamos seguros dele. Escondi o frasco atrás das costas, mas os miados continuavam insistentes:
—Shhh! Quer que nos despejem?— Já era muita sorte ter encontrado um prédio que permitia animais. Amava meu gato, mas começava a ficar furiosa com ele.

A segurança de Bobby era primordial, não poderia nem sonhar em deixar aquilo ao alcance dele. Me lembrei então de um cartucho calibre 12 que eu tinha na gaveta, lembrança dos dias em que eu treinava tiro com meu pai. Seria bom pra conter a radiação e bom pra disfarçar o conteúdo. Fui correndo até o quarto. Abri a gaveta e lá estava ela: A maior parte do chumbo havia se perdido no disparo, mas ainda restava uma camada, e eu vi contente que o frasquinho cabia na câmara do cartucho. Depois, tranquei a amostra na gaveta. Já podia respirar aliviada quanto àquilo.

Fui pra cama, finalmente, sentindo os ossos da coluna estalando com a tensão resultante daquele dia. Fechei os olhos e o sono não demorou a vir.
Acordei com Bobby se espreguiçando nas minhas costas, cravando as garrinhas e tudo. Enxotei-o com o lençol, apenas pra que parasse com aquilo; Ele me encarou profundamente ofendido.

—Me desculpe, majestade. Vou servir seu desjejum real. — Falei, sem disfarçar o sarcasmo no tom de voz. O bichano miou, levantando a cauda e me seguindo até a cozinha.

Nosso café da manhã foi rápido e silencioso. Ao longo dos dois dias seguintes, voltei na D.P. pedindo minha transferência. Fiquei grata por nossa conversa não ter durado mais que dez minutos; Noronha foi reticente comigo e prometeu rapidez nisso.

Voltei pra casa determinada a descobrir mais alguma pista e fiquei estudando os mapas topográficos da região próxima à Baía, além de todas as empresas envolvidas com o uso de radiação. Descobri pouco além do que eu já sabia.

A grande mídia também pouco pareceu se importar com a luminosidade estranha da Baía de Guanabara, que rapidamente coloriu os jornais mais fuleiros com uma manchete sobre os atletas da natação criando anticorpos para enfrentar o trajeto nas Olimpíadas. Nenhuma surpresa nisso, afinal, políticos são os donos da maioria das emissoras do país e jornais, apesar disso ser proibido em algum lugar perdido e negligenciado da legislação brasileira.

Nesse meio tempo, Edgar conseguira contatar a tal prima dele e agora eu esperava os dois com café pronto e algumas bolachinhas de maisena com manteiga na mesinha de centro da sala. A cápsula da bala com o frasquinho da amostra repousava sobre o aparador, bem à minha frente.

Sentada no sofá, mordiscava uma bolacha relendo um dos meus livros preferidos, um livro de contos do Edgar Alan Poe, o xará de origem americana do meu parceiro. Fazia tempo que já não o lia, talvez desde a adolescência.

Meus olhos deslizavam sobre os títulos com nostalgia, quando foram aprisionados ao passar pelas páginas seguintes pelo seguinte título: Morella.

Quase caí pra trás do sofá; Não podia ser... Li de novo. Era isso mesmo, Morella. Li as primeiras linhas do texto:
“Com um sentimento de intensa afeição, de um tipo muito singular, eu olhava para minha amiga Morella. Fui introduzido por acidente em seu meio muitos anos atrás, e minha alma, desde que nos vimos pela primeira vez, ardeu num fogo que eu não conhecia; mas não era o fogo de Eros, e a convicção gradual de que eu não podia de maneira nenhuma definir que fogo incomum era esse, ou regular sua intensidade oscilante, era um tormento amargo para meu espírito.” Meu coração deu salto ao ouvir a campainha tocando.

Fechei o livro com resignação e fui até a porta. Era Edgar acompanhado de Antônia, uma mulher negra muito linda, com cabelo Black Power ligeiramente preso por uma faixa rosa choque. Edgar me contara mais cedo que ela era filha adotiva de sua tia, mas a julgar pela semelhança familiar, eu quase não diria isso, uma vez que ela compartilhava alguns de seus trejeitos, como apoiar o pé na parede do corredor enquanto esperava e roer o canto das unhas, além do sorriso entusiástico.

Vestia um jaleco, trazendo uma mala de rodinhas consigo, enquanto me estendia a mão num cumprimento.

—Prazer, você deve ser a Joana, né? Eu sou a Antonia. O Edgar fala muito de você.

Sorri meio sem graça com aquela afirmação, e percebi que ele também tinha ficado um pouco sem graça. Cumprimentei-a, tentando disfarçar a minha timidez com aquilo:
—É, sou eu. Prazer, Antonia. Eu tenho uma amostra aqui que precisava ser analisada...
—Tá bom, vamos dar uma olhada... — Ela disse, erguendo a mochila. —Pode abrir um pouco de espaço?

Fiquei parada por um instante, quando me dei conta e retirei o prato com bolachas da mesa de centro. Ela colocou a mochila ali e retirou o detector de radiação de dentro.
—Pode trazer a amostra. — Ela disse. Eu olhei pra Edgar e apanhei a cápsula de chumbo da bala e a virei, depositando o frasco na mesa. Edgar estava do lado dela, e eu me juntei a eles na hora em que ela apontou o sensor.

O detector apitou loucamente, a agulha do visor indo para o extremo oposto de onde estava. Edgar e eu nos entreolhamos, enquanto Antonia, espantada, retirava o sensor de cima da amostra, apontando novamente. O resultado foi o mesmo. Ela nos encarou, atônita:

—Essa coisa, de onde veio essa coisa? Tá muito acima do limite considerado seguro...
—Ela foi tirada de um dos marinheiros do navio que encalhou na Baía. —Edgar disse-lhe, e sua expressão ficou muito grave. —Nós ainda não sabemos qual a fonte dessa radiação, mas achamos que ela está por trás da morte deles.

Ela mordeu o lábio inferior, horrorizada: — Mas isso, não é possível, uma radiação dessas precisaria vir de uma concentração muito grande de urânio ou trítio. Seja o que for, eu vou ficar um bom tempo sem ir à praia... —Terminou por falar, do mesmo jeito que o meu parceiro falara dias antes. Apesar do tom de brincadeira, percebia a seriedade contida em sua fala, quando ela disse:
—Joana, um nível considerado “seguro” de radiação seria 0,1 mSv, milésimos de Siavert. Isso aqui está com mais de 10 mSv! Precisamos avisar às autoridades pra que tomem uma providência.
—Isso foi feito, mas o delegado fechou o caso à pedido do secretário do meio-ambiente, que você sabe, é genro do governador. Enfim, fica bem fácil entender porque ninguém fez nada ainda, priminha.
— Que balaio de gato vocês arrumaram, hein? Pelo que eu sei, radiação não é uma coisa que se possa esconder debaixo do tapete pra sempre; Uma hora os danos se fazem notar. — Ela me lançou um olhar de desafio, como se pudesse perceber o dilema que acabava comigo:
—Mesmo assim, vocês precisam dar um jeito de alertar as pessoas. Olha, eu vou pesquisar pra saber aonde vocês podem ir, ok? —Concordei, calada.

Guardei a amostra de volta na cápsula, e Edgar a convenceu a tomar cuidado com quem falava sobre o assunto. Ela disse que avisaria a conhecidos e à família e se desculpou, dizendo que precisava ir pra uma reunião da faculdade onde trabalhava. Nos despedimos dela, ficando só nós dois na sala.

Sentamos no sofá, e uma vez que estávamos sozinhos, confidenciei a ele: —Você viu, Edgar? Ela olhou pra mim e eu me senti tão inútil. Tão burra. — Eu sei que eu estava muito animada antes, mas, agora eu acho que a ponta que eu seguia se perdeu, Eddie. Eu procurei nos mapas, procurei registros, não há nenhum indício de qual poderia ser a fonte dessa radiação. Acho que você tinha razão, esse caso é insolúvel.

Edgar olhou pra baixo, então me encarou, atencioso: — Joana, eu nunca disse que o caso era insolúvel, eu disse que o caso dos Máscaras de Ferro foi insolúvel. Sabe por que? Porque eles não tinham uma detetive como você no caso.

Meu coração se encheu com aquele elogio, e eu sorri sensibilizada. Ele continuou:
—Sabe, você tem feito a maior parte da investigação até aqui praticamente sozinha; Deixa o Eddie aqui te dar uma força, hein? Vamos, ver, temos uma amostra de tecido como prova, temos as fotos que eu tirei do brilho na água... — Ele fez uma pausa e começou a falar empolgado, como costumava ficar no curso da Polícia, um entusiasmo quase infantil:
—Podíamos procurar alguém interessado em noticiar isso! Ou poderíamos tentar descobrir o local onde o navio estava antes de ter encalhado! Talvez até usando o contador pra isso!

Olhei pra ele. Queria continuar com a mesma coragem de antes, mas vendo tudo que estava fazendo e tudo que acontecia, começava a achar que tinha enfiado os pés pelas mãos.

—Não sei, Edgar... Mesmo que fizéssemos isso, nós não temos equipamentos pra isso, e pensando bem agora, estou com medo do que possa acontecer se souberem que temos essas provas. Por enquanto, não temos muito o que fazer a não ser esperar pelo que a sua prima possa nos indicar. —Falei, desanimada. Na minha busca frenética perdi a ponta do novelo e agora só nos restava esperar que ela aparecesse novamente, uma outra oportunidade, nova pista.

Suspirei, bebendo o café frio que tinha sobrado da minha caneca.


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Notas finais do capítulo

Oi, gente, e aí, curtiram o capítulo?
Pra quem não conhece o caso dos Máscaras de Chumbo, tem essa página na Wikipedia:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mist%C3%A9rio_das_m%C3%A1scaras_de_chumbo
e tem também esse vídeo explicando: https://www.youtube.com/watch?v=9oG1jbiXyRI
Acho esse caso fascinante, principalmente por envolver a minha terrinha, Campos dos Goytacazes. É claro que se isso tem a ver com o mistério ou não, eu deixo pra imaginação de vocês. ^__^

Falando nisso, Edgar Alan Poe é um dos meus escritores de contos de terror favoritos então pra quem gosta de terror é uma boa pedida. Pra quem não conhece e quiser começar, eu sugiro os contos "Tú és o homem", "O coração delator" e "A caixa Oblonga", por que pra mim foram os mais legais e mais simples de ler. Tem vários outros tão bons quanto, mas eu me apeguei a esses. Ele também escrevia poemas, que eu quase não li, um crime que pretendo corrigir ainda em vida... (seria engraçado tentar ler morta, né? Pra isso eu ia precisar daquele caixão com luz lateral do "Todo Mundo Odeia o Chris") .

Comentários, perguntas, etc, escrevam e me digam o que acharam. Não tenho um prazo pra postar o próximo capítulo, mas acredito que até terça ele estará pintando por aqui, valeu!