Pelos Olhos da Loucura escrita por Scout caramel


Capítulo 2
SS Morella


Notas iniciais do capítulo

De novo, repostando o capítulo com as mudanças.

Também fiz uma playlist que eu recomendo principalmente pra quem quiser um clima mais "assustador" à leitura:

https://www.youtube.com/playlist?list=PLwWSVH1Rkmqi4SoeMq7Cdn7eONUb9gHKX





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“A mais antiga e mais forte emoção da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte tipo de medo é o medo do desconhecido.”

H.P. Lovecraft

Quando o táxi chegou ao posto 6, olhei pela janela, confirmando o que ouvira nos noticiários: ali estava o cargueiro, cravado meio de lado na baía, o casco visível até quase a quilha. Era uma visão tanto tão fascinante quanto aterradora. Cruzei os braços, tentando afastar a sensação de frio que percorria cada pelo arrepiado meu, a brisa marinha e fria do mês de julho bagunçando meus cabelos ao sair do carro.

Logo avistei os oficiais da Marinha, que já me esperavam no ancoradouro. Identifiquei-me e avisei que esperaria por Edgar, que não tanto pra minha surpresa ainda não havia aparecido. Eles se postaram muito formais em minha frente, o que me deixou levemente desconfortável, então me virei, sentando no banco da estátua do Carlos Drummond ali perto. Fixei-me em seus óculos de latão e seus olhos de estátua, ali, condenados a fitar tudo, as pessoas, a avenida, os hotéis luxuosos... Tudo menos a linda imensidão do mar azul que se estendia generosamente por aquelas praias de areia clara. Um triste fim para um poeta como ele, refleti.

Não demorou muito, meu parceiro apareceu pelo calçadão, saindo também de um táxi. Magro e baixo como era, praticamente sumido dentro de um casaco de veludo cinza, seu cabelo loiro curto estava bastante aparado nas laterais, bem diferente dos mullets que costumava usar da última vez que o vira. Também parecia um pouco mais alegre do que ao celular. Cumprimentei-o com entusiasmo:

— Nossa, Edgar! Que foi, brigou com o cortador de grama?

Ele riu, forçando um “sotaque veadístico”, como ele próprio chamava:

—Hunf, invejosa... Pior que eu também não gostei, tô com um frio danado nas orelhas... — Ouvimos o riso disfarçado dos marinheiros ao lado, que aparentemente perderam toda a compostura com as gracinhas dele. Edgar engrossou a voz, então, se dirigindo a eles: — Estamos prontos, senhores.

Armados com fuzis, os homens nos conduziram ao ancoradouro, onde o capitão Aírton se apresentou: Era um homem alto, mulato e forte, com olhos severos. Após nos cumprimentar, ele deu as instruções e partimos num barco a motor, a silhueta cinzenta e solitária do SS Morella cada vez mais próxima de nós. O barco resvalava sobre as águas turvas e escuras da Baía de Guanabara, percorrendo o trajeto até o cargueiro imenso à nossa frente.

Edgar e eu ainda olhávamos para o cargueiro, quando o capitão se dirigiu a mim:

— A senhora deve estar preparada para o que irá ver... Não é uma cena fácil de digerir.

—O senhor tem algum palpite do que aconteceu?— Perguntei. O oficial baixou a cabeça levemente, como se buscasse as respostas dentro de si; Voltou os olhos então para o azul do mar, infindável e indecifrável, e respondeu, balançando a cabeça com um sorriso amarelo:

—Francamente, nenhum. Em todos esses anos servindo, nunca vi nada igual. Nós vasculhamos toda a carga e os compartimentos, mas nada estava danificado o bastante, nem havia sinais de violência que explicasse o que aconteceu. Não é somente o fato de a toda tripulação estar morta, conforme já deve ter ouvido. —Ele fez uma pausa, seu semblante agravando-se quando continuou: —Seus rostos, as bocas abertas em terror, o pavor que encontrei em seus olhos... Nunca em nossas vidas vimos coisa assim, nem eu, nem nenhum dos meus homens, nem mesmo nas piores das catástrofes.

Nós dois o encarávamos, quando o barco diminuiu a velocidade e os marinheiros se levantaram, fazendo sinal em direção ao contra-almirante e aos marinheiros que esperavam, para atracarem no cargueiro. Enquanto esperavam as instruções para subir na escada de cordas que lhe estenderam, o capitão Aírton resmungou, tirando o cigarro da boca, e se dirigindo a eles: — Vocês verão o que quero dizer...

Nos entreolhamos rapidamente, e depois subimos com ajuda do grupo.

Fui a primeira a pisar sobre o convés do navio, se desequilibrando; Precisou se amparar num dos marinheiros ao seu lado, antes que caísse pelo mesmo lugar em que havia subido. Edgar veio logo atrás e mim, também sentindo os efeitos da inclinação bizarra do Morella. Franzi a testa; O cheiro de carne chamuscada emanando do convés era forte, e fez meu estômago se revirar, ainda mais ao pousarmos as vistas sobre a dezena de cadáveres: retorcidos, caídos, alguns com as mãos cravadas sobre o rosto, em claro e distinguível sentimento de agonia. Era possível notar que a pele deles estava pavorosamente ressecada e avermelhada, como se houvessem sido queimados.

—Nossa Senhora!— Edgar exclamou sem se conter. Andávamos com cuidado entre eles, o capitão a acompanhar-nos enquanto outro marinheiro prestava o relatório:

—Checamos na casa de máquinas e a ponte de comando, senhor, mas não encontramos sobreviventes, e julgando pelos registros, só havia doze homens a bordo. E todos os doze tripulantes estão mortos, senhor. — Dizia, gaguejando. —Os peritos em engenharia também disseram que os achados no navio até agora são Inconclusivos...

O capitão baixou o rosto, enrugando o queixo proeminente em desagrado:

—Os peritos não conseguem dizer o que pode ter matado esses infelizes. — Se virou na direção dos detetives: — E os senhores, podem desencavar alguma coisa disso?

—Estamos aqui pra tentar. — Respondi, cutucando Edgar para que se aproximassem da cena.

Em seu passeio fúnebre pelo convés, Edgar apontou-me um cachorro caído perto dos botes, os olhos horrivelmente arregalados e a boca babosa, como se tivesse convulsionado. Era um pastor alemão; Suas orelhas estavam baixas e encolhidas, em uma submissão desesperada. Fiquei distraída por um momento, quando vi Edgar erguendo a cabeça do animal, sem luvas. Chamei-lhe a atenção, mas ele apenas retorquiu para que eu fizesse silêncio, na falha ideia de que o bicho talvez ainda estivesse vivo. Não era o caso; Estava morto mesmo.

Ele acomodou o cão em seu devido lugar, passando as mãos pelo próprio casaco, olhando para mim:

—Desculpe, Joana, eu me esqueci. Ele é igual a um cão que eu tive na infância. — Voltei minha atenção para um dos marinheiros caídos pelo convés, que jazia de bruços sobre o chão à minha frente. Me abaixei tirando as luvas de silicone do bolso e vestindo-as. Depois, cuidadosamente toquei o ombro do marinheiro morto, procurando virá-lo de barriga pra cima. Ao fazer isso, no entanto, quase me desequilibrei encarando suas órbitas oculares vazias, dois grandes buracos negros como a morte, ocos e penetrantes, sugando com eles toda a razão possível em minha mente.

Me afastei um pouco num impulso, continuando agachada ali, porém. Edgar veio em meu auxílio, mas não era preciso. Tornei a me inclinar sobre o corpo, dessa vez com uma pinça entre os dedos, e procurei algum vestígio de tecido dentro daquelas órbitas úmidas de sangue e coletei uma amostra do que só poderia ser o nervo óptico do marinheiro. Me levantei devagar então, contemplando os oficiais, calmamente dizendo a Edgar:

—Os olhos devem ter sido arrancados por gaivotas... — Me virei para o capitão, perguntando: — Quanto tempo faz que as embarcações ao redor receberam os chamados de socorro e contataram a marinha, capitão?

Ele pigarreou um pouco: —Foi durante a madrugada desta quinta-feira, acredito. A ocorrência foi registrada às três da manhã, e levamos mais ou menos duas horas pra chegar aqui. Acontece que o tempo não ajudou, por conta da chuva e do vento, e o navio não estava ancorado, então ficou à deriva. Quando chegamos, ele já tinha se distanciado uns 30 quilômetros do local apontado.

—O primeiro barco a ouvir o pedido de socorro, pelo que apuramos, foi o Santa Virgínia, que fazia o trajeto do Rio em direção à Bahia. A mensagem por eles recebida, transcrita do rádio está aqui. Não comunicamos à imprensa ainda, por medo de gerar pânico na população. — O imediato me entregou o papel e eu o li:

“SOS, Aqui é o Morella. Posição 23º norte e 43º 10’ oeste. Necessitamos de auxílio de qualquer embarcação próxima. Todos os oficiais inclusive o capitão estão mortos. Toda a tripulação está morta.... (trecho ininteligível)... Eu morro."

Edgar lia ao meu lado, e comentou: — Não tô gostando dessa situação... — Devolvi a transcrição ao capitão, quando Edgar levantou uma hipótese que já rondava pela minha cabeça: — Pode ter sido um caso de envenenamento... Há algum elemento químico presente na carga, capitão? O que eles transportavam aqui?

Aírton tinha o peito erguido, com os braços para trás do corpo. Houve um momento de hesitação por parte dele, quando retirou o cigarro da boca com os dedos, encarando-nos num gesto de comicidade e desafio com o que estava prestes a revelar, quando finalmente respondeu:

—Vocês vão achar que é brincadeira, mas a carga que eles transportavam não passava de batatas chips.

—O quê?—Fiz uma careta enquanto Edgar jogava seu profissionalismo pela janela, exclamando:

—Não fode, cara...

—É estranho, mas é verdade. Já vasculhamos o porão procurando alguma que pudesse ter envenenado a tripulação acidentalmente, mas só encontramos um carregamento de pacotes de batata chips, e dificilmente isto representaria algum perigo a alguém, a não ser o de hipertensão. — Ele brincou, mas a informação apenas contribuía para aumentar a atmosfera de tensão naquele lugar.

O imediato nos interrompeu, acrescentando que os engenheiros da marinha a bordo haviam examinado todo o maquinário até aquele instante. Disse ele:

—Não há forma de explicar, mas pareceu que o motor parou de funcionar, instantaneamente. Mesmo assim, não há nada que explique o que ocorreu; As peças estão limpas e funcionais como as de qualquer navio com boa manutenção, e não encontramos nenhum gás venenoso ou corrosivo... —Descartadas nossas principais hipóteses, parti para uma terceira, a qual por mais improvável, parecia ser a única restante naquele momento:

—Vocês checaram por algum traço de radioatividade?—Inquiri, e os engenheiros tiveram de admitir não terem realizado o procedimento. O capitão Aírton exclamou, rindo:

—O quê? Radioatividade, senhora?

—É, radiação em grande quantidade é capaz de levar ao óbito, e também de queimar a pele, além de fazer aparelhos e máquinas pararem de funcionar quase instantaneamente. Pode ter sido esse o caso aqui.—Continuei falando, perante a falta de palavras do capitão: — Precisamos de um contador geiger.

—Desculpe-me senhora, mas acho altamente improvável tal coisa. Afinal, qual seria a fonte uma radiação tão potente assim?

—Não sei, capitão, mas não custa nada examinar isso. Se não houver radiação, trabalharemos com outra hipótese, mas se houver, aí o senhor estará a vontade pra formular essa pergunta.

Ele me olhou como quem se sente dando o braço a torcer e não questionou mais nada, apenas pediu a um marinheiro próximo que telefonasse para a central. Se virou para nós então, dizendo:

—Traremos um engenheiro nuclear para cá, como quiser, senhorita. Agora, se nos dá licença, meus homens e eu vamos começar a operação de cobertura dos corpos. Com esse sol quente, não vai demorar muito pra isso estar cheirando como um mercado de peixes. —Vi os oficiais começarem a cobrir os corpos com lonas pretas, enquanto Edgar fazia um sinal a mim de desagrado com os comentários do capitão. Por bem do meu profissionalismo, ignorei-o naquele momento.

Na verdade, não foi só por isso que ignorei Edgar; Meu olhar estava longe, distante como o horizonte. Meu pensamento viajou por entre aquelas profundezas, parando na face aterrorizada e descarnada do marinheiro. Alguma coisa estava ali, e eu não a enxergava. Aquele caso era o meu novelo atual, e nós teríamos que ir seguindo pontas soltas que dele saíam; Algumas não levariam a lugar nenhum, mas no fundo eu sabia que, numa delas, estaria a verdade. Era apenas questão de tempo e informação.

O mar tinha começado a ficar mais agitado naquela hora, e o capitão designou alguns homens para voltarem conosco ao ancoradouro, antes que fosse muito difícil cruzar as águas. Assim fizemos.


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Notas finais do capítulo

Cuidado, leitores fantasmas, preguiça em excesso mata— fanfics. Por isso, se você gostou da fic até agora, comente. E se não gostou, comente também. Não seja um fantasminha, camarada! (Tudumtz!!!)