Visionária escrita por Jafs


Capítulo 6
Fantasmas e os condenados




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“O Japão é composto em sua maioria por regiões montanhosas. A montanha mais alta delas é o Monte Fuji. Yuma, você consegue me indicar no mapa deste livro o lugar e a altura dele?”

Em um dia ensolarado, Oriko estava lecionando Yuma no parque. Sempre quando o clima era favorável, as aulas ocorriam ao ar livre, sentadas no chão sobre uma toalha estendida. Regado com chá e tira gostos, lembrava muito um piquenique.

“Hmmm...” A menina, usando um chapéu, deslizava seus dedos trêmulos sobre o desenho das ilhas japonesas no livro. “A-Aqui...” Apesar de ter encontrado o que queria, lhe faltou ar para formular a resposta.

“Yuma?” Oriko pegou um lenço e passou na face molhada de suor da sua protegida.

“Amorzão.”

Oriko dirigiu sua atenção para Kirika, que estava sentada ao lado do cesto de comida.

“Não foi uma boa idéia trazê-la aqui.” Disse Kirika, com sua expressão de completa apreensão.

“Está... tudo bem papa.” Yuma respirava com dificuldade. “Ah... Eu não posso... ficar faltando às aulas.”

“Viu Kirika?” Oriko sorriu. “Ela está sendo mais responsável que você.”

“Oriko, por favor...” Kirika suplicou. Contudo, a única resposta que recebeu foi uma olhar hostil da sua amada. A apreensão fora substituída pela tristeza, enquanto baixava a cabeça.

“Ele tem 3.776 metros de altura e... e...” Yuma tomou um pouco de ar antes de continuar. “...e fica aqui, perto da capital.”

Vendo que Yuma havia retornado aos estudos, Oriko voltou sua atenção ao livro. “Muito bem. Você diz ‘perto’, mas quanto? Consegue me dizer a distância entre a montanha e Tóquio?”

Yuma fez sim com a cabeça, mas antes de tentar responder, ela foi pegar um copo contendo chá. Infelizmente, estava tão fraca que não conseguiu levantá-lo e quase o deixou cair.

“Deixe isso comigo.” Oriko pegou o copo e levou até a boca de Yuma. “Não precisa se esforçar. Se precisar de algo, é só pedir. Agora beba.”

A menina sorvia o líquido lentamente.

“Seus lábios estão secos, eu devia ter prestado mais atenção.” Oriko reparou.

Antes que o copo fosse retirado da sua boca, Yuma começou a tossir violentamente. O copo caiu e o chá acabou respingando sobre o livro.

“Desculpe! Você se afogou?” Oriko se aproximou mais, preocupada.

“GGGGNNNNN!” Contraindo todos os músculos da face e arcando o corpo, Yuma convulsionou e caiu no chão, fazendo chapéu desprender da sua cabeça.

Oriko procurou acudi-la. “Yuma?! Yuma!”

“Oh não!” Kirika ficou de pé. “Eu sabia que isso iria acontecer!”

Quando o corpo de Yuma relaxou, sua mão esquerda abriu-se lentamente. Dentro dela estava uma gema da alma, completamente corrompida. No meio daquela escuridão, uma luz pulsante bailava, como se quisesse procurar por uma saída.

Ao ver aquilo, os olhos de Oriko cresceram. “Kirika, traga os cubos.”

“Oriko...”

Oriko olhou para Kirika.

A garota estava aos prantos. “Não...”

Oriko rangeu os dentes. “Kirika! Traga os cubos, por favor!”

O pedido só fez as lágrimas de Kirika jorrarem com mais intensidade.

“Ki... Ki...” Oriko balançou a cabeça, contraindo os olhos, sem entender. “Traga... por favor.”

Kirika começou a soluçar. “Nós não temos cubos.” E entre cada soluço ela repetia. “Não temos... não temos... não temos...” Até que ela se virou e partiu correndo.

“Kirika!” Oriko estendeu a mão, gritando. “KIRIKAAAAAH!”

“Mama...”

Vendo sua pessoa de maior confiança a abandonando e ouvindo o murmúrio agonizante de Yuma, Oriko sentiu um desespero nauseante.

Não temos cubos.

Isso era uma idéia absurda. Elas haviam deixando em casa? Foi por isso que Kirika correu? Mas por que ela não disse? Elas nunca cometeram erro tão grave.

“Mama...”

Oriko olhou para o cesto. “Eu já volto querida.” Correndo, ela quase mergulhou nele. Revirando, seus olhos ansiavam por qualquer objeto negro que estivesse ali contido. Kirika trazia tantos cubos todos dias... Tinha que ter ao menos um ali. Ela ergueu e virou o cesto, deixando cair tudo sobre a toalha. Ela ficou de quatro, espalhando freneticamente o que havia caído, mas não encontrou nenhum cubo. “Cadê? Cadê!”

“GGGggnnnnaaaAAAAHHHH!”

Com o grito, Oriko retornou até a menina caída. “Eu estou aqui. Ok?”

Yuma contraiu o pescoço e suspirou. “Está... doendo...”

Lágrimas escorreram pela face de Oriko, que logo tratou de removê-las. Yuma precisava dela mais do que nunca, não podia esmorecer.

“Certo. Eu... eu vou tirar você desse sol.” Segurando-a no colo, sem deixar a gema da alma para trás, Oriko foi até a sombra de uma árvore próxima. Por fim, deixou Yuma recostada no tronco. “Está melhor, não está?”

Abrindo os olhos lentamente, Yuma prestou atenção na gema da alma que estava segurando. Contorceu a face, assustada. “Ah... ah... gnnn...”

“Não!” Oriko segurou a cabeça de Yuma e a fez olhar para ela. “Olhe para mim. Somente para mim, ok?”

Com lágrimas vertendo, Yuma balançou a cabeça concordando. “Obrigada... por tudo mama.”

“Não fale assim!” As lágrimas de Oriko voltaram a cair. Ela fez toda força do mundo para segurar o choro, chegando a prender a respiração. Engolindo seco, ela forçou um largo sorriso. “Está tudo bem, tá? Kirika já está vindo com os cubos e vamos cuidar disso.”

Yuma arcou o corpo e escancarou a boca em dor. “Gnnnnnaaaaahhh!”

“Ei!” Oriko chegou o mais perto que podia e envolveu Yuma com o seu corpo. “Fica comigo! Comigo... comigo...”

Yuma já não agüentava mais o fardo que carregava consigo, deixando sua gema rolar e cair no chão. “Mama... me desculpa.”

“O quê?”

“Me... desculpa por fazer você chorar.”

Oriko se afastou de Yuma e segurou o rosto dela. “Não diga asneiras! Isso não é nada, vai ficar tudo bem. Tudo! Tudo!”

“Vai... vai ficar sim. Vamos sempre... estar juntas.” Yuma tentou abrir um sorriso, mas a dor logo a impediu. Sua respiração foi ficando mais curta. “Ah... você me deu ahhh... uma nova vida. Ma... ma...”

“Pare, por favor!” Oriko segurava a face de Yuma com mais firmeza ainda. “Não deve se esforçar.”

“...amo... você...” O corpo de Yuma voltou a tremer por completo. “... ma-mas...”

“Yuma!” Oriko exclamou em tom de apelo.

A menina, fechando os olhos, suspirou. “...você deve corr...”

O som de um cristal se estilhaçando.

O corpo de Yuma, antes se contorcendo, ficara imóvel, flácido.

Oriko franziu a testa, atônita e sem palavras. Agora ela sentia todo o peso da cabeça que a menina não segurava mais. Ela sentia em seus dedos as últimas lágrimas naquela face.

Oriko passou chorar pelas duas. Era a única coisa que podia fazer agora, consumida pela culpa, foi então que ela notou um objeto flutuando próximo delas.

Era uma esfera de adornos metálicos do tamanho de um ovo, com uma pequena cabeça de um gato estilizado em seu topo e um longo pino afiado em sua base. Orbitando aquele objeto, estava inúmeros fragmentos de cristal negro como ébano.

Oriko ficara mesmerizada com aquilo. Isso não é a gema da alma...

Então, os fragmentos começaram entrar dentro da jóia, formando uma espécie de globo negro enjaulado. Logo o globo começou a pulsar uma luz branca e jóia começou a girar cada vez mais rápido. Em seguida mergulhou em direção ao solo gramado e, com o pino, começou a perfurá-lo.

Em um ato de desespero, Oriko pulou na tentativa de impedir aquele objeto de se enterrar. Estatelando-se no chão, a única coisa que suas mãos sentiram foi o buraco que havia sido formado. De dentro dele vinha uma fraca luminescência esverdeada.

Oriko sentiu sua mão arder. Ao olhar para a palma dela, viu um grande corte por onde escorria sangue. Foi então que se deu conta que as lâminas de folha da grama estavam duras como pedra. Olhando envolta, descobriu que tudo estava se petrificando, adquirindo o aspecto de jade.

Incluindo a árvore e o corpo sem vida de Yuma em seu tronco.

“Não!” Oriko voltou até Yuma, tolerando a grama que perfurava a sola dos seus pés como adagas. Apesar de seu esforço, ela só pôde sentir o toque frio da rocha com o formato da menina. Ela ainda, em um ato vão, tentou levantá-la, mas era como se ela estivesse grudada ao chão, era como se Yuma fosse uma com aquele cenário desolador.

O mundo escureceu, o sol, roubado. Já não era mais um parque ao ar livre, mas uma caverna de rochas verdes e bem polidas e, mesmo com tamanha beleza, continha uma atmosfera opressiva.

Contudo, Oriko não prestou atenção em nada disso, apenas em seu sangue escorrendo e adentrando nas rachaduras do que a um momento atrás fora a pele de Yuma. “Ah... AH... AAAAAAAAHHHHHHHH!” Ela gritou com toda a força, como se pudesse fazer seus pulmões subirem pela garganta. Desejou que a vida dela fosse arrancada ali mesmo.

Se suas preces foram ouvidas, ela não sabia, mas o que se sucedeu surpreendeu a garota mágica. Oriko sentiu estar subindo, logo abaixo estava ela mesma, a boca escancarada, ainda clamando em desespero.

Quando atravessou a copa da árvore petrificada, percebeu que estava sem corpo. Continuava a se afastar mais e mais daquela árvore e ela pode ter um vislumbre da extensão daquela caverna, com imensas colunas de jade suportando o teto com inúmeras rochas protuberantes e afiadas.

Até que tudo começou a empalidecer.

A cena de verde predominante fora substituída por uma superfície branca e lisa. Enquanto Oriko se afastava mais daquilo, ela percebeu que estava diante de uma grande pérola. Na parte inferior da pérola estava agarrada uma criatura que só existiria nas imaginações mais sórdidas.

Uma torre de carne disforme e pulsante, entre suas pregas estavam dispostas sem um padrão aparente dezenas de bocas. Cada boca tinha um tamanho e forma diferentes. A única coisa em comum eram suas fileiras de dentes afiadíssimos.

Oriko não conteve seu grito de terror, mas ele fora abafado pelo som do rugido vindo daquelas bocas que abriram em uníssono. No fundo das bocas, uma gama de olhos verdes se abriram, com suas pupilas fixas na garota.

“Está tudo bem.”

Procurando pela origem daquela voz macia e feminina, Oriko olhou a sua volta. O ambiente era um grande domo, composto das mais variadas folhas de jornais. Apesar das folhas serem gigantes, ela não conseguia ler, pois estava escrito em uma linguagem estranha composto por runas. Contudo, as fotos eram claras: aquelas notícias só podiam se referir ao seu pai. Nas imagens, apesar dela conseguir reconhecer as feições, as pessoas estavam com seus olhos arrancados, por onde escorria uma volumosa quantia de sangue que tingia o papel.

“Está tudo bem, Oriko.”

E lá estava, em pleno ar, a garota que a chamava pelo nome, com seu longo vestido branco e asas nas costas. Seu cabelo rosa amarrados com laços brancos combinava com as cinco gemas em seu busto, seu olhar de puro ouro trazia brilho a sua expressão serena.

Yuma morreu.

Como pode estar tudo bem? Por que aquela garota está sorrindo? Não há motivo para sorrir, não há motivo para viver.

Yuma pereceu.

É tudo culpa minha. Era a minha imagem que deveria estar naqueles jornais, não a do meu pai. Eu pequei, eu falhei e aquela garota sabe. Ela sabe o que eu fiz e está aqui para zombar de mim!

Morta.

A visão de Oriko foi completamente tomada por uma luz clara ofuscante. Logo após aquele flash, ela viu a garota de vestido branco, abatida, caindo de encontro ao solo forrado de papel.

Morta!

Um novo rugido e Oriko voltou a olhar para baixo, aonde estava aquela abominação que segurava a grande pérola, agora mais brilhante do que antes. Aquilo lhe trouxe uma sensação familiaridade.

Yuma. Ela começou se aproximar novamente da pérola. Eu preciso ver.

Porém um tremor tirou Oriko daquele estado de transe. As grandes folhas de jornais se debatiam freneticamente e uma grande sombra se projetou sobre a garota.

Quando Oriko encontrou a origem daquela sombra, se deparou com o seu maior medo. Um pesadelo vivo na forma de uma montanha escura, erguendo-se até o teto com os seus longos tentáculos, até que ela se inclinou.

No topo dessa montanha havia uma figura humanóide de longos braços negros e mãos monstruosas, que alcançaram Oriko. Presa, a garota presenciou uma cabeça ‘brotando’ entre aqueles braços. Como piche em um turbilhão, na cabeça surgiu um par de olhos que focaram no que o monstro estava segurando.

Usando os braços e as pernas que não tinha, Oriko desesperadamente tentava afastar aquela face que se aproximava.

“Ei! Para!”

Um buraco se abriu naquela cabeça. Se aquilo seria uma boca, Oriko não saberia dizer, mas de dentro dele saíram novos tentáculos que iam de encontro aos seus olhos.

“Sou eu amorzão!”

Oriko socou e empurrou Kirika com toda a sua força, se levantando do sofá da sala de estar.

“Mama! Mama!”

Ao ouvir a voz de Yuma, Oriko sentiu seu coração bater mais forte. Contudo, antes que pudesse vê-la, uma dor esmagadora dominou seu corpo e tudo começou a girar. Ela se contraiu, soltando um jato de vômito sobre o chão da sala.

“Oriko!”

À beira da inconsciência, ela caiu sobre o próprio vômito. Seu corpo não obedecia, parecia não lhe pertencer. Em sua visão turva, ela notou um objeto redondo e negro rolando a partir da sua mão esquerda.

“A gema! Yuma! Traga os cubos! Rápido!”

Vozes agora estavam distantes. Todos os sentidos estavam concentrados em algo que estava a rasgando por dentro. Oriko não sabia o que era aquilo que parecia estar tateando por debaixo da sua pele, mas não tinha dúvidas de que era algo maligno e que ela deveria lutar contra para não permitir que se libertasse.

“Vai ficar tudo bem, Oriko.”

Não. Não vai ficar.

Oriko se viu novamente sentada sobre o sofá, Kirika segurando seus ombros para que ela não caísse. Sentiu a pressão dentro de seu corpo diminuir, foi nesse momento que ela notou Yuma, que estava esfregando com pressa a superfície da gema da alma com cubos da aflição. Uma nuvem escura dentro da gema mudava de posição, seguindo aonde estivesse o cubo.

Um fedor anunciava que seus sentidos haviam voltado a normalidade. Oriko então olhou para o seu vestido completamente manchado. “Estou... em... um estado deplorável. Desculpe.”

“Amorzão! Por que você fez isso?” Mesmo que Kirika tentasse repreender, seu tom de voz soava mais como um alívio. “Sabe que não pode usar tanta magia para ver o futuro, você acaba perdendo o controle.”

“M-Mas eu preciso... ter mais uma visão.” Falava Oriko enquanto Kirika limpava sua boca com a manga da jaqueta. “Eu preciso encontrar uma...”

Yuma havia terminado de purificar a gema e olhava para ela com apreensão.

“Eu preciso encontrar Kyuubey.” Oriko terminou de dizer, estendendo a mão em direção a menina.

Esquecendo da poça de vômito, Yuma caminhou até aquela mão trêmula. “Está melhor?”

Contraindo a face e os lábios, Oriko acariciou.

“Mama?”

“Obrigada. Ohhh... Obrigada!” Dizendo essas palavras entre suspiros, Oriko deixou escapar um par de lágrimas.

Vendo aquilo, Kirika inquiriu. “Amorzão, você viu alguma coisa?”

Oriko recuou a mão e adquiriu uma expressão mais séria, recuperando sua compostura. “Como eu disse, eu ainda não consegui uma visão.”

“Sim, mas eu digo se foi outra coisa.” Kirika apontou para gema da alma sobre a mesa. “Você podia ter desaparecido, com certeza você deve ter visto algo que...”

“EU NÃO VI NADA!”

O vociferar de Oriko fez as duas garotas em pé recuarem assustadas.

“O que eu vi é um absurdo. Nunca irá acontecer.” A garota no sofá foi baixando voz, percebendo o que cometera. “Então é como se eu não tivesse visto nada.”

Kirika e Yuma se entreolharam.

“Logo vai anoitecer, vocês devem se preparar para se encontrar com as outras duas garotas.” Procurando mudar de assunto, Oriko se levantou do sofá. “Eu ficarei em casa. Eu... não estou em condições de ir hoje.”

“É claro que você não está.” Kirika voltou a olhar para o vestido manchado. “E é por isso que nós devemos ficar contigo, amorzão.”

“Não seria bom. Eu não quero que as duas fiquem mais preocupadas ainda. Vocês precisam ir para dar o apoio que for necessário.” Oriko olhou nos fundos dos olhos da Kirika. [Preste atenção. Hordas de demônios, provenientes de cidades vizinhas, irão invadir Mitakihara pelo sul hoje à noite. Sugira para Mami para que procurem por demônios na região norte, sem deixar que ela suspeite.]

Recebendo a mensagem telepática, Kirika gaguejou. “O-Ok então...”

“Eu não quero que a gente se separe!” Yuma reclamou. “Como vou protegê-la assim?”

“Por que tanta preocupação? Eu estarei em casa.” Oriko abriu um sorriso. “E eu sei também que você estará segura com Kirika, além de Mami-san e Sakura-san. Fique tranqüila.”

“Elas vão estranhar a sua ausência, o que eu devo dizer a elas?” Kirika questionou.

“Peça as devidas desculpas e informe que eu tenho algumas questões burocráticas referentes a Shirome que preciso resolver.” Disse Oriko.

Yuma ficou cabisbaixa. “Mama... não acha melhor parar de mentir? Elas confiam em nós, você não precisa mais esconder o seu poder.”

Oriko respondeu. “Isso é algo muito sensível. Para ser franca, nossa situação é bastante delicada e eu não posso arriscar em plantar uma semente de dúvida na nossa aliança. Yuma, eu prometo que quando isso tudo acabar eu contarei para elas.”

“Amorzããão.” Kirika fez uma expressão repreendedora. “Não tente forçar sua clarividência enquanto estivermos ausentes, hum?”

Oriko se aproximou de Kirika e segurou suas mãos. “Ah. O que eu seria sem você. Como eu gostaria de abraçá-la agora.”

Kirika fez exatamente isso.

“Ki... Kirika...” Oriko retribuiu. “Agora você vai ter que tomar banho e trocar suas roupas.”

“Kukuahahaa... Eu daria quantos abraços fossem necessários.” Kirika passou mão naqueles cabelos cor de palha. “Desde que você fique bem.”

Oriko repousou o queixo sobre ombro da sua companheira. “Eu prometo.”

/人 ‿‿ 人\

“Desculpe Kirika.”

A noite já havia caído sobre a mansão dos Mikunis e, no mesmo lugar que ela fez sua promessa, Oriko agora estava tomada pela culpa. Sozinha, ela colocou sua gema sobre a mesa, com inúmeros cubos em sua volta.

Suspirou. “Mas eu preciso fazer isso. O mundo depende disso, depende de mim... eu preciso encontrar uma forma...”

Ela então se sentou no mesmo sofá, com o mesmo intento e determinação.

Para proteger...

Contudo, antes que pudesse se concentrar, as luzes se apagaram.

“Agora mais isso.” Com os olhos ainda se acostumando com a escuridão, Oriko observava a fraca luminescência que a sua gema da alma emitia. O silêncio era quebrado com o som da sua respiração e de um distante e abafado farfalhar da folhagem do jardim.

Eu não preciso de luz. Ela fechou os olhos.

Um longo som de estalo de madeira superou todos os outros.

Oriko se levantou, um tanto assustada. Pela direção, devia ter vindo do hall. Apesar do presente estado do assoalho de madeira, um som dessa envergadura seria muito incomum, exceto...

Novamente o som ocorreu.

Oriko tinha a absoluta certeza que era um movimento pela casa. Ela pegou sua gema e em um flash de luz prateado, ela colocou suas vestimentas mágicas. Então ela conjurou uma esfera, que tratou de iluminar o ambiente com uma luz azulada. Lentamente, ela caminhou em direção porta e a abriu. Ao fazer isso, o som ficou mais claro.

Eram os passos de uma pessoa.

“Quem está aí?” Oriko fez gestos com os dedos, buscando criar novas esferas para se defender.

Contudo os passos continuaram, como se a pessoa não tivesse ouvido.

Oriko segurou a respiração, ansiosa. A pessoa com certeza já havia notado a luminosidade.

Os passos ficaram mais distantes e então a pessoa apareceu, caminhando em direção o centro do hall.

Oriko ficou boquiaberta, mesmo aquela pessoa estando de costas, ela sempre reconheceria. Aquele cabelo claro, com um corte que iam até a altura dos ombros, era inconfundível. “Mãe...”

“Mama!”

Uma voz alegre ecoou. Era uma pequena menina, com seu cabelo cor de palha, ainda um tanto curto, preso por uma chuca.

Yurako Mikuni segurou sua filha que veio de encontro a ela. “Ah. Minha pequena Oriko, como foi o passeio no parque?”

Testemunhando aquela cena, Oriko adentrou-se no hall com a sua esfera emitindo luz. Quando se deu conta, notou que não aparentava ser mais necessário, pois o hall estava bem iluminado. Em parte graças ao assoalho bem encerado, assim como a escadaria. Os papéis de paredes revelavam suas belas misturas de cores vivas, fazendo acompanhamento para as obras de arte dependuradas.

“Ela deu uma volta inteira nele.” A voz masculina pertencia a um empregado bem vestido. “Para a idade dela, ela corre muito rápido.”

“Minha filha querendo se tornar uma atleta então...”

Oriko se aproximava cada vez mais da sua mãe, de seu passado. Ao longo do caminho, outros empregados apareceram, ocupados com as suas funções em deixar tudo no lugar e bem cuidado.

Sorriu. Eram tempos felizes, que estavam novamente ao alcance de suas mãos. Porém, ao tentar encostar em sua mãe, ela sentiu o frio em seus dedos.

O hall retornou a escuridão e o que Oriko sentira fora apenas uma superfície lisa, sem vida, de sua esfera flutuante. Novamente sua única companhia era o mofo e o abandono. Com o escândalo, os empregados foram embora. Ainda que fosse possível honrar os pagamentos, ninguém ousaria arriscar sua honra trabalhando em prol daquele sobrenome.

Novas vozes e passos.

Pelo canto do olho, Oriko notou a luz que vinha da entrada de uma das salas que ficava no corredor principal de uma das alas da mansão. Ela se dirigiu até lá, consciente de que era a sala para visitas, no qual seu pai recebia com alegria eventuais convidados.

Mas aquele não era um momento alegre.

De frente para a entrada, Oriko viu todas aquelas pessoas lá dentro, com roupas pretas. As feições das pessoas eram de pesar e tristeza.

“Minhas condolências pela perda da sua esposa.”

Seu pai, Hisaomi Mikuni, apenas acenava com a cabeça em silêncio. Era um homem altivo, de sorriso espontâneo e carismático, mas que naquele momento não estava presente em sua face.

Ao lado dele estava ela mesma, ainda muito jovem, mas que já havia aprendido a segurar as lágrimas.

Entre os suspiros e lamentações das pessoas ali presentes, também haviam cochichos, dos quais Oriko esteve bem atenta.

“Veja como a filha do seu irmão está se comportando. Será que ela não sente nada por Yurako por ela não ser a mãe biológica?”

Kimihide Mikuni, ajeitando seus óculos, respondeu para sua esposa com um breve sorriso. “Ela carrega o nosso sobrenome e está tentando se comportar como tal. Se não for esse o caso, ela então é uma ingrata e isso só facilitaria.” Chegando mais próximo do ouvido da sua esposa, ele continuou. “Ela está entrando em uma idade difícil. Sem Yurako e meu irmão tão ocupado, ela logo vai cometer alguns deslizes. Será nesse momento que poderei me oferecer como tutor dela. Meu irmão terá uma dívida comigo e eu poderei influenciá-la ao meu favor.”

Oriko logo aprendeu que viver sob aquele teto seria viver envolto de conchavos e interesses. Ter o sobrenome Mikuni trazia um grande fardo, ainda mais para alguém que não tinha o mesmo sangue.

A sala de visitas escureceu até o ponto de estar somente sob luminescência azulada da sua esfera. O silêncio voltara fazer companhia de seus pensamentos.

Tanto para o orgulho de seus pais que estavam no céu, quanto para agradecer pelo que Yurako e Hisaomi fizeram por ela, tinha que provar que merecia aquele sobrenome.

Mais vozes, agora oriundas do fim do corredor.

Oriko voltou a caminhar, acompanhada de sua leal esfera. Se aproximando mais do seu destino, as vozes passavam por ela com sua mensagem cristalina.

“Tal pai, tal filha.”

“Hisaomi Mikuni, sua filha é realmente a sua mais valiosa jóia desta casa.”

“Orgulho da família.”

“A filha que todos gostariam de ter.”

Buscar sempre ser a melhor aluna de Shirome e ajudar seu pai em seu trabalho. Tudo isso exigia uma rotina extenuante, algo que muitos adultos não suportariam, mas perseverar era a única opção.

As vozes se calaram ao som de um piano. A sala logo a frente se iluminou.

Oriko sorriu ao se lembrar daquele lugar, a sala de jogos. Lá estava seu pai, em uma mesa de pôquer, jogando com outros homens. De políticos a grandes empresários, alguns deles tinham mais influência e poder que toda a família Mikuni junta. Bebidas e grandes quantias de dinheiro fazendo companhia às cartas.

Então ela se aproximou dela mesma, que estava em frente ao piano, entretendo aqueles homens com sua melodia.

Seu pai dizia que você descobria mais sobre uma pessoa em uma partida do que em uma vida inteira ao lado dela. Oriko estava consciente que para ele alcançar seu maior objetivo, a paz e a prosperidade em Mitakihara, teria que entrar no jogo deles. Para fazer a diferença, somente seria possível por dentro.

Diferente do pôquer, no entanto, na política cada carta tem seu preço.

A esfera pousou suavemente sobre o corpo do piano, iluminando a sala escura e vazia. Ela foi até a janela, afastou as cortinas e a abriu. O vento invadiu o ambiente, esvoaçando a larga saia de seu vestido e quase derrubando a sua mitra.

Lá fora estava quase tão escuro quanto ali dentro, talvez devido à sombra projetada da varanda que ficava no escritório do seu pai, no segundo andar. Sobre os altos muros não era possível notar qualquer luz proveniente da vizinhança e o céu estava nublado, pesado. Em meio as suas nuvens negras ocorriam incidentais flashes luminosos. Talvez aquilo fosse um aviso ou até mesmo uma expressão de revolta da natureza diante do que estava acontecendo.

Com esse clima, não há o porquê de questionar o motivo pelo qual a luz foi cortada. Oriko saiu da sala, já tendo mente aonde iria agora.

Se fora uma armação ou um erro de seu pai, ela nunca descobriu. Um dia a polícia chegou à mansão com uma intimação para depor, no qual seu pai recebeu sem surpresa, pois os jornais já anunciavam o ‘novo grande furo’ da reportagem investigativa. Um dossiê de documentos, com nomes e números, onde ‘Mikuni’ era a palavra mais recorrente.

A escada que dava acesso ao segundo andar no fim da ala parecia bem mais estreita em meio aquele breu. A cada degrau que Oriko vencia, tomando o devido cuidado para não tropeçar na sua própria saia, a madeira rangia e seus pensamentos fluíam. Pai... por que você fez isso?

Seus aliados, até mesmo seu irmão, se afastaram, exceto ela. Porém, Hisaomi não buscou sua única filha. Entregou-se à bebida, até a invasão da polícia levar tudo, e então ao isolamento e desespero.

Já no segundo andar, Oriko parou na frente da primeira porta. Quando ia colocar a mão na maçaneta, parou e retraiu a mesma. Puxando a manga, ela usou a outra mão para sentir o pulso. Seu sangue corria acelerado.

O que significa esse sobrenome agora?

Respirou fundo e abriu a porta. Adentrando-se no escritório de seu pai, ela se encaminhou até a escrivaninha e atrás dela lá estava ele.

Sentado e de cabeça baixa, Hisaomi Mikuni tinha envolta de seu pescoço um cinto, que estava amarrado na maçaneta da porta que dava acesso a varanda. Sua calça manchada com fezes e urina.

Por que você não lutou até o fim? Pelo bem de Mitakihara e desse país?

Contorcendo a face e rangendo os dentes, Oriko não escondia sua revolta.

Mentiroso! Mentiroso! MENTIROSO!

A morte foi considerado como um agravante pela justiça, uma admissão de culpa. Tudo o que eles tinham, o mundo que Oriko conhecia, caiu em desgraça. Ninguém da família quis ficar com a guarda dela, muito menos seu tio que ficou por obrigação, já que ela era uma filha ‘ilegítima’ de um homem sem valor. Ainda que Kimihide tivesse herdado a mansão, ele nunca mais pôs os pés ali. Toda a reputação que ela construiu em Shirome ao longo dos anos ruiu como um castelo de areia sob as ondas. Sozinha, ela passou a ser atormentada por esses espectros do passado.

Seu pai não estava mais ali, em seu lugar, através do vidro da porta, olhos vermelhos brilhantes estavam focados nela.

Chegou um dia que ela entendeu que aqueles não eram os fantasmas. Era ela mesma, a jóia mais valiosa da casa, que jamais abandonaria aquele local.

Pai, seu sonho não morreu e com ele uma nova família irá se erguer.

Oriko abriu a porta da varanda, ela sabia que aquele que a aguardava era bem real.

Sobre parapeito, uma criatura com rala pelagem branca, com suas longas orelhas e cauda que balançavam ao sabor do vento, a cumprimentou. [Oriko Mikuni.]

Se aproximando mais, Oriko deu sua resposta. “A quem devo a honra? Incubator. Acredito eu que devo ser a única garota mágica no mundo que esteja recebendo sua visita.”

Kyuubey ergueu seu par de orelhas pontudas. [Você não me chamava assim.]

“Eu descobri eventualmente.” Oriko sorriu. “E considerando as circunstâncias, você é merecedor desse título.”

[Descobriu eventualmente? Porventura não teria sido através de uma visão?]

Oriko calou-se.

Kyuubey fechou os olhos. [Eu acompanhei você e Kirika durante a disputa por Kazamino contra Kyouko. A forma como vocês sempre sabiam aonde os demônios iriam aparecer levantaram as minhas suspeitas. A sua reação agora apenas confirma ainda mais.]

Ainda que Kyuubey não apresentasse nenhuma expressão em sua face, Oriko podia jurar que por detrás daquele focinho havia um sorriso. “Então esse é o motivo da visita?”

[Em parte.] Kyuubey se espreguiçou sobre o parapeito. [Na verdade o que me trouxe aqui foi a forma como você se aproximou de Mami e Kyouko. Seus métodos para ganhar a confiança delas foram eficazes, mas não encontrei motivos para tal atitude. Considerando as variantes no grau da sua capacidade precognitiva, eu me pergunto quais são as suas intenções.]

“Minhas intenções. Ah sim...” Após falar com suavidade aquelas palavras, Oriko contraiu sua face, seus lábios se estremeceram. “Liberte Madoka Kaname!”

Kyuubey piscou os olhos algumas vezes antes de baixar a cabeça. [Você sabe mais do que eu esperava.]

“Incubator!” Oriko exasperou. “Você tem que parar o que está fazendo enquanto ainda há tempo!”

[Eu não posso.] O olhar fixo de Kyuubey novamente estava sobre Oriko. [O universo está em grande perigo.]

“Grande perigo?!” Oriko expressou, incrédula. “Grande perigo é esse seu... experimento que destruirá tudo.”

[Você enxergou isso? Que ele irá falhar?] A ponta da cauda da criatura apontou para Oriko. [Diga-me o que você viu, talvez possa ajudar...]

Oriko colocou a mão em sua têmpora. Ela balançou a cabeça, com a face tensa. “Não. Não... Nós já passamos dessa fase. Não é uma questão de falha ou sucesso. Não importa o que aconteça, nós todos estaremos condenados se você continuar!”

Kyuubey começou a caminhar pelo parapeito de um lado para o outro, ponderando. [Uhum. Oriko, você não é a primeira garota que eu conheci com tal talento. Assim como eu fiz para algumas delas, eu farei uma pergunta para você.]

Oriko respirava profundamente, tomada pela inquietude, mas decidiu ouvir atentamente.

[Você enxerga o futuro e então decide mudá-lo. Se o futuro que você viu não acontece, não significa que ele era falso? Nesse caso, como provaria que todas as suas ações não foram motivadas por uma mera ilusão? Delírio?]

“Essa é a pergunta?” Oriko ergueu as sobrancelhas. “É muito fácil de respondê-la. O futuro que eu vejo é real e acontecerá, minha intervenção é capaz de alterá-lo justamente porque isso é parte de meu dom.”

[Ah... É sempre a mesma resposta.] Kyuubey acenou com a cabeça como se estivesse concordando consigo próprio. [Sempre acreditam que são as únicas capazes de alterar o curso dos eventos. Não é isso o que humanos chamam de soberba?]

“CHEGA DE ASNEIRAS!” Oriko arregalou os olhos com uma expressão ameaçadora. “Por que quer insistir? Não entende que estou te alertando? Você está arriscando sua própria existência, Incubator.”

[Estou consciente disso, mas vale uma chance de se alcançar a quota em tempo do que nenhuma.]

“Quota?” Perguntou Oriko, confusa.

Kyuubey pendeu a cabeça para lado, examinando Oriko por um breve momento. [Você não sabia? Então superestimei seus conhecimentos a respeito.]

“Me responda! Que quota?”

Kyuubey olhou para o céu escuro e nublado. [Assim como os integrantes da sua espécie definham e perecem, o mesmo está acontecendo com o universo. Já ouviu falar da entropia?]

Oriko não acreditava no que estava ouvindo. Eles iriam discutir sobre física? “A segunda lei da termodinâmica. Descreve a desordem de um sistema ou, em outras palavras, a tendência que ele tem de se transformar em um estado definido.”

[Muito bem, Oriko. A entropia é crucial para a nossa existência. Agora mesmo, cada ser vivo está se utilizando da entropia, transformando o que há em seu entorno em prol do seu próprio equilíbrio. Infelizmente esses processos são irreversíveis, salvo quando há o dispêndio de energia, que é limitada.]

Oriko concordou. “Eu sei sobre isso. Existe a teoria que o universo eventualmente irá se extinguir, mas isso levaria muito tempo para acontecer.”

[De onde provém essa informação?] Kyuubey voltou a olhar para Oriko. [Ela está correta?]

Sem palavras, a garota desviou o olhar.

[É muito difícil conjecturar quando seu ponto de vista do universo é um mero grão pálido azul. Apenas aqueles que têm uma visão ampla conseguem mensurar a entropia como uma contagem regressiva. Um relógio que deve ser atrasado.]

Quando Kyuubey terminou de afirmar, Oriko notou que ele não estava visando os olhos dela e sim algo mais abaixo. Ela levou a mão até a sua gema da alma e sorriu. “Ah... Eu nunca acreditei que você fizesse esses contratos por caridade, mas nunca descobri aonde você ganhava com tudo isso.”

[Em nossa busca pela reversão da entropia, descobrimos uma fonte de energia que não seguia essa lei. Ela é gerada em criaturas conscientes e tem um aspecto caótico, imprevisível, instável. Infelizmente, devido a essas características, ela acaba sendo muito escassa, pois uma criatura com essa energia tem uma vida curta.] Kyuubey apontou sua pata para Oriko. [Foi muito interessante descobrir que nesse planeta havia uma raça capaz de gerar em grande quantidade essa energia e ainda sobreviver. Até conseguiam conviver com ela. Vocês a chamam de ‘Emoção’.]

Oriko deslizou os dedos sobre a sua gema.

[Vocês até classificaram essa energia para nós. ‘Raiva’, ‘Alegria’, ‘Desespero’, ‘Esperança’... isso tudo é considerado como parte de vocês, como sua identidade, ou, como nomearam, sua ‘Alma’.]

Oriko afastou a mão da sua gema, como se tivesse levado um choque. “Há quanto tempo está fazendo isso? Incubator.”

[Considerando os históricos climáticos, foi logo após do que vocês consideram agora como a última era glacial. Nessa época sua raça já era atormentada por demônios. Aparentemente, essas criaturas são um efeito colateral da abundância dessa energia que vocês têm. Nós observamos que os grupos de humanos que tentavam se estabelecer em um lugar eram dizimados pela crescente concentração de demônios.] Com a pata traseira, Kyuubey coçou a cabeça. [Foi durante isso que descobrimos um grande potencial nas fêmeas mais jovens para os nossos experimentos. Era ainda maior naquela época, pois praticamente todas já tinham filhos. Os laços maternais com as proles trazem uma grande carga emocional. Hoje em dia não é tão comum, mas isso é irrelevante.]

Cerrando os punhos, Oriko se segurou para não matar aquela criatura naquele momento, pois precisava saber mais.

[Nossos experimentos revelaram que desejos são excelentes catalisadores, de onde poderíamos extrair essa energia e estocá-la em gemas. O que fora inesperado é que vocês fossem capazes de manipular a energia após isso e então se tornavam capazes de lidar com os demônios.]

“E assim nasceram as ‘garotas mágicas’.” Oriko complementou.

[Sim. Graças a isso, a sua raça pôde parar com a vida de nômades e construir as primeiras aldeias, desenvolver a agricultura, assim como a tecnologia.] Kyuubey se virou, observando da varanda a cidade de Mitakihara, tanto a parte antiga que estava às escuras quanto à parte moderna, com os seus arranha-céus iluminados. [Sua população cresceu e se espalhou pelo planeta e assim pudemos obter ainda mais energia. Nós chegamos a considerar esse sistema que estabelecemos como uma simbiose entre nossas raças. No entanto, essa energia, ainda que fascinante, nós concluímos que ela é realmente perigosa demais. Por isso nós vamos terminar.]

“Terminar...?” Oriko piscou repetidas vezes enquanto aquela informação se estabelecia em sua mente. “Com o sistema de garotas mágicas?”

[Exatamente. O que estamos fazendo deve obter uma energia que até supera a quota estimada considerando os fatores que poderiam causar a extinção de vocês. É o que precisamos para salvar o universo por ora e então teremos tempo para explorar outra solução.]

“Mas... mas...” Oriko procurava as palavras. “Os demônios vão continuar a surgir. N-Nós precisamos de vocês, precisamos de mais garotas mágicas para... para...”

Kyuubey, ainda de costas para Oriko e em silêncio, apenas balançava sua longa cauda.

“Você... vai nos deixar para morrer...” A realização de Oriko veio acompanhada de um arrepio e um embrulho no estômago.

[Os demônios são um subproduto da sua raça. Não temos nenhuma responsabilidade para com isso.] Kyuubey virou a cabeça. [Apesar de que a população humana sofrerá uma redução significativa, com o nível tecnológico alcançado atualmente, as projeções de que vocês não serão extintos até o próximo ciclo climático desse planeta são bem favoráveis.]

“Eu não irei permitir.” Disse Oriko em tom ameaçador.

[Vocês sempre são incompreensíveis. Onde existe a escolha entre o universo e a vida de alguns que morreriam daqui a meras décadas de qualquer forma?]

“Eu vou encontrar uma maneira...”

[Isso significa que nos veremos em breve. Essas são as suas atuais intenções.] Kyuubey voltou a olhar em direção a cidade. [Enquanto não chega a hora, reflita. Essa é a sua única chance de proteger esse mundo. Até, Oriko Mikuni.] E então ele saltou do parapeito em direção a muralha de pedra da mansão.

Contudo, antes que ele pudesse pousar, sua visão periférica alertou tardiamente sobre um objeto vindo em grande velocidade, a partir de uma janela aberta no primeiro andar.

/人 ‿‿ 人\

Concreto úmido.

Finalmente.

Oriko estava novamente naquela gigantesca galeria e olhou para o túnel que dava acesso aquele lugar. A neblina continuava presente. Depois voltou sua atenção para a sua contraparte do futuro, que observava o prisma menor orbitando o maior com aquela garota dentro.

Então o prisma menor escureceu e se quebrou, liberando a abominação negra que se agarrou ao prisma maior.

Um Kyuubey estava ao lado da sua contraparte, acompanhando aquele evento enquanto balançava a cauda.

A contraparte então começou a falar. “Espero que você esteja vendo isso.”

Kyuubey mexeu suas orelhas, mas aquelas palavras não eram para ele.

A contraparte continuou. “Se isso não der certo, tente novamente, nunca desista. Esse é o nosso sangue, o nosso sobrenome.”

Oriko, mesmo que a outra não pudesse ver, acenou com a cabeça concordando.

Se aquele monstro conseguir tomar posse de Madoka, pereceremos.

A criatura era absorvida por aquele globo negro, perdendo massa e tamanho.

Se o Incubator obter sucesso em seu intento, morreremos.

A Oriko do futuro começou a caminhar em direção ao prisma, com Kyuubey a seguindo. Ela parou aonde estava localizado os estilhaços do prisma menor. Se abaixou e começou a revirar aquilo.

Oriko então viu sua contraparte se levantar, segurando um objeto entre as pontas de seus dedos. Pela distância, ela conseguiu discernir que era uma pequena jóia de ébano, que tinha um formato de um animal, um réptil, com uma gema violeta quebrada em sua cauda.

Aquela monstruosidade começava a perder sua luta contra absorção que estava transcorrendo. Minutos se passaram e ela era apenas metade do que já fora. Seus tentáculos deslizavam em frenesi sobre a superfície do prisma.

A atenção da contraparte se dividia entre aquilo e a jóia em sua mão, até que ela a esmagou e arremessou para longe. “Incubator!”

Vários Kyuubeys viraram suas cabeças em direção a garota.

“Sua ganância termina aqui.” Fazendo gestos com as mãos, ela criou várias esferas e prontamente as lançou contra o prisma.

Os locais dos impactos ficaram marcados com rachaduras.

Não fora forte o bastante. Oriko só podia torcer por ela mesma.

A contraparte abriu os braços, trazendo as esferas de volta para ela para uma nova investida. Foi quando um Kyuubey pulou e se agarrou a um deles.

Oriko ficou aterrorizada e ela sabia que a sua contraparte do futuro também devia estar sentindo mesmo. Dezenas, centenas, milhares de Kyuubeys, como formigas defendendo seu ninho, partiram em direção da garota e suas esferas.

Com um tapa, a contraparte conseguiu se desfazer do Kyuubey em seu braço, mas logo outros já estavam escalando sua saia. “Eu não irei permitir!” As esferas passavam com velocidade, despedaçando os Kyuubeys que estavam agarrados a ela, manchando suas vestimentas brancas com o vermelho da carne deles. “Ugh!” Aquilo não bastava, alguns Kyuubeys estavam puxando o seu cabelo e a cabeça para trás, fazendo a mitra cair. Pelo canto do olho, ela viu Kyuubeys escalando seu peito, cada vez mais próximos da sua gema da alma.

Oriko testemunhou a atitude desesperadora da sua contraparte: com gestos com os dedos, ela fez as suas esferas voarem em direção contra ela e os Kyuubeys. “Ahg! AAhg! Uh!” Os Kyuubeys próximo foram esmagados, assim como os ossos da garota. Caindo no chão, ensangüentada, ela ergueu o braço que não estava quebrado com o punho cerrado. As esferas obedeceram ao comando e começaram a orbitar envolta dela em grande velocidade.

Oriko conseguia ouvir o zunido daquele ‘globo da morte’. Mesmo assim alguns Kyuubeys ainda tentaram atravessar para então serem transformados em uma nuvem vermelha.

Tossindo sangue, sua contraparte abriu a mão e o globo começou se expandir, com mais e mais esferas sendo geradas. Isso lhe deu tempo e o espaço que precisava para poder priorizar seu objetivo.

A criatura negra continuava sua luta, com alguns tentáculos envoltos na parte superior do prisma.

Usando o braço para apontar em direção ao alvo, a Oriko do futuro ordenou suas esferas para atingirem o prisma em uma seqüência ininterrupta.

Até ele se quebrar.

Com tal evento, os Kyuubeys se dispersaram. O plano deles havia chegado ao seu fim, sem o absoluto sucesso.

Juntamente com os grandes pedaços de cristal, a garota de longos cabelos rosas em seu vestido de puro branco veio ao chão.

Oriko viu que, logo depois, o que havia restado daquela abominação alcançou a garota e se fundiu a ela.

A Oriko do futuro, não suportando mais, deixou as esferas caírem no chão. Usando cubos da aflição que tinha consigo, ela purificou sua gema, porém a dimensão de seus ferimentos era grande demais e não se curariam em breve. Para chegar até a outra garota, ela se arrastou pelo chão da galeria, entre os pedaços de Kyuubeys ali presentes. “Madoka... Madoka...”

“UUGH! Aghhh...” Madoka se contorcia, rangendo os dentes.

Eu sei que você consegue resistir. Vamos! Oriko se aproximou das duas.

Sua contraparte segurou a cabeça da garota que estava em convulsão. “Madoka... por favor...” Disse em tom de súplica.

As convulsões perderam força, dando lugar para uma respiração rápida e curta. Oriko notou que as cinco gemas que estavam no peito da Madoka não estavam pretos e sim um rosa escuro.

Lentamente, a garota abriu seus olhos. Oriko ficou boquiaberta ao ver aquelas irises rosas.

Madoka olhava de um lado para o outro, confusa, como se tivesse acabado de acordar de um longo sono.

“Madoka Kaname-san.” Sua contraparte olhou para si mesma, notando todo aquele sangue. “Não se assuste. Você está segura agora.”

Estabelecendo a consciência, Madoka se encontrou com os olhos verde oliva da Oriko do futuro. Erguendo as sobrancelhas, ela abriu um sorriso, acompanhado de um suspiro de alívio.

“Obrigada...”


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: Últimos ritos



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