Pelos Olhos da Loucura escrita por Scout caramel


Capítulo 3
Um perigo invisível


Notas iniciais do capítulo

Tô aqui pra dizer que comentários são muito apreciados e me incentivam cada vez mais a continuar escrevendo! E muito obrigada ao Red Kun, que já me acompanha desde minha outra fic de Pokémon! Valeu pelos reviews!



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“No mar estava escrita uma cidade.”

Carlos Drummond de Andrade

Após desembarcarmos, Edgar e eu nos despedimos dos oficiais esperando um comunicado a ser enviado para a Delegacia dali a algumas horas, a respeito do exame dos técnicos nucleares. Assim, tendo esse tempo livre para repor nossas energias, fomos almoçar num restaurante do posto 6 à beira-mar.

Sentamos numa mesa próxima à janela, com vista pra rua e o calçadão.O vento ainda soprava forte.


Estava ainda distraída em meus próprios pensamentos, quando Edgar pôs a mão sobre o estômago, em desconforto: — Acho que foi o balanço daquele barco, detesto isso... Acho que vou...— Tampou a boca, fazendo uma careta.

Fiquei olhando ele se levantar correndo até o banheiro, quando senti um pontada na cabeça, bem forte. Franzi a testa, levando a mão até o local; A dor não era mais tão aguda, mas persistiu até Edgar voltar, já mais aliviado. Aquilo não era um bom sinal.
—Eu sempre fico enjoado em alto-mar... Tudo bem, Jô? O que foi?
—Hã, sim...Tudo bem. Acho que sim. —Pensei em me abrir com ele, mas não queria alarmar meu colega. Afinal, poderia ser só uma dor de cabeça comum.

Nós nem tínhamos certeza ainda de que havia radiação no navio. Pedi uma garrafa d’água ao garçom e checamos o menu. Meu parceiro apontou que queria comer um filé de pescado, e eu achei melhor intervir:
—Espera, Eddie! Ainda não sabemos, mas se os testes derem positivo, então tudo que estiver nos arredores do navio, incluindo a água e os peixes, vão estar contaminados!

Ele franziu a testa, fechando o cardápio: —Ora, Joana, eu sei disso. Mas por que insiste tanto nessa hipótese? Quer dizer, pode haver alguma coisa assim, mas de onde teria vindo? Que eu saiba, Angra 1 fica meio longe daqui e ainda não explodiu...— Ele falou, mal-humorado.

Me inclinei para frente, irritada: —Ora, para de brincar! Isso é sério!

Edgar franziu a testa, olhando pro lado. Sempre fazia isso quando se aborrecia com ela. Joana tocou-lhe gentilmente no braço: —Vai, não fica chateado... Vamos pedir outra coisa.


—Não estou chateado...— Ele disse, forçando o riso: —Garçom, traz dois bifes à milanesa pra gente, fazendo um favor! E uma coca de 600! —E se virou para mim da cadeira depois:
—Olha, se você ficou preocupada, fica sabendo que eu lavei minhas mãos muito bem... Nenhuma radiação metida a besta vai me pegar.

Ri um pouco, abrindo os canudinhos embalados e pegando um com a boca para colocá-lo na garrafa. Edgar me observava atentamente, tanto que isso me deixou um pouco incomodada.
—Que foi?
—Nada, é que você fica engraçada segurando o canudinho com a boca...

Tornei a sorrir, tomando alguns goles da água e continuando a conversa:
—Tá bem, mas toma cuidado. Só acho que, dadas as circunstâncias, essa é a hipótese mais segura que temos no momento, mesmo que ainda não possamos explicar como isso foi acontecer. Uma exposição de radiação forte o bastante para matar alguém e parar máquinas como um motor de cargueiro teria de ser equivalente ao que ocorreu com o vazamento na usina de Chernobyl. — Edgar repuxou os lábios para baixo, franzindo a testa.Balancei a cabeça, séria:
—Se for este o caso, toda a área em que estamos precisaria ser evacuada imediatamente. —Eu dizia, minha mente se perdendo em todos os possíveis horrores que poderiam advir de tal perspectiva.


—Hum... Isso é tipo aquele filme do Spielberg. Não péra, eu acho que era de outro diretor... Opa, a comida chegou! Esse boi com certeza não vem com radiação, né?— Ele ria com o garçom, apanhando um prato.

Franzi o canto da boca, frustrada. Agora era oficial, Edgar estava em plena negação do que ocorria ali, e eu tinha quase certeza de que isso tinha a ver com seu estado psicológico atual: lutando com a separação de sua esposa, com quem estivera casado à quase dois anos, além do luto pelo bebê que ela carregava. Isso tudo precipitou meu parceiro num mar de tristeza e abatimento que eu temia que o tragassem de vez. Agora eu via como ele evitava todo e qualquer contato com sofrimento, fosse ele alheio ou fosse o dele próprio. E isso tinha que parar.
— Você ainda não se recuperou totalmente do que aconteceu, não é?

Ele me encarou por um momento, mastigando o bife. Então, seu sorriso desapareceu ao se dar conta do que eu queria dizer:
—Se você estiver falando da separação, esqueça, tá. Não quero falar sobre isso.
—Ah, mas eu acho que devíamos falar sobre isso!—Insisti firmemente: —Está afetando seu trabalho! Você não leva mais nada a sério, esqueceu até de por as luvas pra examinar os corpos, Edgar!
—Eu, hein? Você tá muito resmungona ultimamente! Para com isso...
—Não, não paro! Não até você admitir o quanto isso tudo te abalou! Você quase não sai mais de casa, não dorme direito... Como quer que eu acredite que você está bem?
—Ora, e como você acha que eu poderia estar bem? Por Deus, o que você acha que eu sou? Um robô?! — Sua exclamação irrompeu pelo restaurante, e ele se abaixou um pouco, envergonhado. Olhou pra baixo, e eu me percebi a ponto de chorar, quando ele finalmente disse, se recostando na cadeira de novo, com uma expressão de pena:
—Mas também, o que eu devia esperar de você? Divide seu apartamento com um gato, como se não existisse ninguém perfeito o bastante no mundo pra você... Não é à toa que não consegue entender pelo quê eu estou passando!

Aquilo foi mais do que eu podia suportar; Apanhei a bolsa, tirando o dinheiro correspondente a minha refeição, e joguei em direção a ele, dizendo: —Vou pra casa, Edgar. Não se preocupe se eu não te ligar mais por hoje, não quero te incomodar. —E sai, dando as costas pra ele.

Ainda o ouvi me chamando ao longe, mas o ignorei solenemente. Dizer que eu estava chateada seria brincadeira; Eu estava irada.

Caminhei a ladeira em direção ao conjunto de apartamentos onde eu morava, minha sombra caindo pesada nos paralelepípedos bem abaixo de mim. Nem ligava mais para o sol quente em minha cabeça, queria mesmo que meus neurônios torrassem até explodirem.

Porque as pessoas tinham que ser sempre tão decepcionantes?

Fechei a porta do apartamento, me deixando cair na cadeira. Bobby miou alto me recebendo, roçando o corpo gorducho e branco sobre meus pés. Aquela altura, lágrimas ainda inundavam meu rosto, e limpei-as enquanto me esforçava em me controlar.

Céus, porque era tão difícil entender as outras pessoas? Eu me perguntava aflita, mas não havia respostas. Por alguma razão, sempre que eu parecia começar a entender, algo sempre acontecia e elas se mostravam um vasto e profundo poço ainda inexplorado, uma pirâmide ardilosa para a qual nunca havia uma saída possível de ser decifrada... Seria eu mesma tão distante e inalcançável para os outros também?

Tentara ser solidária com ele, será que Edgar não entendia o quanto eu me preocupava? Afinal, como não me preocuparia...

Era meu único amigo;

Meu melhor amigo.

Talvez Edgar que estivesse certo, talvez eu estivesse sendo muito dura e insensível com ele, querendo que ele se forçasse a estar bem sem conseguir. Agora, de certo, eu o perderia. Apanhei o celular do bolso num ímpeto, discando o número dele, quando recebi outra chamada; Era o Noronha.

Assoei o nariz, antes de falar:
—Fala, Noronha...
—Joana, preciso falar com você e o Edgar, é urgente!
—Mas o que houve, Noronha? Noronha?— Ele desligou na minha cara. Joguei o celular na mesa, com raiva, vestindo minha jaqueta novamente. O chefe deveria estar com um problema grande nas mãos, caso o contrário me responderia. Me arrumei outra vez e saí apressada.

Talvez eles já tivessem as respostas pra aquele enigma. Na certa seria uma conversa longa, talvez demorasse a voltar. Tinha colocado comida o bastante pra Bobby? Já estava na metade do quarteirão, quando chutei o meio-fio com raiva e dei meia volta. Enchi a tigela do gato até a boca, e tornei a trancar a porta, praticamente pulando os degraus até o térreo.

Retomei o trajeto, caminhando apressada.

Por mais que o detestasse e quisesse evitá-lo agora, Edgar era meu parceiro no caso e precisava avisá-lo do que acontecia. Puxei o celular no meio do caminho, enquanto corria: —Edgar, me atende vai... —Demorou mais alguns segundos, quando finalmente ouvi a voz dele:
—Sabia que iria me ligar, é bem típico da sua parte dizer uma coisa e fazer outra. Nunca deixa ninguém prever seus movimentos...
—Pode analisar a minha personalidade numa outra hora, Edgar! Tô correndo até a D.P., o Noronha quer ver a gente!
—Agora? Mas será que...
—Não sei, Edgar, mas eu não gostei do tom dele... Acho que não vem nada de bom pela frente. Até... — Falei simplesmente, desligando. No fundo, uma parte de mim ainda queria ter pedido desculpas, mas a outra parte queria mais era que ele sofresse, até entender como eu estava me sentindo. Por outro lado, tinha um mal pressentimento sobre o que poderia acabar ouvindo ali.

Subi com pressa pela escadaria da Delegacia de Polícia, mas não esperei por Edgar dessa vez; Fosse o que fosse que Noronha tivesse pra dizer, Eu saberia em primeira mão, e só então pensaria na melhor forma de contar a Edgar o perigo que poderia estar correndo...

Bati na porta do escritório do chefe, que já estava aberta, e ele que me convidou a entrar. Parecia nervoso como de manhã.

Ele se ajeitou na cadeira, atônito: —Cadê o Edgar?
—Já está vindo, chefe. O que o senhor queria... — Falava, mas fui interrompida por ele, que esfregando a testa enrugada com os dedos, disse:
—Olha, Joana, eu vou ser franco com você: Na mesma hora em que o pessoal da marinha liberou o relatório dos peritos nucleares, o pessoal do governador me ligou; Querem que encerremos as investigações.

Eu não podia acreditar; Arregalei os olhos: —Que conversa é essa, chefe? Encerrar? Mas e os marinheiros que morreram lá?

Ele virou o rosto, sem conseguir me encarar, e eu continuei: — Eu dou o meu sangue por esta corporação, todo dia, e muita gente aqui também! O senhor é o delegado aqui, deveria dar o exemplo!

Noronha tremeu o lábio inferior meio caído, finalmente explodindo: — E-eu confiava no talento de vocês pra arrumar uma justificativa plausível para o que aconteceu naquele navio infernal, e aí o que vocês me trazem? Suspeita de radioatividade!— Uma veia pulsante já despontava na testa suada do chefe, e ele continuou: — Joana, o governador tem muitos contatos, vários tentáculos espalhados na política, em tudo! Se você continuar com esse caso em aberto, pode ter certeza que a sua cabeça, a minha e a do Edgar vão rolar, e não vai ser nada bonito!— Terminou de dizer, dando as costas pra mim.

Franzi a sobrancelha, ainda incrédula com tudo que estava ouvindo. Insisti para o bom senso dele:
—Noronha, eu não tô entendendo você... Aquele navio pode ser a maior fonte de contaminação radioativa nesse país desde o incidente com Césio 137! Milhares de pessoas estão em perigo sem saber! Como você pode ter coragem de brincar com as vidas delas? Enfrenta eles! Ignora essa politicagem!

O chefe não voltou a me encarar, mas sentado em sua mesa, alisou a testa, suspirando pesadamente.
—A marinha já está encarregando-se de se livrar daquela carcaça maligna, e nada de sério vai ocorrer enquanto as pessoas não ouvirem essa maldita palavra! Entendeu?— Ele se virou, olhando pra mim, procurando uma confirmação da minha parte. Não me restou nada mais a fazer, a não ser dar meia volta e ir embora:
—Entendi, chefe, mas ainda não engoli. E sinceramente, não vou engolir mesmo. — Sai transtornada pelo corredor, sem conseguir ver direito quem passava por mim.

Cruzei a porta da D.P. a tempo de esbarrar em Edgar. Nos encaramos por alguns instantes, então exclamei por fim:
—Não perde seu tempo aqui, Edgar! —Queria sair correndo dali, quando ele me alcançou, puxando meu braço de leve:


—Joana, espera!—Eu parei, e ele me soltou, com a respiração arfando: —Me desculpa pelo que eu te disse mais cedo, Jô... Eu não queria dizer aquelas coisas, mas fiquei pensando em tudo que você me disse. Acho que você tem razão, eu não estava levando a sério as coisas. Eu vou me esforçar pra voltar a ser o parceiro de que você precisa, ok? Hein?

Respirei fundo, baixando olhando pro chão. Se ao menos ele tivesse estado ao meu lado naquela hora, não teria ainda de explicar o que o infeliz do Noronha disse. Fui em frente:
— Tudo bem, Edgar. Me desculpe também, acho que eu não fui muito justa com você. É bom que você esteja percebendo que precisa se cuidar mais, só que justo agora Noronha fechou o caso.


—Quê? Mas como assim?
—Politicagem. Ai, foi terrível. Eu só queria sumir dali.
—Nossa, mas que merda. Então, como é que fica? Porque todo mundo viu o navio encalhado...
—Ah, sem dúvida eles vão subornar os médicos legistas, atribuir a causa a envenenamento, desmontar o navio e daqui a alguns dias ninguém mais vai comentar sobre o caso. —Suspirei, desiludida.

Edgar passou o braço pelas minhas costas, um gesto que ele costumava fazer quando queria me consolar:
—Você queria muito resolver esse caso, né? Eu percebi pelos seus olhos, parecia ter um fogo diferente neles.
—É, Edgar, eu queria. Agora, eu nem sei se eu quero voltar naquela delegacia depois de tudo isso. Acho que vou pedir transferência. — Falei sem pensar muito, mas sua expressão ficou transtornada com isso:
—Transferência? Mas... Pra onde?
—Não sei. Botafogo, Duque de Caxias. Procuro emprego até na D.P. da Rocinha, mas ali eu não trabalho mais.
—Só me avise antes de se mudar, tá? Pra eu te comprar um colete à prova de balas que preste. —Ele me falou rindo. Não pude evitar sorrir também.
—Esse sim é o Edgar que eu conheço. —Lhe dizia, dando um abraço de despedida:
—Boa noite. —Falei com certa tristeza ainda, me dirigindo de volta pra casa.
—Boa noite, Jô.— Ele retribuiu quando eu já me distanciava.

Continuei caminhando a rua escura à noite, os barzinhos e botequins abertos tocando pagodes alegres.
“Que grande perda de tempo havia sido aquele dia inteiro”, pensava, chegando à portaria do prédio. Ao me ver, Josué, o porteiro me cumprimentou:
—Noite, dona Joana! Tudo bem com a senhora?
—Mais ou menos...— Disse, sem muita vontade de iniciar uma conversa naquela hora. Ele, no entanto, continuou.
—Sabe, a minha esposa e eu somos muito gratos pelo que a senhora fez aquele dia. Se não fosse a senhora, a gente talvez nunca tivesse a Julinha de volta com a gente.— Julinha: a menina, que na época tinha oito anos, sumira na volta da escola. Com as pistas, Edgar e eu descobrimos o paradeiro dela no porão de um bar, sequestrada pelo dono, um pedófilo. A menina recebeu ajuda terapêutica de uma psicóloga e desde esse dia nós éramos próximos deles.

Comovida com aquela lembrança, agradeci:
—Obrigada, Josué. Hoje estava difícil pensar em alguma coisa que me animasse. Até amanhã... — Me despedi, subindo pelo elevador.

Entrei no apartamento. Bobby dormia relaxadamente sobre o meu travesseiro. Ri: —Você que fez bem, né Bobby? Nem saiu da cama.

Na falta de televisão pra checar as notícias, procurei na internet usando meu notebook. Os portais noticiavam apenas que ao fim da tarde, o navio já havia sido rebocado para ser desmontado e os corpos das vítimas levados ao IML, numa mega operação que surpreendeu os críticos ao governo. Desliguei o computador sentindo um aperto na garganta. Depois dessa sabia que entregaria minha demissão no dia seguinte.

Já no banheiro, me despi, ligando o chuveiro no morno. Precisava urgentemente de um banho pra me livrar de toda aquela tensão. Estremeci sentindo o contato da água em minha pele, o box embaçando com o vapor.

Depois, vesti um pijama composto de uma blusa e uma calça comprida, ideais pra uma noite fria como aquela. Ia botar uma lasanha pronta pra assar no forno, quando ouvi o meu celular tocando. Procurei na casa toda, até me lembrar de que o havia deixado na jaqueta.

Atrapalhada, vasculhava os bolsos, quando me deparei com um frasquinho cheio de álcool e...
—Não fode, cara...— Disse em voz alta, encarando o pedaço de nervo óptico tirado de um dos marinheiros do Morella. Ao fundo, meu celular continuava tocando frenético. Era isso; Um sinal.

Estávamos de volta no caso.


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Notas finais do capítulo

Oi, gostaram do capítulo? Comentem, acompanhem, ponham nos favoritos e torçam pra eu conseguir terminar essa bagaça até o fim do mês! Abraços!