Tunnel Of Love escrita por vegadelira


Capítulo 6
Plano Extra




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Terça-feira, 14/04/2015, 22h07min. – Londres, Sudeste da Inglaterra

A distribuição de energia elétrica feita pelo respectivo centro havia se restabelecido no condomínio, porém continuava a chover. Os dois jovens assistiam aos programas da televisão há algumas horas. Marshall Lee superara o choque que o impedia de conversar com Fionna, mas não era o suficiente para se apaziguar. Sua cabeça viajava por outro mundo, vulgo lugar onde certas almas desnorteadas nem mereciam estar. Deduziu que tudo não era por acaso. Os ocorridos sem nexo separados faziam sentido juntos, por mais irônico que fosse. Era um desperdício pensar em partes se já sabia que não formularia o que almejava. Afinal, para quê fazer mais perguntas quando as mais prováveis respostas estavam evidentes? O próximo passo para chegar à verdade deveria ser uma seleção de fatos, a qual não seria tão simples como aparentava. Reviravoltas aconteciam e, portanto, qualquer coisa que planejasse antecederia ou atrasaria uma estratégia.

Fionna mantinha os olhos arregalados para as imagens formadas no aparelho à sua frente. Ela não era boa para lidar com as emoções alheias, e, curiosamente, adorava aconselhar os outros. Julgava o que tinha feito com Marshall, que expressara suas ideias com certeza. Duvidara dele. E isso poderia ter sido o porquê para ele não querer mais tocar no assunto. Infelizmente, o seu orgulho era tão grande quanto o do rapaz. Todavia a personalidade não abria mão do desejo de querer conhecer um pouco mais.

— Eu vou desligar a TV. Está trovejando muito. — avisou antes de fazê-lo e levantar-se para se apoiar no piano.

Ele permanecia calado, até se dar conta de que a loira ainda estava na sala. Caminhou até a direção oposta de Fionna, e ficou vis-à-vis a ela. Marshall tamborilava a ponta dos dedos da mão direita na madeira envernizada do piano. Ela olhava para baixo, encolhida. Inspirou profundamente e liberou o ar pela boca, acabando por encarar Marshall. Os corpos eram separados pelo instrumento musical, mas os olhos se encontravam de maneira perspicaz.

— Melhorei bastante. Não sei como te agradecer. — disse esticando a fina linha abaixo do nariz.

— Creio que é impossível eu falar do seu passado sem ser inconveniente, mas você pode me dizer a sua história? Onde estão seus pais?

O rapaz hesitou, comprimindo os lábios. Passou a observar a janela atrás da loira, a qual mostrava a casa da velha que possuía o gerador e o restante da vizinhança com residências, que podiam ser diminutas conforme a distância do local onde os dois jovens se situavam. Marshall se abeirou de Fionna, mas continuou o caminho até a janela. A moça se virava de acordo com os movimentos do rapaz, de tal forma que conseguisse o fitar. Este via os riscos translúcidos se chocando ou raspando contra o vidro, e isso o dava imaginação para contar a história satisfatória à Fionna. Era como um método de exibir filmes: um telão permitia a nitidez das imagens decorrentes.

— Sou emancipado desde os dezesseis, por isso morava com Lump. — deu uma pausa — Havia brigado com os meus pais porque eu simplesmente não os suportava. Eles ditavam as regras, e acredito que você tenha percebido que eu não gosto muito dessa parada.

Marshall sorriu com um ar de zombaria para Fionna, que captou a mensagem e, ainda assim, somente cruzou os braços e balançou a cabeça, confirmando a afirmativa. Sentia a ansiedade pelo desfecho e o interesse se impregnar pelo corpo, remexendo quando podia uma parte da silhueta.

— Eles duvidaram da minha capacidade em ser responsável, logo assinaram a autorização, pensando que eu voltaria uma hora ou outra. — suspirou — Mas eu não voltei para uma visita sequer. Eu comecei a ganhar dinheiro tocando em bares. A partir daí você sabe o que aconteceu.

— Com você, sim. E os seus pais?

— Morreram.

Fionna não esperava algo tão ligeiro e ríspido. Não quis nem indagar “como”. Era certo determinar que Marshall fosse impassível, pois nunca o tinha visto demonstrar uma emoção. Parecia que nada o abalava. Já que era desse jeito que as coisas fluíam, com o que ele podia se assustar, odiar, amar?

— Houve um incêndio na casa deles seis meses depois de eu me mudar. Até hoje a polícia insiste em justificar que foi um acidente.

— O que te faz pensar que não foi realmente isso?

A loira franziu o cenho, e a questão para ela foi ingênua. Entretanto, Marshall se viu em uma ameaça. Caso não tivesse cautela, revelaria sua verdadeira identidade. Até agora, tudo o que falara não era mentira, apenas ocultara o que era, para si, desnecessário. E esse desnecessário mudava o jogo.

— Lump.

Ela assentiu, acreditando que o contato do ex melhor amigo de Marshall com criminosos poderia acarretar um “acidente intencional” com pessoas próximas.

— Acho que você está se sentindo culpado e não consegue aceitar. — disse de forma quase inaudível.

O rapaz superara há dois anos esse passado. Só não superava aquele delegado cheio de pretextos e o apartamento que virara cinzas. No entanto, retrucou, voltando a olhar para Fionna e socando o ar:

— A minha vida tem uma maldição. Não sei a melhor maneira de explicar, mas é um efeito duplo. Duas tragédias e dois indivíduos. Ambos se foram, e eu reencontrei um. Estou prestes a reencontrar o outro.

Ela ficou em silêncio por uns segundos, percebendo que foi um péssimo comentário de sua parte. A teoria de Marshall a lembrou da famosa frase “A história se repete”.

— Espero que você consiga resolver seus problemas com a Marceline. Não quero me intrometer nisso. Caso o que está na sua cogitação for verídico, ficarei longe do caminho de vocês dois.

— Você tem livre-arbítrio. Não vou te questionar. Mas é uma aventura e tanto. — tentou convencê-la.

— Entre aventura e perigo existe um abismo chamado diferença. — esboçou um sorriso.

Marshall se assentou na banqueta preta da cozinha e fez o de costume: pensar. Precisava se aproximar de Marceline, encontrar a chave para abrir o enigma que a envolvia. Fionna não se prontificou a ajudar diretamente, e a única opção do rapaz era ela, que possuía um estreito relacionamento com a misteriosa adolescente. A loira, de repente, chamou-o pelo nome e sobrenome.

— Os seus pais não erraram em dizer que você é irresponsável. Não peça aos outros que façam uma obrigação sua.

Ela gaguejou enquanto se pronunciava, mas não porque montava a frase de imediato, e sim porque tinha noção de como aquilo soaria para um cara imaturo como Marshall. Fora das expectativas, ele anuiu e respondeu:

— Eu não convivo com Marceline. Você tem razão, sou muito receoso em relação a ela. Neste instante eu agradeceria se pudesse ao menos estar matriculado no Kingsbury.

A loira coçou o queixo e se achegou do rapaz. Perguntou-lhe se ele havia procurado pela herança, e esse negou, compreendendo o ponto que Fionna queria alcançar. Nem tinha mais a própria documentação; estava queimada. Contudo, a garota replicou. Havia uma chance de recuperar o perdido. Marshall não retornou ao diálogo, todavia supunha as possibilidades sobre isso.

O jovem não ficava extenuado, nem sob as mais extremas circunstâncias, porém sentia até o peso da menor parte do tempo absorvido pelo cérebro. Tempo era uma palavra bem comum no vocabulário de Marshall, pois se acostumara com ele. Dependia do mesmo para esquecer e agir. Ademais, tinha o bastante para digerir todas as informações, ao contrário de Fionna, que porventura enlouqueceria de preocupações com ele por causa dos esclarecimentos que ouvira. Marshall, por sua vez, não desejava isso. 

— Coelhinha, finja que meu passado nunca existiu. Não tem necessidade de queimar neurônios comigo.

— Como assim? — inquiriu e colocou o cacho dourado que caíra em seu olho atrás da orelha.

— Não tenha pena de mim. É a única coisa que exijo.

A moça sorriu. Sua feição era provocativa, e o moreno gostaria de entender o motivo. Ela assestou os olhos para um pano propínquo ao frontispício da casa, no qual adentrara molhada, deixando as gotas da chuva as quais escorriam pela roupa caírem no chão de madeira. Ele tossiu instintivamente ao notar o quase imperceptível percurso de água desde a porta de entrada até o final da escada. Fionna pegou uma vassoura ao lado do armário da cozinha e a entregou ao rapaz. Este enrolou o pano na mesma e foi esfregando o chão de forma desajeitada. A loira não segurava o riso ao assisti-lo. Não tinha como objetivo tratá-lo mal, e sim mostrar que foi capaz de obedecer à ordem.

Marshall estava bem fazendo aquilo; era uma boa terapia. Nunca imaginara que por um lado seria bom virar um escravo, pois recompensaria a garota que o deu um abrigo e motivação para prosseguir com a vida. Estava encantado com a última atitude de Fionna, ainda sabendo que ela o tinha sacaneado.

Havia uma entrada que dava acesso ao sótão pelo teto do corredor, no segundo andar. Era uma espécie de alçapão. A loira, nas pontas dos pés, levou a maçaneta para baixo, puxando a portinhola embutida na escada de efeito sanfona numa diagonal. Ambos subiram-na e depararam com o local limpo e bem organizado. A mãe de Fionna era claramente contra os estereótipos dos quais sótãos e porões deveriam ser imundos, infestados de animais peçonhentos e fungos.  O espaço era pequeno e aconchegante para permanecer por alguns dias. O rapaz não exigia muito, pois se pusera no lugar da moça; não seria agradável se seus pais descobrissem que um desconhecido residia na casa.

O sótão tinha uma estrutura normal. Fora construído com faixas de madeira. Uma cama estava afastada das caixas de papelão e de plástico, e uma cômoda a acompanhava.

— O colchão é macio. — atestou Fionna deitada próxima à cabeceira, ocupando quase metade da área.

Marshall se jogou ali e a retaguarda desencaixou, fazendo com que o móvel tombasse para o próprio lado. A loira, consequentemente, rolou até cair em cima do rapaz. Ambos riram, e ela notou a situação em que se metera. Ele prorrogou a imobilidade, esperando uma atitude da moça, que posicionou o corpo em flexão, mas não era acostumada com o exercício. Então, arqueou, e os braços fraquejaram devido à posição incorreta. Fionna se estatelou com força sobre Marshall. Este não sentiu dor e matinha os olhos na loira. As bocas de ambos estavam remotas por míseros centímetros, e eles ouviam a respiração um do outro. Ela desviou o olhar e chamou a atenção:

— Será que poderia me tirar daqui?

— Claro. Esperava sua súplica.

Fionna bufou e acrescentou que não iria arrumar a cama. O rapaz deu de ombros às reclamações, pois o faria, já que a culpa era toda sua.

— Os meus pais mandaram uma mensagem falando que só irão chegar depois de amanhã, mas é melhor você ficar aqui caso haja imprevistos. E eu recebi umas dez ligações da Marceline.

— Por que você não atendeu?

Fionna, erguida próxima ao móvel com o celular, bateu a mão na testa.

— Meu telefone estava descarregado, e eu o conectei na tomada antes de tomar banho, só que depois faltou energia. De qualquer maneira, não havia sinal naquele momento.

Marshall, sentado, apoiava as costas na cabeceira da velha cama. Ele pôs os dedos nas têmporas.

— O que foi?

— O que está esperando? Ligue pra ela! — vociferou.

— Calma. Não viu que horas são?

Com certeza, caso fosse algo sem importância, a quantidade de ligações seria muito mais inferior.

— Beleza. Faça o que quiser. Amanhã eu vou resolver umas coisas e você liga pra Marceline.

— Que coisas?

— Você não precisa saber.

A loira colocou as mãos na cintura e ergueu as sobrancelhas, passando a observar o jovem.

— Pois saiba que talvez eu não esteja em casa quando você voltar. E essa sua falta de educação me deu uma ótima ideia.

— Qual ideia? — questionou em tom de incredulidade.

— Você não precisa saber. — retrucou gesticulando e imitando-o com zombaria.

Marshall sorriu.

— Tenha uma boa noite. — puxou o lençol de cheiro forte — Já que eu não terei por causa da péssima sensação de estar sem uma peça íntima.

Não havia cuecas novas ali, e disso ele tinha consciência, entretanto não guardou a decepção para si. Fionna mordeu o lábio inferior, distanciando-se para descer a escada. Conseguintemente, virou o rosto e contrariou:

— Nem é tão ruim assim.

O rapaz engoliu seco e deu uma inaudível risada enquanto se certificava se alguma marca aparecia na calça da loira ao andar. Não era novidade, e ele ainda se surpreendeu.

xxx

A mansão de Gumball, melhor amigo de Fionna, era o segundo lar desta. A residência era situada a dois condomínios da moradia da loira, portanto ela tinha o costume de vir de transporte. Os dois se conheciam desde a infância, e ela nunca deixou de expressar a gratidão por terem construído uma relação amistosa ao longo dos anos. Porém, não suportava o fato de que ele não a via com outros olhos, como alguém que o amava.

Nesse dia, ele reuniu os amigos que confiava na imensa sala de jantar. A mesa hialina era contornada por quatorze cadeiras acolchoadas, das quais duas se encaixavam nas respectivas extremidades da mesa. O teto era muito alto e detalhado de gesso e ondulações douradas. O ambiente era parecido com um shopping; o segundo andar, o qual continha os quartos, possuía um vão que possibilitava a vista do primeiro pela sacada interior.

— Hoje vou tratar do assunto de sempre. — alertou Gumball, arrumando o suéter.

Fionna se admirava com aquela coloração única do cabelo do jovem. Se o assunto era o de sempre, não enxergava uma razão para prestar atenção nas palavras dele.

— Por que a Marceline não veio? — interrompeu Jake, o rapaz de cabelo castanho e pele bronzeada. Ele trajava um casaco amarelo de moletom que nunca deixava de usar.

— Gummie, você brigou com ela e a Caroço de novo? — perguntou Catheryne, uma moça baixa e levemente acima do peso.

— Por que vocês não agem como a Fionna? Mas... É estranho as duas faltarem sem avisar. Enfim...

O devaneio, infelizmente, impediu a loira de pronunciar algo.

xxx

Eram cinco horas da tarde quando Fionna voltara para casa. Ela e os três amigos ficaram o dia todo conversando sobre o colégio e jogando videogames. O relógio pendurado dentro da cozinha, que fora feita sob um pequeno e baixo alpendre, começou a tocar, anunciando o crepúsculo, e Marshall ainda não chegara.

A campainha fez barulho, e a jovem saiu aliviada da residência para abrir o portão. A escuridão não havia rompido a claridade, assim o céu de primavera estava oculto por nuvens cinzentas. A loira observava com dificuldade a silhueta esguia que vestia uma calça jeans larga e um casaco preto encapuzado, o qual encobria a face. Antes de acordar, Marshall saíra e, dessa forma, Fionna não sabia as peças que estava utilizando.

Andou sobre o caminho de cascalhos delimitado pelo jardim, aproximando-se da figura. Esta removeu o capuz com as mãos. A franja caiu nos olhos, tornando indistinguível a negritude dos fios de cabelo relativos às íris e pupilas.

— Olá, Fionna. — segurou duas barras do portão, assemelhando-se a um prisioneiro.

— Marceline? — disse atônita.

— Não vai me convidar para entrar? Até parece que está surpresa em me ver. Tem um garoto aí dentro? Não se preocupe. Eu não mordo. Prometo não atrapalhar o momento de vocês. — replicou e, em seguida, rangeu os dentes esbranquiçados.


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