Visionária escrita por Jafs


Capítulo 3
Fé cega




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“SUA MALDITA!”

Kyouko golpeou com a sua lança.

Oriko se levantou de onde estava sentada. Fora o suficiente para que a gema em sua gola não fosse atingida, mas não poderia dizer o mesmo para o seu peito. Ela sentiu a mistura da dor com a do metal frio em suas entranhas, o sangue subindo pela sua garganta e a afogando.

“Nossa! Está muito ruim?” Perguntou Kirika desesperada.

Oriko estava confusa. Ela estava sentada junta com a Kirika, próxima a uma mesa branca no meio de um jardim particular atrás de uma mansão de pedra, com muros altos para evitar os curiosos. Além disso, ela não estava vestindo suas roupas de garota mágica.

Então ela sentiu que estava segurando algo, uma xícara, preenchida de sangue. Assustada, ela a soltou, deixando rolar pela mesa e derramar todo o conteúdo.

“Amorzão?!” Kirika se levantou da cadeira. “Está tudo bem? Eu nunca mais faço chá vermelho.”

“Não é o chá. É que eu... estou um pouco tensa.” Oriko ficou passando a mão na testa. “Eu acho que é ansiedade sobre hoje à noite.”

“Hmmm...” Kirika pegou a xícara que Oriko havia deixado cair. “Não precisa mentir só porque eu fiz esse chá para ser uma surpresa. Você parecia que estava engasgando, se não estiver bom...”

“Ele está ótimo.” Oriko sorriu. “Nós duas tivemos a mesma idéia de fazer uma surpresa. O que achou do meu cheesecake?”

“O melhor do mundo todo!” Kirika respondeu prontamente.

“Eu achei que ficou mole demais.” Oriko ficou olhando para o doce em seu prato. “Será que eu errei em alguma coisa ou precisava ficar mais tempo no refrigerador ou...” Ela parou ao sentir mãos em seus ombros. “Hã?”

“É, você está bem tensa.” Kirika falou no ouvido da Oriko. “Acho que uma boa massagem deve resolver.”

Oriko se ajeitou na cadeira. “Oh. Por favor, continue.”

Kirika começou a apertar os ombros e usando os dedões para fazer massagens circulares na nuca. “Assim está bom? Não estou fazendo muita força?”

“O problema não está na força e sim no local.” Comentou Oriko, que pendeu a cabeça para o lado. “Meu pescoço me incomoda.”

“Ah... Kukuku...” Kirika ficou corada. “Eu terei que examinar isso bem de perto.”

“Uhummm...” Oriko apenas fechou os olhos, sorrindo.

Kirika chegou bem próxima do pescoço da Oriko e cochichou. “Parece ser bem grave, isso vai precisar de um tratamento especial. O que acha?”

Ainda com os olhos fechados, Oriko respondeu. “Yuma.”

“Oi?” Kirika ficou confusa, então ela olhou de relance para porta de correr que dava acesso ao jardim.

Yuma estava observando as duas, bem sorridente.

“Ah!” Kirika se afastou da Oriko e começou a coçar a cabeça. “Hahaha... Você me assustou, amorzinho.”

“Desculpa papa, é que mama queria me ver como eu ia ficar nesse vestido.” Yuma balançava a saia preta, que acompanhava uma camisa branca de manga comprida.

Oriko se levantou e se aproximou da Yuma. “Ficou muito bom. Eu vesti isso quando tinha a sua idade, é uma roupa bem trabalhada.” Ela então esticou o braço da menina. “Seus são mais curtos, eu tenho que fazer uma bainha nessa manga.”

“Ahhh...” Yuma ficou decepcionada. “Então eu não vou poder usar ela na nossa aula de hoje no parque?”

“Ah sim.” Oriko não queria deixar Yuma mais triste, mas não havia outra opção. “Hoje não vai haver aula, tenho um compromisso.”

“Compromisso?” Kirika se aproximou das duas.

“Eu irei sair sozinha.”

“Por quê?” Kirika estava perplexa. “Você teve uma visão?”

“Eu tive sim.” Oriko sorriu.

“Amorzão, não é melhor que eu vá com você?”

“É melhor que você fique aqui com Yuma.”

“Mama!” Yuma abraçou Oriko como pôde.

“Ahhh... Não se preocupem. Eu devo estar de volta antes do almoço.” Oriko, com as mãos trêmulas, retribuiu o abraço. “Aliás, o que vai acontecer poderá ser bom para nós.”

/人 ‿‿ 人\

“Bom dia!” Mami abriu as cortinas.

A luz da manhã invadiu o quarto e banhou a garota que estava na cama. “Hmmmm...”

“Vamos Kyouko!” Mami ficou esperando. “Acorde. Nós temos que limpar o apartamento.”

Kyouko estava grogue. “Hoje... é... domingo.”

“Sim. Era para nós ter feito isso ontem, mas tivemos visitas, esqueceu?” Mami colocou as mãos na cintura. “E então?”

“Hmmmm...” Kyouko continuava imóvel na cama.

Até ela ouvir o som de uma chicotada.

“Ei?!” Kyouko abriu os olhos. “Mami?!”

Mami, sorridente, tinha um laço esticado em suas mãos. “Não vai acordar?”

“Opa! Opa! Já acordei!” Kyouko chutou o cobertor e pulou da cama.

Mami deu mais uma chicotada com o laço.

Mesmo sem ser atingida, Kyouko colocou a mão na bunda. “Aie! Aie! Aie!” E se trancafiou no banheiro.

O laço amarelo retornara para o anel da Mami. “Não se esqueça de tirar a roupa de cama antes do café da manhã.”

Enquanto arrumava a mesa de vidro para fazer a refeição, Mami observou Kyouko, ainda de pijama, levar a roupa de cama até a lavanderia.

Na volta, a ruiva perguntou. “Ei. Você viu onde estava o meu suéter?”

Mami franziu a testa. “Ora! Você acabou de ir lavanderia, não viu que estava lá?”

“Droga. Não consigo enxergar nada.” Kyouko esfregava os olhos.

Mami colocava a fruteira sobre a mesa. “Se não ficasse até de madrugada fora, não estaria reclamando.”

“Tch... Você é que me acordou cedo.” Replicou Kyouko enquanto se dirigia para o quarto.

Mami já estava sentada à mesa quando viu Kyouko retornar, usando uma jaqueta verde com gorro.

A loira apontou para garrafa térmica sobre a mesa. “Eu preparei um café bem forte para deixar você mais alerta.”

“Valeu.” Kyouko se sentou. “E então? Quando aquelas três foram embora?”

“Quando começou anoitecer.” Mami cortava uma fatia de pão. “E já deixo avisada que elas vão nos ajudar hoje à noite a limpar o local onde estocamos os cubos.”

“Mami. Mami. Mami...” Kyouko balançou a cabeça. “Elas são garotas mágicas experientes, não suas mais novas kouhais.”

Mami parou o que estava fazendo e, sem olhar para Kyouko, falou. “Elas me contaram.”

“Ah é? Heh.” Sem conter o sorriso, Kyouko pegou a garrafa e encheu sua xícara. “Se elas disseram a verdade, agora tu sabes que eu não voltei pra Mitakihara por causa de você.”

Mami afirmou. “Você podia ter escolhido qualquer outra cidade.”

“Eu não tava afim de explorar território desconhecido.” Kyouko colocou três torrões de açúcar em seu café. Quando experimentou, ela subitamente afastou a xícara e levou a mão à boca. “Gaaahh! Isso aqui tá pelando!”

“Os dias estão frios.” Mami aproveitou para dar um gole do café que estava em sua xícara há mais tempo. “Tudo bem Kyouko. O que importa é que você ficou. Se lembra ainda do dia que você retornou?”

“E vou esquecer?” Como o café estava muito quente, Kyouko checou o que havia na fruteira. “O dia que eu levei uma sova da Homura.”

Mami sorriu. “Achou que seria fácil.”

“Claro, né?” Kyouko pegou a maior maçã que havia. “Ela usava arco e flecha e eu achei que era uma novata. Só que quando ela veio com aquelas asas...”

“Akemi-san evoluiu muito rápido.” Mami começou a passar a geléia de uva no pão. “E ela nem havia recuperado as memórias ainda.”

“E a idiota da Sayaka achou que ia conseguir o mesmo.” Kyouko estava com um olhar perdido, nem havia ainda mordido a maçã.

Mami deu um suspiro. “Eu falhei com ela.”

“Tá! Chega de falar disso, a gente sabe agora que ela tá bem.” Kyouko poliu a maçã na sua jaqueta.

“Será que não deveríamos ter falado sobre o que aconteceu conosco para Mikuni-san e as outras?” Mami inquiriu.

“Claro! Vamos falar que fomos abduzidas pra um mundo de faz de conta, que ficava dentro de uma gema da alma. Ah sim! Lá encontramos uma garota mágica que é a própria Lei dos Ciclos e ela veio acompanhada de uma boneca falante que algumas vezes vomitava uma cobra de pano gigante que comia de tudo e em outras uma menina. Aham! Também tinha uma garota que chegamos a conhecer antes de ter sido levada pela Lei e ela agora invocava uma sereia gigante que usava armadura, além de uns chumaços de algodão ambulantes dentre outras esquisitices.”

“Eu sei que seria difícil elas acreditarem, mas com certeza isso tem haver com o desaparecimento do Kyuubey. Talvez pudesse ajudar.” Falou Mami, enquanto levava o pão à boca.

“Duvido. De qualquer forma estamos formando um novo quinteto. Hein?” Kyouko deu uma boa mordida na maçã.

“Ainda não confia nelas.” Disse Mami.

“Hmmm... Parece que nós todas estamos no mesmo barco, mas esse papo de ‘conexão telepática’ parece história pra boi dormir.”

“Bem... Nós também somos capazes de usar telepatia. Ela pode ser apenas mais talentosa.” Mami deu mais um gole em seu café. “E você conhece bem ela?”

“Sei que ela acha que sabe como uma garota mágica deve se comportar.” Kyouko respondeu.

“Hisaomi Mikuni. Se lembra desse nome?”

Kyouko apenas balançou a cabeça, negando.

“Acredito que ele seja o pai dela. Ele era um político aqui de Mitakihara.”

“’Era’?” Kyouko ficou mais curiosa.

Mami continuou. “As notícias diziam que ele fora acusado de desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro para empresários que apoiaram a campanha dele.”

Kyouko sorriu. “Então ela é filha de um criminoso.”

“Ele nunca foi a julgamento.” Mami fechou os olhos. “Foi encontrado morto por enforcamento em sua casa.”

Kyouko ergueu as sobrancelhas. “O pai dela se matou. Hmmmm... e quando foi isso?”

Mami colocou a mão em sua têmpora, se esforçando para se lembrar. “Acredito que ainda fora no primeiro trimestre desse ano.”

“Ah é?” Kyouko escancarou um sorriso. “Pois foi nessa época que ela apareceu em Kazamino.”

Mami abriu bem os olhos. “Então o contrato dela tem haver com esse evento.”

“E eu não vejo esse tal de Hisaomi andando por aí.” Kyouko deu mais uma mordida.

“O que quer dizer com isso?” Mami perguntou, sem entender.

Kyouko mastigou bem antes de continuar. “Ora! Ela podia ter desejado que o pai voltasse a viver, podia até ter limpado a barra dele. Dá pra ver o quanto ela gostava do cara.”

Mami acenou com a cabeça, concordando. “É, acho que você tem razão.”

“Ok.” Kyouko estava quase terminando com a maçã. “Vou dar uma chance pra elas. Passado é passado, eu consigo lidar com isso.”

Mami semicerrou o olhar. “E com o que você não consegue lidar?”

Kyouko paralisou-se, exceto a mão que segurava a maçã, que tremeu.

“A menina?” Mami acenou com a cabeça, confiante em suas suspeitas. “Foi por causa dela que você saiu ontem. Ela lhe fez lembrar de algo?”

“Ela não fez me lembrar de NADA!” Kyouko respondeu secamente. Notando o que acabara de fazer, ela respirou fundo para se acalmar. “Ela deve ter feito é você se lembrar de alguém, né?”

“Não minto, fez sim.” Mami ergueu a cabeça e ficou olhando para o alto. “Quando vi Mikuni-san com ela, memórias onde estou com Bebe vieram à minha mente. Eu revejo cada cena onde ela é uma boneca e substituo pela menina que conheci tão brevemente. Eu imagino como teria sido.”

Kyouko deu a última mordida na maçã. “Você ia mimar tanto ela ao ponto de estragá-la.”

Mami se irritou. “Não exagere, eu não sou assim.”

“Pior que essa verdinha aí é ainda mais jovem.” Kyouko ficou equilibrando o que restou da maçã em seu dedo. “E ela anda com essas duas outras garotas como se fossem os pais delas.”

“Ela parece contente com isso.” Mami respondeu.

“Para né!” Kyouko abriu os braços. “Isso é loucura! Ela devia estar com a família dela.”

Mami levou as mãos à cabeça. “Eu não posso ficar julgando as pessoas que acabei de conhecer! Com essa crise que estamos passando, não posso ficar pensando nisso.”

“Você não pode.” Kyouko deixou o resto da maçã sobre a mesa, pegou a xícara e bebeu todo café de uma só vez antes de se levantar.

“Kyouko?” Mami indagou ao ver a ruiva caminhando para a saída. “O que vai fazer?”

“Resolver o que ficou pendente.”

“Kyouko...” Mami olhava para os lados, procurava por qualquer coisa que pudesse dizer. “...v-você prometeu que ia me ajudar a limpar o apartamento.”

“Deixa uns cômodos pra eu limpar na volta.” Kyouko abriu a porta.

“KYOUKO!” Mami estendeu a mão.

Kyouko parou, mas continuou sem olhar para a loira.

Então Mami retraiu a mão, deixando junto ao seu peito. Seu olhar era uma mescla de dor e culpa. Suspirou antes de pronunciar. “Eu não vou seguir você.”

“Obrigada.” Kyouko saiu e fechou a porta.

Mami mal conseguia respirar com tanta agonia. Se afastou da mesa, sentando no chão duro, encostada na parede. Sua figura, encolhida, abraçada as suas próprias pernas, o seu refúgio para o seu rosto, continuava a ser banhada pela luz daquela manhã.

/人 ‿‿ 人\

Não havia ainda muitas pessoas no parque, foi o que Oriko constatou, exceto na pista para corredores. Isso não seria um problema, pois o lugar para onde ela estava indo era longe dali.

Na verdade, aquele espaço era longe de tudo. Um lugar esquecido, onde a grama não era bem cuidada, cercado por densa vegetação. Um local para meditar e divagar sobre a vida.

Hoje seria um pouco diferente.

Assim que Oriko chegou, ela não se deu ao trabalho de olhar envolta. Estendeu sua mão, fazendo surgir a gema da alma em seu anel e, em um flash de luz branca, adquiriu suas vestimentas de garota mágica. Então deixou suas mãos próximas uma da outra.

Entre elas surgiu uma esfera de cristal azulada com uma base de prata com detalhes que lembravam vinhas. Tinha dez centímetros de diâmetro e continha um fraco reflexo do entorno e de Oriko em sua superfície. A garota, gesticulando com as mãos, fez a esfera flutuar até uma árvore próxima, onde ficou escondida atrás das folhagens.

Oriko se sentou, ajeitando sua vistosa saia, no único banco que havia. A tinta estava descascada e a madeira exposta ainda estava escura com a umidade do orvalho.

Agora era preciso esperar.

Oriko abaixou a cabeça para observar sua gema prateada. Estava brilhante, pronta para qualquer eventualidade.

A brisa fria do outono levava as folhas secas embora. No alto de um dos maiores arranha-céus da parte moderna de Mitakihara, visível a partir daquela posição onde Oriko se encontrava, havia um imenso relógio digital marcando a hora do dia:

08:17 am

De repente, uma garota mágica vermelha com a sua lança pousou logo a frente da garota mágica branca.

“Eae.” Cumprimentou Kyouko.

Oriko franziu a testa. “Sakura-san.”

Kyouko olhou envolta. “Não trouxe a sua ‘família’ com você?”

Oriko ignorou a pergunta. “O que faz aqui?”

“Ah... Eu estava afim de um lanche bem esperto pra começar o dia e conheço um lugar bem legal, mas aí eu topei contigo.” Disse Kyouko enquanto examinava a ponteira da sua lança.

Oriko ajeitou as mãos que estavam repousadas sobre a saia. “Então por um acaso o parque próximo da minha casa que eu visito regularmente fica justamente no caminho.”

“Tu é uma garota esperta.”

Oriko então veio com um leve sorriso. “E você vai para lá armada, pois não pretende pagar pelo que come.”

“Ah! Ultimamente tem ficado mais perigoso por essas bandas. Isso aqui é pra eu me defender.” Kyouko retribuiu o sorriso. “E olha quem tá falando.”

Oriko olhou para as suas próprias vestimentas. “Eu senti a sua aproximação.”

Kyouko deu tapa na testa. “Putz! É mesmo. Você tem aquela... Como é mesmo? ‘Conexão retardada’, né?”

Oriko suspirou. “Chega de piadas. Quais são as suas intenções? Ou posso já assumir que você não pretende cooperar conosco?”

“Eu posso cooperar sim.” Kyouko apontou a lança para Oriko. “Só depende das respostas que você me der.”

“Sobre?”

“Aquela menina jovem que está com vocês.” Kyouko abaixou a lança. “Quantos anos ela tem?”

“Yuma fez nove esse ano.” Respondeu Oriko.

“Nove anos... haha... nove anos...” Kyouko balançou a cabeça. “Onde encontrou ela? Não vem me dizer que foi em uma lata de lixo como se ela fosse um gato de rua.”

“Para o meu pesar.” Oriko desviou olhar. “A forma como você descreveu não é tão longe da realidade.”

Uma nova brisa se sucedeu, levando mais folhas embora e balançando as vestimentas das duas garotas.

“Eu e Kirika estávamos em mais uma caçada em Kazamino quando sentimos a presença de demônios em um condomínio residencial, mais especificamente dentro de uma casa.” Oriko continuou. “Normalmente os demônios abandonam o local e acompanham as pessoas quando elas saem, assim nós temos a oportunidade de eliminá-los sem mais transtornos.”

Kyouko observou Oriko engolir seco. A garota que estava sentada permanecia com um olhar perdido.

“Nós aguardamos por algumas horas e até pensamos em desistir. Com o amanhecer os demônios deveriam ir embora e nós teríamos outra chance. Contudo ouvimos gritos desesperados.” As mãos de Oriko agarraram-se à saia. “Nós então chegamos mais perto e começamos ouvir um choro através da janela do banheiro.”

“Essa deve ser a Yuma.” Kyouko comentou.

Oriko não reagiu, apenas falava. “Nós arrombamos o lugar e a primeira coisa que sentimos foi cheiro forte de gás. Os demônios eram pequenos e Kirika cuidou deles rapidamente.”

Kyouko mordiscou o lábio. “’Rapidamente’. Imagino.”

“Na cozinha encontramos um homem caído sobre uma poça de sangue, morto, então eu segui uma trilha de sangue. A casa estava tomada pelo gás, senão fossemos garotas mágicas, já teríamos sucumbido.” Oriko voltara a olhar para Kyouko, sua expressão era de perturbação. “No fim da trilha encontrei uma mulher também caída e ensangüentada em frente uma porta. Ela tinha uma grande faca na mão. Era muito sangue, muito sangue mesmo. Havia várias marcas de golpe de faca na porta, ela até conseguiu arrancar pedaços.” Ela estremeceu. “Eu derrubei a porta e encontrei Yuma já inconsciente, mas ainda viva.”

“Que merda hein...” Kyouko esfregou a face com a mão, remoendo a história que acabara de ouvir. “Aí você levou ela pra sua casa.”

“É claro!” Oriko exaltou-se, incrédula. “Você não percebeu?”

Kyouko ficou confusa. “O quê?”

“Gritos que podiam ser ouvidos de longe e o choro de uma criança.” Oriko estava ainda mais agitada. “Mesmo assim, ninguém apareceu! Nem os vizinhos que moravam na parede ao lado. Avisamos as autoridades com uma ligação anônima e partimos, pois sabíamos que eles iriam fazer muitas perguntas.”

“Ninguém apareceu atrás dela depois?”

“Não. No dia seguinte, houve uma chamada no noticiário sobre o incidente e do desaparecimento da menina, com o nome dela. Apenas isso, apenas uma vez.” Oriko respirou fundo e voltou a falar de forma mais calma. “Yuma só acordou quando já estava na minha casa, estava muito fraca e não falava, porém eu logo descobri as marcas.”

“Marcas?” Kyouko perguntou. Ainda que tivesse uma idéia do que aquilo significava, ela desejou que estivesse errada.

“Ela tinha hematomas, cicatrizes por todo corpo, incluindo marcas de queimaduras feitas com a ponta de um cigarro. Tudo isso estava escondido sobre a roupa ou o cabelo. Além de ela estar muito magra. Foi aí que descobri o porquê da vizinhança não ter intervindo, isso já era rotina.” Oriko tencionou a face, aquelas lembranças desafiavam sua compostura. “Então ela se abriu para mim, chorou muito. Acredita Sakura-san? Que a mãe dela a espancava todo dia, não deixava ela ir para escola e até a expulsou de casa? Consegue imaginar ela em um parque como esses durante a madrugada, se escondendo em uma moita até o amanhecer?”

“É... Tô vendo que a vida dela foi dura.” Afirmou Kyouko, com genuína empatia, se lembrando de dias mais difíceis.

“Pior que ela acreditava que merecia isso. A mãe dela dizia que ela era uma menina má e que era responsável pelas dificuldades que eles passavam e pela ausência do pai” Oriko continuava falar, balançando a cabeça em negação, mesmo tendo consciência que era verdade aquelas palavras que saiam da sua boca. “Não era só o corpo, a alma dela também estava machucada demais. Eu queria mostrar que a mãe dela estava errada, enganada, que os outros não podem impor quem você é. Então continuei a cuidar dela.”

“Como uma filha.” Kyouko fez um adendo.

“Ela começou me chamar de mãe. Eu não posso negar que me senti feliz com isso...” Oriko sorriu, mas foi uma expressão efêmera. “...e me senti culpada também. Eu tomei ela para mim, agi completamente contra a lei.”

Kyouko bateu com a base da sua lança no chão, para chamar a atenção. “Foda-se as leis! O problema aqui é outro.”

Oriko permaneceu em silêncio.

A ruiva continuou. “Ela é uma garota mágica agora.”

Oriko demorou em responder. “Eu e Kirika somos garotas mágicas. Kyuubey nos visitava com freqüência e...”

“Não vem com enrolação!” Kyouko interrompeu e começou a se aproximar.

O coração de Oriko começou a bater mais rápido, enquanto ela prestava atenção naquela lança.

Kyouko estava tão perto que ela poderia tocar Oriko se esticasse o braço. Seu olhar era intenso. “Me diz, o que foi que ela desejou?”

Em uma cacofonia de gorjeios, uma revoada de pássaros saiu de uma árvore próxima.

Apesar da aura ameaçadora de Kyouko, Oriko respondeu sem delongas. “Ela desejou ter o poder para proteger aqueles que ela ama.”

Aquela afirmação deu início a uma reação em Kyouko. Primeiro sua face se contraiu, depois suas veias saltaram e seu corpo começou a tremer. Como uma onda, aquele tremor chegou na mão que segurava a sua arma, nesse momento ela proferiu.

“SUA MALDITA!”

Kyouko golpeou com a sua lança.

Oriko continuou sentada.

Acompanhado de um som que parecia com de um ricochete de uma munição de arma de fogo contra o metal, Kyouko sentiu o impacto na ponta da sua lança, fazendo desviar sua trajetória. Ela acabou perfurando o banco de madeira, alguns centímetros de distância da Oriko, que continuava a olhar com impassividade para a garota mágica vermelha.

Ainda que surpresa com o ocorrido, Kyouko não arredou. Ela brandiu sua lança com toda força contra o seu alvo.

Oriko então saltou, evitando o ataque.

A única vítima foi o banco, que foi completamente destruído. Estilhaços de madeira voaram para todos os lados, alguns caindo sobre Kyouko. A garota furiosa olhou para o alto e logo constatou que Oriko não havia exatamente saltado.

A quatro metros de altura, Oriko flutuava, sentada sobre um conjunto de esferas. Enquanto ela gesticulava com os dedos, novas esferas se materializavam em pleno ar e orbitavam ela.

Kyouko rangeu os dentes. “Você usou ela em proveito próprio!”

“Não!” Oriko proferiu com firmeza. “Eu nunca obriguei ela a fazer o contrato e muito menos sugeri tal desejo.”

“Mas também não a IMPEDIU!” Kyouko fez sua lança se subdividir, disparando a ponta contra aquela que flutuava.

Oriko usou uma das esferas para atingir a ponta da lança, mas isso não suprimiu o ataque. A ponta começou voar envolta da garota e das esferas que a rodeavam. Ao ver a ponta fazer várias voltas, Oriko já tinha consciência das pretensões de sua oponente.

Obedecendo a vontade da Kyouko, a lança procurou prender e esmagar Oriko com as subdivisões. Contudo, Oriko resistiu, posicionando suas esferas para formar um casco e exercendo uma força contrária.

“Sakura-san! Pare com isso!” Demandou Oriko.

Ainda olhando para o alto, Kyouko puxou a peça de metal que compunha a base da sua lança e corrente que a acompanhava. Como se tivesse a intenção de laçar, ela começou a rodopiar a peça acima da sua cabeça.

“Pare agora!”

Kyouko ignorou o pedido da Oriko, mas não ignorou a sensação da sua gema da alma em sua gola estar sendo pressionada. Ao olhar para baixo, ela viu uma das esferas cutucando seu ponto vital. “Guh!”

“Você se esqueceu daquela que eu usei para desviar a trajetória do seu primeiro ataque.”

Kyouko congelou, ao ponto de deixar cair a corrente que estava segurando.

“Felizmente, diferente de você, eu não tenho a intenção de matar.” Oriko suspirou. “Estamos lutando em plena luz do dia e destruindo propriedade alheia. O que Tomoe-san pensaria a respeito?”

“Tch.” Kyouko contraiu a face ao ouvir o nome da Mami, mas, mesmo relutante, ela retraiu sua lança. “Eu já tinha previsto que você iria desviar dos meus ataques, como sempre.”

“’Previu’.” Oriko desceu até o chão, ficando em pé. “A lança, por favor.”

Kyouko olhou novamente para a esfera que estava a milímetros da sua gema, ela podia tentar desviar, mas... “Droga!” Por fim, ela desistiu, fazendo sua lança evaporar.

Em resposta, Oriko fez o mesmo com as suas esferas. “Eu avisei Yuma. Mostrei a ela a rotina de uma garota mágica, uma vida sem glória ou reconhecimento. Com Kyuubey, ela viu o miasma e o quão perigoso são os demônios. Ela tomou essa decisão sozinha, consciente de que eu não a amaria menos se ela não tivesse feito o contrato.”

“É.” Kyouko concordou em tom de sarcasmo. “Agora ela caça demônios pra você assim como aquela outra doida lá, né?”

“Não.” Respondeu Oriko, se sentindo ofendida. “Ela desejou nos proteger, mas isso não significa que não devo proteger ela. Ela se sente útil e contente assim. Algo que nunca sentira antes.”

“Oriko.” Kyouko arfava. “Se acontecer alguma coisa com essa menina. Não importa aonde você vá. Não importa aonde você se esconder. Eu vou atrás de você. Eu vou matar você, e quem estiver no caminho.”

Oriko baixou cabeça. “Se ela... morrer ou desaparecer, eu entrego minha gema a você pessoalmente.”

“Desaparecer?” Kyouko ficara confusa.

E Oriko ainda mais. “Sim? Desaparecer. É o que acontece quando deixamos nossas gemas se corromperem demais, não sabia?”

“Não é assim.” Disse Kyouko. “Vai ser até justo se isso acontecer, ela vai estar em um lugar melhor e longe de tu.”

“Lugar melhor?!” Oriko arregalou os olhos em incredulidade, mas depois relaxou e sorriu. “Ah... Você acredita no mito da Lei dos Ciclos.”

“Não é um mito!” Kyouko respondeu, irritada. “Prefere acreditar, mesmo sabendo que magia e milagres existem, que nós simplesmente desaparecemos?”

Oriko balançou a cabeça, sorrindo diante daquela ingenuidade. “É que eu não consigo me ver sendo ‘levada’, ou acha que merecemos tal destino?”

“Como é?”

“Olhe para você. Olhe para mim!” Oriko se exaltou, levando a mão ao peito. “Somos seres corrompidos, uma corrupção que esses cubos jamais poderão remover.”

Kyouko deu um passo para trás.

“Quantas garotas mágicas não foram, são ou serão como nós? Nosso dever é o de proteger esse mundo dos demônios, mas nós podemos usar nossa magia livremente, até para tirar a vida de inocentes.” Oriko olhou nos fundos dos olhos da Kyouko. “Ou pior, ter feito um contrato que possa causar isso.”

Kyouko arregalou os olhos.

“O sangue derramado clama por aquele que fora responsável.” Oriko continuava com um tom intimidador. “Mas não, tal pessoa é uma garota mágica e, portanto basta ela deixar de purificar sua gema que terá passagem livre para um ‘lugar melhor’. Muito justo, não é Sakura-san?”

Kyouko baixou a cabeça e desviou o olhar. “Você está errada. Eu tenho uma amiga que foi levada e... eu cheguei a ver ela novamente. A Lei existe sim.”

“Hmmmm.” Oriko fechou os olhos e sorriu. “E você viu ela aonde? Em um sonho?”

“Eu sabia que você jamais iria acreditar.” Disse Kyouko, frustrada.

“Está certa, pois é INACEITÁVEL acreditar.” Oriko foi enfática. “Você defende sua posição ferozmente, mas por que então você não vai para lá? Por que continua a arriscar que sua gema se quebre se pode simplesmente desistir e se deixar levar?”

Kyouko cerrou os punhos.

“Uhum... Você já teria feito isso, só não fez por causa dela. Tomoe-san jamais aceitaria tamanha covardia, jamais perdoaria...”

“Cala boca! CALA BOCA!” Kyouko vociferou.

Uma brisa passou entre as duas garotas. Oriko ficou em silêncio, com uma expressão serena, aguardando.

Kyouko mordeu os lábios inferiores e ponderou antes de voltar a falar. “Sim, é por causa dela que vou cooperar com vocês. Porém eu aviso.” Ela olhou para Oriko. “Mami tem um coração mole, mas se vocês tentarem nos apunhalar pelas costas, irão conhecer um lado dela que farão vocês se arrependerem.”

“Está acertado então.” Afirmou Oriko. “Melhor levarem um guarda chuva para hoje à noite.”

Kyouko olhou de relance para o céu aberto. “Heh. Falou.” E partiu com um salto, passando entre as árvores.

O silêncio e a paz reinavam naquele local.

Oriko se sentou, ajeitando sua vistosa saia, no único banco que havia. A tinta estava descascada e a madeira exposta ainda estava escura com a umidade do orvalho.

Agora era preciso esperar.

Oriko abaixou a cabeça para observar sua gema prateada. A parte inferior estava um tanto escurecida, mas seria o suficiente.

A brisa fria do outono levava as folhas secas embora. No alto de um dos maiores arranha-céus da parte moderna de Mitakihara, visível a partir daquela posição onde Oriko se encontrava, havia um imenso relógio digital marcando a hora do dia:

08:17 am

De repente, uma garota mágica vermelha com a sua lança pousou logo a frente da garota mágica branca.

“Eae.” Cumprimentou Kyouko.

Oriko abriu um sorriso. “Sakura-san.”


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: Um nome inesquecível



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