Visionária escrita por Jafs


Capítulo 10
O caixão do diabo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/627460/chapter/10

O vento balançava a relva, trazendo consigo um som de calmaria. O perfume dos vários tipos de flores, ainda que fosse uma mistura, era agradável. O céu estava límpido. Nada daquilo para Homura correspondia com aquela palavra. “Sofrimento... O que quer dizer com isso?”

“Eu senti.” Disse Nagisa com um olhar perdido. “Estava tão perto, mas ao mesmo tempo estava além do horizonte.”

Homura olhou de relance para as suas crianças. Elas tinham parado de brincar e olhavam fixamente na direção delas.

“Era algo muito familiar. Eu já senti isso inúmera vezes.” Nagisa olhou para as suas próprias mãos estremecidas. Seus olhos arregalaram em completo pavor. “Ahh... AAAHHHH!”

Homura se levantou diante daquilo, deixando cair por completo o seu véu de flores. “Madoka...?”

“Nós temos que voltar!” Nagisa se virou para Homura. “Aconteceu algo com a Lei dos Ciclos!”

“Lei dos Ciclos? Eu não senti nada de estranho.” Afirmou Homura.

“O que eu estou dizendo é sério!” Nagisa implorou. “A Lei pode estar correndo perigo, mas você tem o poder de protegê-la, Homura-chan.”

“Voltar...” Homura olhou para a coroa de flores que ainda segurava. Seu semblante era pensativo, seu silêncio permitiu o som do vento se manifestar até ela proferir sua singela palavra. “Não.”

“O quê...” Após proferir em um suspiro, Nagisa manteve seus lábios separados.

“Eu perguntei. Se lembra?” Homura continuou. “Se ficaríamos juntas para sempre.”

“Mas eu não vou me separar de você!” Nagisa respondeu.

“Exatamente. É para ser somente eu e você...” As crianças se aproximaram de Homura, ficando atrás dela. “...ou por acaso isso seria um problema?”

Nagisa contraiu sua testa diante daquela pergunta. “Não... mas eles podem estar precisando de ajuda agora. Nós podemos retornar depois!”

Homura balançou a cabeça. “Não me importo com o que esteja acontecendo. O importante é que você está aqui comigo, Madoka.”

“Homura-chan!” Nagisa exclamou em raiva. “V-Você não é assim! Pare com isso! Pare!”

“Você não vai sair DAQUI!” Com o clamor de Homura, uma forte rajada de vento as atingiu.

Que jogou o cabelo de Nagisa para trás. A menina recuou, se encolhendo toda. “Eu...” Sua expressão era de grande angústia. “Eu então sou sua prisioneira?”

Homura desviou olhar e pousou uma mão em sua têmpora, seus lábios estremeceram. “Não... isso é loucura... eu não posso...”

Nagisa observou as bonecas tamparem as bocas, com o vão intuito de esconderem suas gargalhadas silenciosas. As flores aos pés da garota de cabelos negros começaram a mudar suas cores para tons violetas. “Homura-chan...”

“Chega.” Homura estendeu a mão para Nagisa, gesticulando para parar. Respirou profundamente. “Eu não vou continuar com isso, não precisa mais fingir.”

“O que está dizendo?” Nagisa ficou confusa em um primeiro momento, mas logo veio a realização. “Ah... mas eu sou Madoka! Eu já mostrei tanto, ouça os seus sentimentos.”

“Você os confundiu! Apenas isso...” Homura se virou novamente para Nagisa. “Eu já sei bem o que tu és.”

O campo florido se transformava. As flores aos pés de Nagisa ficaram roxas, mas a menina nem percebeu, pois ainda estava remoendo o que acabara de ouvir. “Então... você mentiu para mim.”

Homura se manteve em silêncio.

Isso bastou para Nagisa entender. “Ela se recuperou, não foi? O que ela te contou?”

“Oh... vejo que a sua máscara está caindo.” Homura disse em tom de sarcasmo.

“Não! Eu sou Madoka!” Nagisa voltou a implorar. “Ela mentiu para você, te envenenou contra mim porque ela é uma covarde! Por favor!”

“Ela me avisou que você iria um dia querer sair daqui e isso é verdade.” Homura jogou o seu cabelo para trás, removendo qualquer resquício que ainda havia do véu florido. “Você a chama de mentirosa e ainda por cima de covarde... quer que eu acredite nisso? Então chame os seus lacaios, bruxa.”

“Hã...?” Nagisa franziu a testa.

“Não estou falando contigo, ‘Madoka’.” Homura proferiu aquele nome de forma debochada. “Charlotte, ou como você prefere chamá-la, Nagisa, é parte de você. Vocês são como uma única pessoa, não foi o que me disse? Eu nunca impedi que você trouxesse os seus lacaios para cá, então faça o que eu pedi.”

Nagisa prendeu a respiração, olhando para os lados em sua expressão perturbada.

“Você não consegue, não é?” Homura pendeu a cabeça para o lado, seus olhos semicerrados. “Você pode ter as memórias da Madoka, talvez até daquela bruxa, mas não é nenhuma das duas.”

“Não...” Nagisa disse em tom de choro. “Eu juro que não queria fazer isso, mas ela estava sofrendo demais e uma tragédia estava prestes a acontecer. Eu tive que tomar uma atitude. Me desculpa, Homura-chan, mas eu sou Madoka... me escute...”

Homura foi tomada por um flash luminoso violeta. Quando a luz se foi, ela estava em seus diabólicos trajes negros.

“Não. Não!” Nagisa gesticulou desesperada. “Espere Homura-chan! Não faça isso comigo! Por favor...”

Homura armou as suas asas de penas negras. “Acabou. Pare de fingir.”

As bonecas bateram seus dentes afiados em uníssono, conjurando seus alfinetes.

Nagisa levou as mãos à cabeça. “Não... uuuhhhh... por favor...”

Homura vociferou. “Eu disse para parar de FINGIR!”

“Eu... não posso parar o que eu não estou fazendo... uuuuhhh...” A face de Nagisa se contraiu, seus olhos cintilaram com as lágrimas que se formavam. Ela tocou nos laços vermelhos amarrados em seu cabelo. Aquilo foi como um estopim para ela desatar em um novo apelo desesperado. “Homura-chan... por favor... passamos esse tempo junto... uuuhhh... você é mais do que a minha amiga... uuuhhh... eu amo você.”

Homura se estremeceu toda. Rangendo os dentes, ela exclamou de forma enfática. “Cala a BOCA!”

Nagisa tampou sua face com as mãos e passou a chorar. “Uuuuaaaaahhhhhh!”

Homura franziu a testa, tomada pela confusão, boquiaberta, ela disse na forma de um suspiro. “Eu disse para você... parar de fingir...”

“Uuuuuuaaaahhhhh!”

“Pare com isso... pare!” Homura abaixou a cabeça, pois não queria mais ver a boca escancarada da menina. Foi nesse momento que ela notou.

Aos pés de Nagisa, as flores recebiam gotas enegrecidas no qual elas absorviam e com isso elas começaram a ficarem pretas.

“Aaahh! AAAhhh!”

Homura ouviu as lamentações de Nagisa, mas agora não era um choro. Voltando a olhar para a face da menina de cabelos brancos, seu coração, que já passara por muitas tribulações, pulou.

Um líquido viscoso negro saía dos olhos de Nagisa. As veias da face estavam pretas, formando um mórbido emaranhado que contrastava com a sua pele clara. Assustada, ela olhava para suas mãos, onde ambas também estavam com aquelas veias escuras se espalhando. “Aaaahhh...” Com um último suspiro, um de decepção, sua expressão de surpresa fora substituída por uma de melancolia. Ela então trocou olhares com a outra garota.

Homura ficou de queixo erguido, lábios apertados, uma respiração forte e controlada.

Diante daquela expressão, Nagisa deu um sorriso sem graça. “No final nós duas nos tornamos monstros, não pudemos evitar, não é?” Então mais daquele líquido negro desceu de seus olhos. “Mas eu não queria que você me visse assim... uuhhh...”

Homura viu as veias das pernas de Nagisa escurecerem, chegando até seus pés descalços.

“Se tudo tivesse dado certo, nada disso precisava acontecer. Nós não estaríamos aqui e você não falaria assim comigo.”

Como se estivesse bombeando a partir dos pés da Nagisa, a relva e as flores ganhavam o aspecto preto, substituindo o violeta, se espalhando rapidamente.

Grandes revoadas de pássaros negros partiam das árvores próximas. Quando Homura se deu conta, suas bonecas haviam dado meia-volta e estavam em uma apressada fuga.

Entre soluços, Nagisa continuou. “Eu sinto muito Homura-chan por ter de ser dessa forma, mas eu vou mostrar a você que sou a Madoka que tanto ama, independente do que eu tenha me tornado.” Ao terminar de falar, ela parou de se mover completamente, como uma estátua e caiu para trás. Assim que o corpo tocou o solo, as flores negras se fecharam, formando botões. De dentro deles, começaram a sair pequenos tentáculos.

Não gostando do que via, Homura levantou vôo por segurança. Ela testemunhou os tentáculos se aglutinando uns aos outros, ficando mais grossos.

Então veio o tremor.

Acompanhado de um grande estrondo, a terra se abriu, revelando a monstruosidade que se formara em seus domínios. Uma gigantesca massa negra se ergueu como uma montanha, rumo ao céu.

Até que o azul e o preto se chocaram.

Homura observou o céu se rasgando com o impacto. As rachaduras se espalhavam ao longo dele como uma imensa teia de aranha. Abaixo, os tentáculos ganhavam tamanho e se debatiam cada vez mais próximo dela.

Então, como se alguém tivesse acionado um interruptor, as cores mudaram de repente, oferecendo seus lugares para tons mais cinzas, assim como os movimentos congelaram.

Não afetada por tal evento, Homura continuou olhando para o alto, para onde o pico daquela montanha havia perfurado.

Do buraco no céu, começou uma verdadeira chuva de penas brancas. Elas desciam de forma suave, inocente, completamente oposto ao caos e destruição que estava se instaurando.

Homura estendeu a mão e pegou uma delas. Nesse momento ela percebeu que na outra mão ela ainda segurava a coroa de flores, agora todas violetas. Ela olhou ainda mais uma vez para aquela muralha de escuridão a sua frente para então olhar para baixo.

Em um dos vão efêmeros entre os tentáculos, lá jazia uma mão sobre mechas de cabelo branco.

Homura trouxe a coroa para mais perto de si, sentindo seu perfume, e então arremessou em direção aonde Nagisa estava. Por hora, no entanto, as flores não chegariam até lá, pois a coroa ficou paralisado em pleno ar, adquirindo os mesmo tons mortos do espaço a sua volta.

Não havendo mais nada para se fazer ali, Homura voou em direção ao céu, a procura de uma rachadura grande o suficiente. Assim que encontrou, ela se esgueirou até o outro lado, onde então se deparou com um vasto deserto.

Deixando para trás uma muralha de tijolos negros, base de uma titânica torre em forma de ampulheta, Homura seguiu vôo até uma série de montanhas rochosas que havia no horizonte.

Pousando na beirada de uma escarpa, ela contemplou o panorama desolado das dunas acinzentadas que separavam ela do lugar onde ficou por tanto tempo. A torre estava mais danificada do que ela imaginara, com vários tentáculos saindo das paredes como se fossem galhos de uma grande árvore.

Ela então ergueu a mão e examinou a pena de branco puro entre os seus dedos.

.etnaicsirtS soaC lI

Aquela voz, tão familiar quanto perturbadora, chamou a atenção de Homura. Sobre o topo de uma pedra estava uma salamandra negra, os movimentos em sua cauda provando que ela não fazia parte daquilo que fora paralisado.

“É você, bruxa.” Disse Homura friamente.

.adan uodum oãn alE” A salamandra desceu da rocha onde estava.

“Não...” Homura abaixou a cabeça de leve, voltando a prestar a atenção na pena.

A salamandra alcançou os pés da garota. “.odarbeuq arof opmet od oxulf O

Homura continuou a responder mecanicamente. “Ela tentou escapar.”

?sairéf saus sa marof omoC” A salamandra já havia começado a sua escalada pelas pernas.

“Isso fora um sarcasmo?”

.êcov moc idnerpA

“Você está muito falante... vejo que ficou mal acostumada e esqueceu qual é o seu lugar.” Homura olhou para salamandra que subia em seu ventre. “Reporte-me sobre Madoka e a Lei dos Ciclos. Você foi para lá com ela?”

.miS

“Como Madoka estava se sentindo?”

A salamandra alcançou o ombro esquerdo da Homura. “.met euq edaduas a rednocse eugesnoc oãn alE

Homura fechou os olhos e respirou fundo. “Eu sabia.”

“.satorag sa arap aduja odnecerefo zilef res ed amrof avon amu uortnocne alE .ahnizos átse oãn ale méroP

“Hmmm...” Homura remoeu sobre o que acabara de ouvir, antes de voltar a abrir os olhos. “E como ela está agora?”

.meb átse alE” A salamandra rastejou até nuca, desaparecendo por debaixo daqueles longos cabelos negros.

“Sério?” Homura franziu a testa. “Pois eu ouvi falar que a Lei dos Ciclos corre perigo.”

“.oicífitra mu arof euq abias , ossi essid ehl euq ale iof eS ?odnaunisni átse euq O

“Certamente...”

.erpmes arap ossi retnam edop oãn êcoV

Percebendo que o assunto havia mudado para algo mais pertinente no momento, Homura observou o topo da sua mão esquerda. Surgindo através dela, sua gema da alma violeta dentro da coroa negra havia adquirido certa corrupção em sua base.

.levátivenI

Não era necessário dizer, ela sabia. Homura olhou novamente para pena branca em sua outra mão, enquanto seu arco negro estava tomando forma.

.odut esU

Isso também não. Examinando o seu alvo, a monstruosidade que estava prestes a trazer grande destruição, Homura soltou a pena e preparou uma flecha de energia.

A pena balançava em sua suave descida. Durante esse tempo, uma chama de cor violeta inflamou-se no topo do arco. Homura sentia entre seus dedos a energia se acumulando naquela flecha, se tornando instável.

Tudo havia um limite.

Para a pena fora o chão. Assim que ela o alcançou, as cores retornaram aos seus tons vibrantes, banhados pelo céu violeta reluzente. No mesmo momento, o solo estremeceu diante da fúria ocorrendo a quilômetros dali.

A parte superior da torre nem chegou desabar, pois a abominação a ergueu e a despedaçou. A criatura ganhou altura rapidamente, até ser barrada pelo céu cristalizado.

Homura testemunhou aquela montanha negra então pulsar. Tentáculos saíram do pico e se espalharam rente a superfície do céu, que começou a trincar.

!eritA

Homura abaixou o olhar e virou a face antes de soltar a flecha. Ela nem chegou a ver quando o disparo de energia penetrou fundo naquela massa negra, mas não pôde escapar da luz cegante que se sucedeu.

Como um sol, a explosão consumiu boa parte da montanha de tentáculos. O que escapou da desintegração instantânea queimou perante a luz.

Quando esfera de energia foi perdendo força, se dissipando, Homura voltou a olhar para onde havia disparado. Sob as chamas violetas, os poucos tentáculos que restaram se debatiam e desapareciam entre as ruínas da torre.

!rapacse uoxied esauq a êcoV !?odnezaf átse euq O

“Ela não vai escapar ainda...” Respondeu Homura enquanto ajeitava a sua franja. “... pois ela quer a mim.”

...arof ossi euq mébmat abiaS

“Insuficiente.” Homura preparou uma nova flecha e apontou contra as dunas do deserto logo abaixo. Disparando, a flecha afundou nas areias, que se levantaram em uma grande explosão.

Então, do chão, saíram vários tentáculos que começaram a rastejar pela escarpa rochosa.

Homura levantou vôo e partiu em alta velocidade, mas ao olhar para trás, viu que o amontoado caótico de tentáculos estava conseguindo acompanhá-la. Ela então usou seu arco para disparar uma flecha a sua frente.

A flecha se desabrochou, formando um emaranhado de linhas violetas em pleno ar, como se fosse uma grande teia de aranha.

Assim que Homura atravessou a teia, a partir das linhas flechas foram disparadas, interceptando os tentáculos que a perseguiam.

.aroga etrof siam átse êcoV

“Ela também está.” Homura começou a reduzir a altitude de vôo. “E até descobrir o quanto, é melhor usarmos da tática de bater e correr. Vamos tentar encontrar um lugar para nos escondermos.”

De repente, grandes tentáculos brotaram das areias, em direção a garota que descia. Homura desviou facilmente, mas a verdade é que os tentáculos não visavam ela.

.uéC

Homura olhou para o que havia deixado para trás. Os tentáculos haviam se chocado com a superfície de cristal violeta, criando novas rachaduras. Disparando seguidas vezes com seu arco, ela despachou a ameaça em uma série de explosões.

.odadiuC

Homura percebeu a sombra se formando sobre ela. Em um rápido mergulho para um dos lados, ela desviou do grande tentáculo que tentou agarrá-la enquanto estava ocupada.

Mais tentáculos saíram das areias, formando uma verdadeira floresta negra.

“Não posso subestimá-la.” Homura fugiu em altíssima velocidade, atravessando mais uma cordilheira e descendo em um vale desértico, voando rente as dunas.

.soiacaL

“Eles serão inúteis, até para distraí-la.” Homura sentiu ar batendo em sua face com força, seu cabelo esvoaçou. “O que é isso?” Olhando para trás, notou que estava gerando um vácuo que erguia colunas de areia por onde passava.

.edadicolev odnedrep somatsE

“Sim...” Homura conjurou a sua gema e a examinou. “Ela está escurecendo rápido.”

.amla aus a odatcenoc átse ragul etsE

“Então se aquela coisa se espalhar...”

“.etnemataxE

“Então temos que fazer cada segundo valer.” Homura voltou a subir e ficou parada em pleno ar.

Um mar de tentáculos despontou no horizonte. O firmamento violeta reluzente estava sendo manchado pelo o piche em seu avanço implacável.

Sem tardar, Homura preparou uma nova flecha enquanto uma aura se formou atrás dela. Logo que disparou, a flecha se dividiu em duas e então cada uma se dividiu novamente e novamente...

A superfície do mar negro iluminou-se diante o enxame de flechas que caiu sobre si.

Homura se manteve impassiva, contemplando seu poder de destruição, tamanha era a ironia. Se ela tivesse tal poder antes, o obstáculo que fora intransponível por tanto tempo deixaria de existir em um instante, a história seria outra.

Agora, esse mesmo poder parecia ser nada.

Alguns tentáculos continuaram o seu avanço, sendo protegido por outros que se sacrificavam diante da saraiva devastadora. Assim que tinham o caminho livre, os tentáculos se lançavam contra a garota de asas.

Homura preparou várias flechas de energia. “Vejo agora que eu não teria nenhuma chance de destruí-la.”

.sárt arap al-áxied osorolod oãt odnes omseM

Disparando todas as flechas de uma vez, Homura despedaçou os tentáculos. Punhados de gosma negra voavam para todos os lados, no qual ela desviava sem esforço.

No entanto, a partir de uma gosma negra que passava próxima dela, tentáculos menores saíram e atacaram.

Homura só se deu conta disso quando eles agarram sua arma e a partiram em várias partes.

.ocrA

“Eu não preciso.” Com as flechas de energia em sua mão, Homura as juntou para formar uma lança, no qual ela lançou contra a grande massa negra que estaca cada vez mais próxima, formando uma grande explosão.

Mais uma chuva de gosma negra, mas não proveniente da explosão, como Homura logo constatou, e sim do céu acima dela. O dia, como assim poderia se dizer, estava virando noite. Não vendo escolha, a garota de longos cabelos negros se viu novamente em fuga.

.etimil ues me átse êcoV

“Não estou e se o que tem para oferecer são esses comentários, então é mais útil que fique calada.”

.asA

Para o desgosto de Homura, a bruxa não se calou, mas mesmo assim ela não poderia ignorar o que ouvira. Esticando o pescoço, ela logo descobriu o que aquilo significava. A armação de uma de suas asas estava manchada com aquele líquido viscoso negro. A mancha estava crescendo e se movendo em direção a suas costas desnudas. Não querendo descobrir o que aconteceria se aquilo alcançasse seu corpo, Homura trouxe a asa para si e então, com uma mão tomada por uma aura roxa, ela a cortou.

Física, suas leis ela já desafiou e venceu tantas vezes, mas ela já sabia muito bem que chega a hora em que elas cobram caro por isso. Talvez não fora tão desastrosa, pois era areia ao invés de rochas, mas a queda de Homura não fora suave. Ainda que não estivesse gravemente ferida, ela teve dificuldade de sair do buraco que formara com o impacto.

!ossi arap met adnia êcov euq ecnahc acinú aus uos uE !akodaM regetorp oreuq uE

“Não me faça rir, bruxa. Você sabe tão bem quanto eu que é impossível...” Homura ficou de joelhos diante da escuridão em sua volta. Os tentáculos, como se tivessem notado que sua presa agora estava indefesa, não avançaram. A garota viu a massa negra a cercando por todos os lados, a luz violeta do céu se extinguido entre frestas das paredes vivas.

No entanto, isso fez acender algo dentro de Homura. “Como eu fui tola.”

?aloT

“Se ela tanto me quer...” Erguendo a mão esquerda na altura dos olhos, Homura conjurou a gema em forma de coroa. Apesar de estar escurecida, a garota ainda a fez brilhar, iluminado o domo negro. “... então vou me oferecer por inteiro.”

.redop ues od oãsnetxe a edneerpmoc oãn êcoV !oãN

“Tenho que acreditar que posso levar ela comigo!” A gema brilhou ainda mais intensamente. “Vamos, vamos!” Porém, como uma vela, o brilho tremulou antes de cessar. “Não... não!” Ainda mais derrotada, Homura ficou de quatro, seus dedos afundando na areia enquanto a gema voltava para dentro dela. “Eu devo... quebrá-la.”

.edadinrete adot rop airirerfos akodaM

Homura já não conseguia enxergar mais nada, apenas podia sentir o ar mais frio e... algo se aproximando. “Eu odeio você.”

.omsem o ogid uE

“Mesmo falhando mais uma vez. Mesmo diante do fim, por que...” Homura se levantou. “... eu não consigo parar?”

.són arap asoicerp é rod A

“É ela que nos faz acreditar que ainda estamos vivos.” Homura contemplou o abismo, o mesmo que olhava para ela. “Madoka...”

.eplucseD

Cerrando os punhos. “Eu vejo você no inferno, bruxa.” Homura avançou contra o oblívio.

/人 ‿‿ 人\

Quando a verdade se revelou

Nesse mundo sem futuro

Você não estava lá

Palavras se perderam

Entre chuvas e lágrimas

Lamentações

Deixemos para trás

Pois já atravessamos

Os portões do paraíso

No reflexo da janela

Vi eu e você

Ignorantes ao tempo

Pétalas que se misturam

Em um novo amanhã

Esperanças

Deixemos para trás

Pois já atravessamos

Os portões do paraíso

“Homura-chan!”

Ela sentia gotas frias caírem em sua face e a superfície dura do chão sob as suas costas.

“Por favor! Não me deixe...”

Então ela sentiu o calor de uma mão em seu pômulo, aquilo fora o suficiente para permitir que a luz chegasse aos seus olhos. Ela viu que diante dela estava um borrão, com uma distinta cor rosa, que caiu sobre ela.

“Homura-chan! Homura-chan!! Oh... Homura-chan... Eu pensei que ia perder você para sempre.”

Seu corpo se aqueceu por inteiro com aquele abraço tão familiar. “Ma... doka?”

O borrão se afastou. “Ah... você precisa disso, né? Ele está muito quebrado.”

Sentindo o objeto sendo colocado em seu rosto, o mundo que Homura via estava rachado, porém mais nítido. Seu coração pulou quando se deparou com Madoka ajoelhada em seu vestido rosa, amarelo e branco. Sua saia com babados que remetiam a pétalas de uma bela flor e, claro, seus pomposos laços vermelhos que prendiam seu cabelo. O traje de garota mágica que ela vestia estava rasgado e manchado de sangue, mas o mais importante, a gema da alma rosa presa ao laço em seu pescoço, ainda brilhava vigorosamente.

Logo ela constatou que isso também se aplicava ao seu traje. Sua camisa branca justa de cortes retos e formais, com uma gola preta e cinza, com um simples laço lilás amarrado nela, lembrava muito um uniforme de escola. As mangas da camisa eram compridas, mas não tanto quanto a manga preta que saía por baixo. Vestia uma saia curta cinza com bordas brancas, mas suas pernas não ficavam expostas, pois também usava uma meia calça preta com as laterais com estampas de uma série de losangos violetas, era comprida o suficiente para cobrir até a sua bota perfeitamente.

Em seu antebraço esquerdo estava seu fiel escudo, símbolo máximo de seu desejo. Um pouco além, no topo da sua mão, sua gema da alma, um losango violeta com uma moldura dourada. Homura viu uma essência negra ser transferida da gema para um objeto que Madoka segurava próxima dela. Uma semente aflição, com adornos metálicos no formato de engrenagens.

“Você consegue enxergar?” Madoka perguntou, um tanto apreensiva.

“Sim...” Homura forçou a vista, tentando se lembrar. “O-O que aconteceu...”

“Nós conseguimos!” Madoka respondeu, mais excitada. “A grande bruxa foi derrotada!”

Homura olhou para o céu nublado, gotas de chuva caíram e desceram pela lente de seus óculos. Olhando em volta, ela se deu conta, pelos pedaços de cadeiras e escrivaninhas espalhados, que elas deviam estar no que já fora um dia um andar de um escritório. O prédio era mais um dos tantos que foram arrasados no centro de Mitakihara. Contudo, ela não ouvia mais a risada maligna da bruxa que a atormentava em seus pesadelos. “C-Como...”

[Madoka a destruiu em seu último ataque, demonstrando um potencial além das expectativas.]

As duas garotas mágicas se viraram e viram Kyuubey sobre uma pilha de escombros.

“É verdade.” Madoka voltou a olhar para Homura. “Mas sozinha, eu não acho que teria uma chance.”

[Tem razão Madoka.] Kyuubey concordou. [A capacidade que Homura tem manipular o tempo ao favor de vocês foi um grande diferencial.]

“Obrigada Kyuubey mas... mas...” Homura voltou a trocar olhares com Madoka. “Eu não me lembro de ter sido tão útil.”

“Não diga isso, Homura-chan.” Madoka balançou a cabeça. “Você deu o seu melhor. Todas nós demos.”

Homura abaixou o olhar, mas chegou a esboçar um tímido sorriso diante daquela afirmação, mas foi a mesma afirmação que a fez arregalar olhos, se lembrando de algo. “E... e Tomoe-san?”

Madoka mudou sua expressão para um semblante triste, e novamente balançou a cabeça.

“Oh... hmmm...” Homura sentiu seus olhos lacrimejarem e começou a baixar a cabeça, mas mãos impediram ela de fazer isso.

“Homura-chan! Lembre-se do que ela disse. Sermos garotas mágicas significa pôr nossas vidas em risco.”

Homura ficou boquiaberta com o olhar determinado que Madoka expressava.

Ela continuou. “É como ela queria que fosse, lutando pelo bem. Nós somos o legado dela, não podemos fraquejar.”

Homura respirou fundo e segurou o choro antes de acenar, concordando.

“Venha, eu te ajudo a levantar.”

Homura ficou de pé ao lado da Madoka, então ela pôde ver melhor a extensão da destruição. “S-Será... que muita gente morreu?”

“Muitos foram para abrigos, assim como a minha família. Eles devem estar bem, a bruxa não passou por lá.” Respondeu Madoka enquanto via Homura se distanciando dela, indo em direção a beirada da construção destruída. “Eu disse que ia ao banheiro com uma colega da escola, talvez eles nem tenham me procurado ainda.”

Kyuubey se intrometeu na conversa. [Depois do que testemunhei aqui, tenho certeza que vocês duas serão excelentes substitutas da Mami, especialmente você Madoka.]

“Eu?”

[Sim, você tem um poder incomum para a sua natureza.]

“Bem... isso é bom, né? Eu... eu tenho que ser forte agora, pela Mami-san, Homura-chan, mãe, pai, Takkun...” Madoka levou a mão ao peito. “Sayaka-chan, Hitomi-chan e todos da escola e... e todos nessa cidade tão devastada.” Então ela sentiu o objeto que carregava. “Ah... você vai querer essa semente?”

[Essa não é uma semente de uma mera bruxa, mas de uma lenda. Vocês devem conseguir purificar a gema de vocês completamente mais algumas vezes ainda.]

Madoka quase sorriu ao ouvir aquilo.

Mas tal sorriso não duraria. [No entanto, vocês devem se preparar. Tanta destruição e sofrimento logo atrairão inúmeras bruxas para cá.]

“Oh não!”

[Eu posso fazer uma patrulha e avisar vocês caso eu encontre algo.]

“Faça isso!” Madoka apertou com força a semente da aflição que ela carregava. “E obrigada novamente.”

Enquanto a conversa entre Madoka e a criatura se desenrolava, Homura já estava perdida em seus pensamentos. Tomoe-san... mesmo que você aceitasse a morte, será que eu não conseguiria ter impedido também?

Ela sentiu o peso de suas tranças encharcadas. O que estou pensando? Eu nem consigo me proteger...

Removendo o excesso de água em seus óculos, Homura examinou a extensão da destruição da cidade. Madoka está se mostrando forte como sempre fora, mas ela deve estar sofrendo por dentro. Ao menos, ela está viva. Meu desejo... foi realizado. Então voltou a sua atenção para o seu escudo. Será que devo contar a ela? Ela sempre estava curiosa quanto ao meu desejo, mas...

Ela sentiu o frio do metal ao deslizar os dedos e rangeu os dentes.

Não... Ela vai me odiar por não ter avisado. Ela iria querer salvar Mami... querer se arriscar. Homura estremeceu-se. Como eu sou horrível... como eu...

Os seus pensamentos se silenciaram, para logo serem substituídos por outro. Meu escudo. Homura passou a manga de seu uniforme nos óculos para ter certeza do que estava vendo. Por que as tampas estão fechadas?

Utilizando de sua magia, Homura fez o aparato ganhar vida, fazendo as tampas se abrirem. Dentro de cada um dos compartimentos de vidro continha certa quantia de uma exótica areia violeta. Não deveria estar assim, mas... mas... como eu sei disso?

Com sua respiração acelerada, tomada por aquelas inquietações, a garota mágica de óculos olhou envolta para os destroços a sua volta, confusa, até que algo chamou a sua atenção.

Próximo dos restos de uma escrivaninha havia um vaso quebrado, e nele continha alguns crisântemos vermelhos.

Homura sentiu que a chuva estava mais fria... ou era o seu sangue? Ela se arrepiou toda e engoliu seco. Por que eu chamei Madoka pelo primeiro nome? E ela nem percebeu...

“Homura-chan, nós temos...”

Novamente o escudo recebeu a magia de sua dona e então girou, silenciando Madoka e o mundo. Nem mesmo a chuva fora poupada, assim como as cores.

Agora o mundo pertencia aos covardes, para aqueles que temem o inexorável amanhã. Homura agora tinha o tempo que precisava em seu mundo, para consultar suas memórias dos últimos acontecimentos. No entanto tudo estava confuso, nos flashes de imagens que despontavam em sua mente, ela conseguia reconhecer a grande bruxa, Walpurgisnatch, mas ela lutava sozinha, não havia Mami nem sequer Madoka.

Ainda mais assustada, Homura mal percebera que havia colocado sua mão direita por dentro da parte interna e escura de seu escudo. Velhos hábitos. Velhos? Por que sinto isso?

No vazio infinito dentro de seu escudo, ela tateou por qualquer coisa que satisfizestes suas questões. O que seus dedos encontraram foi um cabo antiderrapante. Ao puxar para fora o que havia ali, Homura ficou boquiaberta.

Era uma Remington modelo 870, espingarda por ação de bomba. Uma arma com eficaz poder de parada até contra alvos de médio porte, desde que eles não tenham alguma armadura ou carapaça. Também é útil para estourar portas e janelas, tão comunentemente encontrado em barreiras de bruxa.

Era a sua voz que ecoava na sua mente com aquelas informações, mas Homura não entendia o porquê, nem fato de ter tal arma guardada consigo. Apenas deveria haver bombas feitas em casa...

Ao ajeitar os óculos com a mão esquerda para observar melhor a arma, Homura fora tomada por uma nova epifania. Ela o removeu de sua face e focou seu olhar na gema sobre a sua mão, que brilhou intensamente.

Tudo agora estava mais nítido.

“Isso está... errado.” Balbuciando com uma voz mais fria, muito mais familiar, Homura se agarrava ao que conseguia se lembrar. Ela soltou os óculos, deixando ela parado no ar e no tempo, e se virou.

Kyuubey já não estava mais lá, apenas Madoka, congelada no tempo em cores desbotadas, mortas.

Em movimentos ágeis, quase instintivos, Homura destravou e procurou assegurar se a arma estava carregada. Caminhando em direção a outra garota, as gotas de chuvas que estavam paradas no caminho voltavam a ganhar movimento e deslizavam sobre a pele assim que elas entravam em contato.

Estando a um passo da Madoka, Homura parou. A garota de cabelos rosa estava boquiaberta, em meio ao que iria dizer, seu olhar estático ignorante ao que ocorria justo a sua frente.

A garota de longas tranças negras respirou fundo e apertou o botão do mecanismo de segurança atrás do gatilho.

Isso não está certo.

Ela apontou a espingarda diretamente contra a gema da alma próxima ao pescoço da Madoka. Nada mais fazia sentido.

E se eu estiver errada?

O cano da arma tremulou, ela parecia mais pesada. Teria ela ficado louca? Perdido alguma coisa?

Eu com certeza perdi muitas coisas, tantas que eu já deixei para trás...

Homura não conseguia olhar mais para aquela face diante dela.

Tantas vezes que já fiz isso que eu não acredito mais em sonhos.

Ela respirou fundo seguidas vezes e rangeu os dentes, o dedo próximo ao gatilho.

Até que o cano da arma fosse segurado e puxado para o lado.

Homura ficou estupefata.

Madoka se movia, as cores vivas em sua expressão horrorizada. “Homura-chan! O que está fazendo?!” Ela puxou novamente, arrancando a espingarda das mãos da outra garota.

Homura apenas recuou alguns passos, sem dizer uma palavra.

Madoka olhou para a arma que segurava. “O que está fazendo...” E a arremessou para longe. A arma deu duas voltas no ar antes de parar, mas logo o mundo voltou a se mover e a força da garota mágica fora revelada quando a espingarda invadiu o prédio vizinho por uma das janelas quebradas.

“Como...” Essa foi a primeira palavra que Homura conseguira proferir.

Madoka desviou o olhar. “Homura-chan...”

“Como isso é possível?” Homura direcionou sua atenção para o seu escudo e sua gema. “A não ser que...”

Madoka cerrou seus olhos e punhos.

“Eu... me lembro...” Os olhos violetas da garota cintilaram. “Isso... não é um sonho.” Em uma conclusão que misturava desgosto e fúria, Homura fez sua gema sobre o topo da mão brilhar e apontou contra Madoka.

Ao menos essa fora sua intenção.

Homura primeiro sentiu um aperto em suas canelas e então o puxar. “Aaahh!” Caindo de costas, ela logo descobriu que sua própria sombra a havia traído, por onde tentáculos negros emergiram. Ela pensou usar seu escudo para cortá-los, mas seus pulsos já estavam sendo segurados por mais tentáculos. Deitada em forma de cruz, ela já não podia fazer mais nada.

A chuva parou.

“Você está certa. Isso não é um sonho.” Madoka voltou a olhar para Homura e deu um leve sorriso. “Quando você criou aquele belo lugar de pradarias verdejantes, nunca fora para você, não é Homura-chan?”

A garota caída apenas engoliu seco como resposta.

“Não... Aquilo nunca seria o seu paraíso.” Madoka continuou, olhando envolta. “Esse sim é, um lugar cruel e cheio de aflições, mas onde a dedicação pessoal é recompensada.” Ela então olhou para a semente da aflição que se equilibrava na palma da sua mão. “Eu dei o meu melhor para construí-lo, pois hoje eu ainda não havia conseguido um sorriso genuíno seu, mas...” Triste, ela observou a semente derreter, transformando-se e uma poça de piche que foi sendo absorvida, desaparecendo sob o tecido branco de sua luva. “Eu ainda falhei.”

“Pare...” Homura começou a se debater furiosamente. “Pare de pretender! Eu sei que você é a maldição dela!”

“Maldição?!” Madoka fez um ligeiro recuo com a cabeça, surpresa. “É assim que ela se refere a mim? É isso que você sente?”

Homura parou, ofegante.

“Por acaso ela contou?” Madoka ergueu as sobrancelhas. “Que ela é uma bruxa?”

“Eu sei...” Respondeu Homura, virando a cabeça para o lado.

Madoka ficou boquiaberta. “Então... c-como ela te convenceu?!” Consciente de que aquela questão poderia não ter retorno, ela ponderou. “Será porque ela se apresentou assim?”

Em um relance, Homura viu que o corpo e as roupas de Madoka escureceram, ficando completamente pretas como carvão, exceto o cabelo e a gema que continuaram com a sua cor original. Não era possível mais distinguir seus olhos, nariz e boca. As roupas derreteram e juntaram-se ao corpo, revelando as curvas da garota.

Homura arregalou os olhos. “O quê!”

A gema brilhou intensamente, primeiramente em tom rosa, mas logo deu lugar para o branco. Os cabelos, outrora curtos, alongaram-se.

Foi a última coisa que Homura conseguiu ver antes da explosão de luz cegá-la. “Gnn!” Quando a luz se dissipou, ela voltou a abrir os olhos lentamente, lutando contra os seus temores.

Madoka estava em um vestido divino, de puro branco, grandes extensões do universo eram reveladas por debaixo de sua longa saia. Seus pomposos laços vermelhos também eram brancos, mas seus olhos ainda eram rosas, até ela os fecharem. “Foi assim?” Inquiriu, mostrando suas írises douradas ao abri-los.

“Não... NNÃÃÃÃOOO!” Homura gritou do fundo dos seus pulmões.

“É verdade... essa não é realmente forma que você gostaria de me ver.” Os longas mechas de cabelo rosa se enrolaram pelo corpo da Madoka, a cobrindo por completo. Quando se desenrolaram, diminuindo de comprimento até o cabelo retornar ao seu corte original, com modestos laços vermelhos os prendendo. Madoka estava agora em seu uniforme escolar, seus olhos rosas acompanhando uma expressão de compaixão.

“Não...” Homura fechou os olhos, balançando a cabeça.

Diante daquela reação, Madoka voltou a ficar consternada. Suspirou. “Ela ao menos disse que te amava?”

“O que disse...” Homura murmurou.

“Não...” Madoka concluiu, confiante. “Ela simplesmente deixou você, de novo.”

Rangendo os dentes, Homura vociferou. “Não ouse jogar eu contra ela!”

“Eu não quero o mal para ela!” Madoka respondeu na mesma altura e depois se acalmou. “Ela me chama de maldição, mas ela que é uma maldição para si mesma.”

Homura ergueu levemente a cabeça, fitando a outra garota.

“Ela tão fraca, Homura-chan, que eu tenho até vergonha. Ela se esconde por medo, pois sabe o quanto é frágil o seu desejo. O Incubator quase se apoderou dela.” Madoka estendeu ambas as mãos para Homura. “E você conseguiu isso.”

A garota caída abaixou o olhar.

“Sem a minha força, ela vai se submeter novamente a quem tentar. Ela se separando de mim, se condenou. Eu preciso salvá-la.”

“Sua força?” Homura olhou para os tentáculos que a seguravam. “E o que mais vem com isso? Você não passa de uma monstruosidade que tomou a forma dela para confundir a mente e o coração.”

“Não... você está enganada. Você...” Madoka levou a mão à boca e virou a cabeça de repente. Ela fechou os olhos com força.

Homura não compreendeu aquela reação.

Até que Madoka virou-se para ela novamente, seus olhos vermelhos e lacrimejados. Ela respirou fundo antes de voltar a falar. “Eu vejo todos os nossos momentos juntas, inclusive onde éramos mais ignorantes. Wehi...hi...”

“Você pode ter as memórias dela...”

“São muito mais que memórias. São emoções, sentimentos.” Madoka retorquiu. “Porém... isso sempre terminava com nós nos separando. Em muitas delas eu não vi como aconteceu, pois eu estava inconsciente, morta por assim dizer. Em outras, no entanto...”

Homura ouvia atentamente, em um semblante sério.

“Eu estava entre as nuvens, mas não era o paraíso. Eu via você lá embaixo, um pequenino ponto entre ruínas. Eu queria dizer que estava tudo bem... levar a mão até você, mas nem as palavras a alcançaram. Era como um turbilhão revolto, uma magia selvagem. Eu só pude assistir aquele pequeno ponto dar às costas, levando um fardo consigo por mim.” Madoka levou as mãos ao peito e arfou lentamente. “Dezenas e dezenas de vezes você fez isso por mim. Eu sei disso agora e nunca, nunca mesmo, terei medo de dizer que te amo.”

Homura engoliu seco novamente quando sentiu a primeira lágrima descer seu pômulo, lágrimas que ela não podia remover com as mãos.

Madoka olhou para o alto e sorriu. “Isso eu nunca contei a você. Sabe, quando a minha mãe deu à luz ao Takkun, eu comecei imaginar... Como seria ter uma irmã? Não jovem como o Takkun, alguém da minha idade. Até pensei em uma irmã gêmea!”

Homura balançou a cabeça negativamente de forma vagarosa.

“Eu tinha sonhos sobre isso, mas você superou todos eles.”

“Você nunca será Madoka.”

A garota em pé se estremeceu com a afirmação seca da outra.

“Você não pode ser ela. Eu sei sobre os seus lacaios, os demônios. Madoka jamais aceitaria tamanho mal que eles trazem...”

“Anjos.”

“O quê?” Homura ficou perplexa com a interrupção da Madoka.

“Eles são anjos. Guardiões e mantenedores da Lei dos Ciclos.”

Homura exasperou. “Sem chance!”

“Ela não te contou?!” Madoka balançou a cabeça. “Como ela pôde ser tão cruel...”

“Pare de me enganar!”

Madoka ignorou aos apelos de Homura e continuou. “Você sabe para onde as garotas mágicas vão quando são levadas e o que acontece com elas também. Nagisa-chan te contou.”

Um tanto surpresa com aquela afirmação, Homura demorou a responder. “Sim, ela me disse que haviam bruxas lá.”

“Não somente bruxas, mas suas barreiras, contidas dentro de uma ainda maior.”

“Contidas dentro de uma barreira de uma bruxa?” Homura digeria a informação. “Quer dizer...”

“Sim, a minha.” Madoka confirmou. “Agora me diga. Como uma barreira poderia ter força para suportar inúmeras outras que, naturalmente, desafiariam sua estabilidade?”

Homura não disse uma palavra. Nem precisou, pois sua perturbada expressão dizia que ela havia compreendido.

“A função deles é de purificar. Ainda que não sejam gemas, as almas dos seres viventes carregam a mesma corrupção. Eles absorvem tal força negativa, assim como acontece quando as garotas mágicas os utilizam.” Madoka ergueu uma de suas mãos na altura dos olhos e entre seus dedos uma gosma negra surgiu e se solidificou, formando um cubo. “Incubator toma essa energia para si em prol do universo, mas o conceito da Lei dos Ciclos é parte dele também e é natural que a energia proveniente desses cubos, desses lacaios, o alimente.”

“Não...”

“Quando fiz meu desejo, eu estava decidida a não me importar com o que eu me tornaria, mas nunca imaginei que esse seria a preço a ser pago. Ela... pode ser o símbolo que todos querem ver, mas sou eu a verdadeira salvadora.”

“NÃO! Você tem que estar mentido!” Homura contorceu em completo terror. “Tem que ESTAR!”

“Eu me importo com as vidas que se perderam por causa disso!” Madoka se exaltou. “Por isso que isso deve mudar... e a morte então não significará mais nada.”

“É claro que não.” Disse Homura. “Quando todos estiverem mortos e nada restar do universo, você vai estar certa disso.”

“O que está dizendo?! Ela disse isso a você também?” Madoka fez uma expressão de nojo. “Por que ela mentiria assim? Instigaria tamanho ódio... eu não me reconheço...” Ela ponderou por um breve momento, até seus olhos crescerem. “Ou ela não mentiu... é que ela não sabe. Não pôde ver, não com os meus olhos.”

“Do que está falando?”

Madoka voltou a dirigir a palavra para Homura, até com certa excitação. “Eu e ela podemos estar em todos lugares e eras ao mesmo tempo, mas estamos separadas mais do que nunca. Ela não consegue compreender o que estou fazendo.”

Homura rangeu os dentes. “Ela compreendeu perfeitamente o que você quer fazer, que é destruir tudo.”

Madoka balançou a cabeça em negação. “Eu aprendi isso na aula de biologia, você devia estar no hospital nessa época...” Sob o olhar zangado de Homura, ela continuou. “Quando uma árvore cai e morre em meio uma floresta, ela oferece seu espaço e a luz do sol para que outra árvore cresça, além de alimentá-la com o que restou de seu corpo defeituoso que se definhava. Homura-chan, eu agora sei, esse universo está condenado.”

“A entropia.” Homura comentou.

“Não, apesar que Kyuubey só está adiando o inevitável, não é disso que estou falando. Eu vi muitas coisas, boas e ruins.”

Homura notou que Madoka agora estava com um olhar perdido.

“Mas as ruins... são... demais.”

Homura então ouviu o som de armas automáticas. Ela virou a face e viu uma família, mãe e seus dois filhos pequenos, que tinha acabado de ser fuzilada por dois soldados. Nisso, como se fosse o vento, uma garota mágica apareceu. Ela portava uma grande lâmina com serra e seu vestido era composto por vários mantos enrolados, de cores azul, amarelo e branco. Em sua bochecha direita jazia uma gema de cor branca como seus cabelos, em forma de um peixe.

Homura ouviu os homens gritarem palavras que ela desconhecia, antes deles serem despedaçados pelas investidas furiosas da garota. Com os seus mantos tingidos de vermelho, ela voltou sua atenção para a família caída. Ela deixou a espada cair e se prostrou diante daquilo.

Homura poderia não compreender o que estava sendo dito, mas sabia reconhecer um choro.

A garota recostou sobre o corpo da mulher e fechou os olhos. A gema, antes branca, estava completamente preta, até o momento em que brilhou uma última vez antes de desaparecer, assim como a garota.

Porém, os outros corpos continuaram ali, recebendo a visita de moscas e outros insetos, até que tudo começou a derreter e aglutinar, formando uma poça de piche que fora absorvida, desaparecendo sob o chão.

“Infortúnios. Eles apenas mudam de nome e forma enquanto nos assolam por gerações.” Madoka chamou a atenção de Homura para que olhasse em outra direção.

Lá estava outra garota, magra e de pele negra, de cabelos e olhos verdes. Não usava muitas vestes, mas a gema verde escura em sua mão não deixava dúvidas do que ela era. Diante dela havia uma vasta plantação completamente murcha.

Homura testemunhou a garota mágica fazer brilhar a gema em sua mão, revitalizando as plantas. Por fim, elas estavam grandes e sadias. A garota sorriu diante do feito, mas logo desvaneceu e ela caiu no chão. Sua gema escurecida abandonou suas mãos antes de sumir junto com ela.

“Você vê? Homura-chan.”

Homura respondeu à Madoka. “Isso é se sacrificar. Esse é o exemplo de se entregar por algo que você acredita, poucos têm coragem para tal, mas...”

Um forte zumbido abafou as palavras de Homura antes que ela pudesse terminar. A garota arregalou os olhos quando viu o enxame de gafanhotos chegarem e devorarem toda plantação.

“Você vê? Qual o sentido disso? Por quê? Homura-chan...”

Homura virou-se novamente para Madoka e viu garota em pé bater em seu próprio peito.

“Por que seu coração? Por que isso te acometeu?”

“Talvez...” Homura pensou por um momento antes de voltar a falar. “Talvez por que eu mereça.”

“E as outras pessoas que tiverem o mesmo problema? Elas merecem também?”

Homura voltou a arregalar os olhos.

“Eu vi demais.” Madoka abaixou a cabeça. “E nesse meio tempo, essa pergunta seria inevitável fazer: será que eu fiz a coisa certa?” Então cerrou os punhos. “E foi a resposta dessa pergunta que realmente nos separou.”

Homura viu Madoka erguer os braços e fazer um gesto como se quisesse abrir uma cortina.

E assim se sucedeu.

As nuvens se afastaram, abrindo um buraco no céu, onde se encontrava o símbolo máximo da Lei.

“’Eterno Feminino’...” Balbuciou Homura.

Subitamente, Madoka ergueu a cabeça o mais que pôde, arcando seu corpo. Ela fitava o imenso símbolo enquanto sua respiração ficara rápida e curta. “Ela se conformou, se entregou ao destino. Jogou fora toda sua humanidade pelo seu propósito, mesmo diante da miséria a sua volta!”

Homura sentiu a terra estremecer. Sua espinha se arrepiou.

Madoka voltou a olhar para a garota no chão, com uma expressão serena. “E sabe porquê?”

“Esperança.” Homura afirmou.

Madoka reagiu com um sorriso com a súbita resposta. “Se há algo que sempre acompanhou os infortúnios, fora esse sentimento.”

Homura semicerrou o olhar. “A Madoka que eu conheço acredita em milagres.”

“Eles existem, sim, mas somos nós que os fazemos!” Disse Madoka. “Eu vi muitos acreditarem no amanhã, um no qual eles não poderiam testemunhar... mas eu testemunhei e digo que nada mudou. A esperança nos mantém e nos motiva, mas são as ações que definem o futuro. É claro que, quando impotentes, nós só podemos nos inebriar nela, enquanto aguardamos o fim de nossas insignificantes existências.” Ela rangeu os dentes e se abraçou, curvando seu corpo ao chão. “Mas esse não é o caso!”

Homura apenas continuou a ouvir, já cansada. Seus braços e pernas presos e dormentes.

“O desejo fora realizado, mas o potencial eu ainda carrego comigo. Porém, essa minha parte que duvida da sua capacidade, ainda espera inerte pelo amanhã assim como aqueles muitos...” Madoka expressou toda sua tristeza em um apelo para a outra. “Homura-chan, nós podemos mudar isso.”

“O que... você pretende?” Perguntou Homura, desconfiada.

“Me ajude a moldar as regras desse universo em ruínas!” Madoka levou a mão ao peito, que brilhou com intensa luz rosa. Seu cabelo se ergueu, empurrado pela imensa magia ali contida. “E as que não pudermos, então que as destruiremos!”

“E então todos nós ficaremos sob o seu jugo.” Homura complementou.

O brilho e a magia se extinguiram. Madoka balançou a cabeça. “Não... não. Cada vida é única, os anjos me mostraram, e jamais desrespeitarei isso.”

Homura franziu a testa. “Como disse?!”

“No passado, presente e futuro, os anjos foram fiéis em sua missão. Eles coletaram para mim, junto com as emoções, as memórias de todos. Não deixaram ninguém para trás.” Madoka abriu um largo sorriso. “Com o poder que nos foi conferido, então, poderemos trazer todos de volta a vida.”

Homura balbuciou. “Isso... não é possível...”

“Porém cada vida é única, com as suas necessidades, sonhos e ambições tão conflitantes. Para sobrevivermos e convivermos nesse cruel universo, a competição foi a única resposta que encontramos e adaptamos.” Madoka continuou. “Você estava certa Homura-chan. Portanto, a única forma de eu respeitar a todos é oferecendo um universo para cada um.”

“O quê!?”

Madoka abriu as mãos e os braços, uma lufada de vento balançara seu uniforme escolar e seu cabelo, juntamente com os laços vermelhos. “Veja o que consegui fazer com o que só tenho em mãos agora. Com você, será possível muito mais. Cada pessoa terá seu mundo para encontrar sua genuína felicidade, sem que ninguém mais se machuque por causa disso.”

Homura estava realmente cansada de tudo aquilo. “Isso é pura insanidade!”

“Insanidade é não fazer nada!” Madoka elevou a voz. “É conhecer essa... podridão e aceitar que pai, mãe, Takkun, todos parentes e amigos, assim como as futuras gerações deles, vivam em meio a isso.” Ela então apontou para o céu, para o símbolo. “Ela aceitou! Pois, para ela, sem sofrimento não teria sentido em haver a esperança pela salvação.”

“Madoka!”

Madoka atendeu ao chamado de Homura em um suspiro de felicidade.

Homura notou a reação e desviou olhar. Teria sido um lapso? Ou genuinamente havia vindo do fundo do seu coração? Essas não eram as dúvidas mais importantes no momento. “Você... acha que isso é certo? Acha que essa é realmente a resposta para aquela pergunta?”

“Eu tive muito tempo para chegar a essa conclusão e você é a minha maior prova de que devemos agir.” Madoka estendeu a mão. “Homura-chan, você também pode encontrar a felicidade. Naquele jardim lindo que você construiu ou mesmo aqui, em meio a destruição, eu e você lutando juntas. Nem eu me lembrarei do que fora feito, pois eu também quero ser feliz e não poderia com o que eu vi.”

“Mas quais são as garantias?” Homura inquiriu. “Como pode ter tanta certeza que alcançará essa utopia?”

O sorriso estampado em Madoka diminuiu de tamanho. “Se falhar, bastará tentar de novo.”

“E se falhar de novo?” Homura ergueu a cabeça. “Você sabe pelo que eu passei! Eu também já tentei salvar a todos uma vez e nunca consegui. No final, eu nem sequer pude manter nossa promessa.”

O sorriso de Madoka se foi completamente. “Não diga que o que você fez foi em vão. O passado que você revivenciou abriu a possibilidade de um novo futuro. Esse é último passo que é preciso dar, mesmo que tenhamos de fazê-lo mais de uma vez.”

“Não. Podemos ter um grande potencial, mas ele não é infinito. Talvez ela não compreendeu seu intento, mas o que ela viu realmente seja o resultado final do que está tentando fazer.” Homura falou em tom de apelo. “Madoka, desista enquanto pode! Não arrisque tudo pelo impossível!”

“Se alguém disser que ter esperança é um erro, eu vou rejeitar essa afirmação todas às vezes.” Madoka foi convicta em suas palavras, terminando com um leve sorriso. “Porém, essa será a última vez que precisarei sentir isso.”

Homura, vendo a determinação da outra, apenas recostou sua cabeça ao solo.

Madoka suspirou. “Eu entendo porque eu não consigo convencê-la. Seu desejo foi o único propósito que restou em sua vida. Toda essa angústia que tu carrega você veste como se fosse uma segunda pele, incapaz de sentir alegria. Como você poderia dar valor ao que é preciso ser feito?”

“Você entende?” Homura olhou para Madoka pelo canto do olho. “Se você nem pode me salvar disso, então como acha que conseguirá o que você almeja?”

“Mas Homura-chan...” Madoka desviou levemente o olhar. “... eu ainda não tentei.”

Homura ficou curiosa com a afirmação e seguiu para onde Madoka estava olhando.

Os tentáculos não estavam mais lá, mas ela continuava incapaz de sentir sua mão, que apresentava veias completamente enegrecidas. Homura arregalou os olhos e prontamente olhou para a sua outra mão, que estava em similar situação. Foi então que se deu conta que aquela perda de sensibilidade estava se espalhando pelo braço, assim como subia pelas pernas.

Mas não era só isso que estava subindo por ali.

O coração e a respiração de Homura aceleraram quando viu Madoka engatinhando sobre o seu corpo. Diante daquilo tudo, ela questionou. “É-É assim que você me ama?”

Madoka parou e franziu a testa, acompanhado de um sorriso. “Wehihi. Ora Homura-chan! Nós não somos mais ignorantes...”

Quando voltou a engatinhar, Homura tentou falar novamente, mas sem êxito. Ela não conseguia sentir mais nada em seu torso, apenas sabia que ainda estava respirando pelo ar que entrava em suas narinas. Contudo, ela também constatou que sua respiração estava mais lenta, calma, totalmente incoerente com o temor que estava sentindo.

“Seu coração estava batendo rápido.” Madoka acariciou a face da outra. “Não tema, Homura-chan. Mesmo que eu precise explorar o fundo da sua alma, você não sofrerá.”

Homura virou o rosto.

“Ou talvez este seja o seu medo de ser feliz.”

Homura já sentia seu pescoço dormente quando de súbito sua cabeça virou, contra a sua vontade. Ela se deparou com a face da Madoka sobre ela, os rabos de cavalo pendendo com a gravidade, projetando uma sombra naquele semblante sereno.

“Você merece algo que já perdeu há muito tempo. Algo que você não encontraria lá, onde há apenas esperanças maquiando desilusões.”

O queixo e os lábios não estavam mais na posse de Homura, ela apenas sentiu a pele esticar, familiar sensação quando a boca se abre. Sua mente formigava e derretia-se, enquanto seu olhar inquieto registrava aqueles olhos semicerrados cor de rosa indo de encontro ao seu.

Enquanto seus ouvidos registravam o entoar estridente de uma melodia.

Isso chamou a atenção de Homura para caixa de música sobre o criado mudo. A bailarina de plástico sobre a caixa rodopiava ao sabor das notas, assim como as pequenas engrenagens que ficavam à vista por detrás de um painel de vidro.

Homura fechou a caixa, parando a música. Aquela era uma melodia para acalmar, mas seu coração parecia estar batendo cada vez mais rápido. Ela respirava fundo, enquanto olhava em volta do quarto fechado, parcialmente iluminado por um raio de luz que vinha de uma pequena abertura entre as cortinas.

Deveria ser a ansiedade falando mais alto. Não tinha como ser diferente, considerando o que ela estava segurando em sua mão. Ela conseguia sentir nos dedos a qualidade do papel daquele envelope, com um selo violeta em forma de losango com bordas douradas.

A longa espera havia finalmente terminado.

Balançando seus longos cabelos soltos, assim como sua camisola branca, Homura atravessou o quarto em direção a uma casa de boneca.

Não era uma casa de boneca qualquer, era tão grande que Homura só era um pouco mais alta que ela. No entanto, apesar de todo espaço ali disponível, só havia uma única residente.

“Ai, venha ver isso!” Homura abriu uma das janelas e enfiou seu braço lá dentro. Com agilidade ela retirou uma boneca, mas lhe faltou destreza. “Oh não!”

A boneca usava um vestido preto, que contrastava com a sua pele de cera branca. Seus olhos azuis e boca estavam coma pintura descascada, mas ainda guardava uma expressão de contentamento, mesmo com o fato de estar careca.

“Desculpa! Eu fui tão afobada...” Homura colocou a boneca sobre o telhado da casa e vasculhou os cômodos com a mão até encontrar o que procurava. Ela então pôs na boneca um chapéu preto com pequenas mechas de cabelo azul coladas nele. “Pronto! Não precisa mais chorar, Ai.” Ela pegou a boneca e mostrou o envelope. “Ainda mais que eu venho com uma boa notícia! Está vendo esse selo? É da companhia de ballet do qual eu te falei. Aqui está resultado do teste que eu fiz lá. Se eu for aprovada, poderei treinar com eles e até quem sabe já participar de alguma apresentação!”

Homura virou a boneca para ela.

“Ah! Claro! Claro! Ai... eu sei que eu seria apenas uma figurante. Para ser a principal, eu tenho que me esforçar muito mais!”

Com a carta e a boneca em mãos, Homura sentou-se na cama. “Na verdade, eu ainda nem sei se fui aprovada.” Ela ajeitou a boneca para ficar sentado ao lado dela. “Sim! Eu disse que eu tinha ido bem, mas tinha tantas garotas bem mais bonitas e talentosas lá...”

A boneca caiu para o lado.

“O-Ok Ai! Eu não vou ficar me torturando! Não precisa repetir.” Homura ajeitou os óculos e removeu o selo com cuidado para não rasgar o envelope. De dentro dele ela retirou a carta caligrafada e passou a ler, aproveitando o raio de luz.

Candidata Homura Akemi,

Temos a honra de informá-la que, conforme avaliação nos quesitos equilíbrio, musicalidade, giro, salto e elasticidade, você foi aprovada...

Homura não conseguiu conter o sorriso, assim como os seus olhos correndo mais depressa sobre o texto.

...como etapa final da seleção, o candidato deve comparecer ao local indicado para avaliação médica...

“Ah sim... ainda tem isso...” Homura deixou a carta sobre cama e pegou a boneca. “Mas isso não é nada. O mais difícil já passou!” Ela caiu para trás, cheia de excitação, enquanto segurava a boneca logo acima dela. “Eu consegui, Ai! Você deve estar tão orgulhosa...”

Graças a gravidade, a cabeça da boneca pendeu.

“Hã! O que foi?” Homura ficou apreensiva. “Sim, depois de eu passar no exame médico, eu terei que me mudar para lá. Não era isso que você queria?”

Homura moveu a cabeça da boneca para que olhasse nos olhos dela.

“Hahaha! Não seja boba Ai! Eu jamais esqueceria de você, eu aliás vou levá-la comigo!” Ela trouxe a boneca para mais perto de si. “Eu prometo... ninguém, mas ninguém mesmo, vai tirar essa felicidade de nós.” Fechou os olhos e a beijou.

Quando os abriu novamente, Madoka estava se afastando, segurando entre seus lábios uma gema com uma moldura de ébano em forma de coroa. A garota de cabelo rosa ergueu a cabeça e engoliu a gema, deixando que objeto lentamente descesse pela sua goela. Depois ela saiu de cima, ficando ajoelhada ao lado da garota deitada. “Homura-chan, como se sente agora?”

Homura se levantou, ficando de joelhos diante da Madoka. Ela então examinou as veias negras em suas próprias mãos e depois passou elas em seu rosto em situação similar.

“Não se preocupe, isso vai passar.”

“Madoka... eu...” Homura não proferiu mais nenhuma palavra, pois sentira ser abraçada.

“Você não precisa mais segurar Homura-chan. Eu estou contigo.”

“Obrigada... obrigada...” Os olhos escuros de Homura lacrimejaram. “Eu sentir isso... somente Madoka me faria me sentir assim.”

“Saiba que se eu fizer alguém corajosa como você chorar, será apenas por felicidade, pois eu amo você.” Madoka passou a mão na cabeça de Homura. “Vamos, me abraça bem forte.”

Apesar do pedido, Homura se afastou.

“Homura-...chan?”

Homura abaixou a cabeça. “Esse era o plano dela. Eu mantê-la presa naquele lugar, para sempre se possível.”

“Eu sei.”

“Mas ela deve saber que você poderia escapar.” Homura desatou a falar. “Se ela resolver lutar, se ela...”

Madoka silenciou Homura colocando um dedo nos lábios negros dela. “Não, já acabou.”

“Hã...?”

“Eu recuperei o fragmento que estava contigo, eu agora estou conectada, sou uma novamente.” Madoka continuou. “Como você já sabe Homura-chan, nada tem volta, mas ainda podemos reconstruir o que perdemos.”

As duas garotas entrelaçaram seus dedos.

“Juntas, nenhuma força existe que possa negar os nossos sonhos.”

Homura esboçou um sorriso.

Madoka também. “Vamos.” Contudo, assim que as duas se levantaram, seu sorriso desapareceu em uma expressão de dor. “Guuuh!”

“Madoka?”

“Gnnnnggg!” Madoka segurou sua garganta e gritou. “GNNNAAAHHH!”

“Madoka!” Desesperada, Homura tentava em vão segurar os espasmos da outra.

“Ugk.. guk... unn...” As bochechas de Madoka incharam e, arcando para frente, ela vomitou um jato de piche. Com o alívio, Madoka examinou a poça que formara no chão e ali estava: com um último debater de suas patas, a salamandra negra expirou.

Nesse mesmo momento, ela ouviu o som de um baque.

Madoka então viu Homura caída, flácida, como uma marionete que tivesse suas cordas cortadas. “Homura-chan? Homura-chan?!” Ela se abaixou e tentou reanimá-la. “Homura-chan!”

Gotas negras caíram sobre o semblante sem vida e com veias negras da garota caída.

“Homura-chan...” Madoka contorceu a face em tristeza, passando a mão para remover o filete de gosma negra que escorria pelo canto da boca. Ela se virou para onde estava a salamandra e não a encontrou mais. Em seu lugar estava um globo negro com adornos metálicos que remetiam a uma ampulheta além de um pino em sua base, no topo do globo um cubo se equilibrava em um de seus vértices, lembrando a forma de um losango.

Madoka foi até a semente da aflição e deixou ela equilibrando-se na palma da sua mão. “Eu ainda não estava forte o bastante...”

Ela olhou furiosa para o grande símbolo da Lei que estava no céu. “Por que... por que fez isso? Jogando fora o desejo... seria esse um ato de desespero? Então não o merece mais.” Depois retornou sua atenção à semente. “Quando eu reaver o último fragmento que me falta, eu retornarei para buscar você.”

Ela deu um longo beijo no objeto e o recolocou com cuidado no chão.

Sob um flash de intensa luz rosa, Madoka voltou a vestir seu uniforme de garota mágica, com o arco em mãos. Determinada, ela o apontou para o símbolo e uma poderosa flecha de energia se formou. “Chega de esperança, é hora de fazer nossos sonhos se tornarem realidade.”

Ela soltou e a flecha voou com velocidade, acompanhada logo atrás por uma legião de tentáculos negros.

/人 ‿‿ 人\

Oriko se aproximava mais do grande prisma, com um olhar fixo para a Madoka que estava lá dentro.

Logo atrás, Kyuubey a acompanhava. [Isso que aconteceu... é obra sua?]

“Apenas garantindo o sucesso.” Oriko parou. “Certo? Incubator...”

[Seria esse mesmo caso para o fato de você ter ficado com um dos nossos corpos?]

Oriko foi concisa. “Correto.”

[Hmmm...] Kyuubey tomou a frente da garota. [Mas Yuma não sabe disso.]

Oriko permaneceu em silêncio, sem olhar para a criatura.

[Emoções.] Kyuubey se sentou, balançando a sua cauda. [Os humanos não só conseguem conviver com isso, mas também as usam como ferramentas de uma forma muito peculiar.]

“Por exemplo...”

[A forma como você manipula Yuma por tanto tempo. Nós nunca conseguiríamos tal controle, exceto em experimentos com supressão de livre arbítrio, mas infelizmente é muito custoso...] Kyuubey abanou as suas orelhas. [O mais próximo que pudemos chegar no assunto emoção foi com o design desse corpo a base de carbono, baseado em animais adaptados ao seu planeta que convivem com vocês.]

“Se achou que isso iria atiçar minha curiosidade a respeito da sua natureza, você se enganou completamente.” Oriko sorriu. “Assim como está enganado quanto a todo resto.”

[Enganado? Não. Eu estaria enganado se eu estivesse erroneamente convencido do resultado, mas eu apenas estava levantando uma hipótese.]

“Uma... hipótese?” Oriko fitou Kyuubey.

Mas a voz que surgiu em sua mente indicava que quem falava agora era um outro Kyuubey que vinha por detrás. [Oriko, eu sei que, dentre os da sua espécie, você tem uma capacidade de compreensão acima da média. Onde há uma hipótese, pode haver outras.]

“Como...”

[Pode ser que você não seja tão competente quanto aparenta ser e sim que Yuma esteja permitindo isso.]

Oriko prendeu a respiração.

Os dois Kyuubeys penderam a cabeça para o mesmo lado e piscaram os olhos de forma síncrona. [E vejo que você chegou a uma conclusão similar.]

“Continue...”

[O motivo mais provável para ela fazer isso seria a emoção que está atrelada ao desejo dela.]

“’O poder para proteger aqueles que eu amo.’” Oriko repetiu as palavras da menina.

[O conceito de tal sentimento está além da nossa compreensão. Contudo, a lógica da sentença é bastante trivial.]

“Do que está falando?” Oriko notou que mais Kyuubeys se aproximavam.

[O que aconteceria se ela se tornasse incapaz de exercer o ‘amor’?]

Oriko então ponderou. “Nesse caso o desejo dela se tornaria impossível, mesmo depois de tê-lo feito. Incubator, o que aconteceria com ela?”

As vozes dos Kyuubeys se misturavam, mas a mensagem era clara. [Uma gema da alma está preenchida pela benção do desejo. Assim como algo que está cheio pode ficar vazio, ou algo quente ficar frio, a ausência deste deixa um espaço vago para o seu oposto.]

Oriko apertou os lábios, diante de todos aqueles olhos vermelhos brilhantes ao redor dela.

[Algo similar aconteceria com você, não?]

“Mas não vai.” Oriko foi enfática.

[Bem... em matéria de previsão, eu não posso competir contigo.]

“Aonde queria chegar com isso?” Oriko questionou com irritação.

[Apenas quero avisar que a sua cooperação é valiosa e, se tudo correr bem, podemos ajudá-la para que Yuma não sofra tal destino.]

Oriko ergueu uma das sobrancelhas. “Garantias de sucesso, não é?”

[Exatamen...] As vozes subitamente pararam. Os Kyuubeys se viraram em direção ao prisma.

“Vocês devem estar sentindo agora.” Disse Oriko.

[Era para acontecer assim?]

“Perfeitamente...” Oriko confirmou, enquanto observava o prisma pequeno que orbitava o maior escurecer. Ainda que já tivesse visto tantas vezes, seu coração sempre apertava nesse momento.

O prisma se quebrou e uma monstruosidade de tentáculos se formou com essência que exalava dele.

Tudo isso estava sendo presenciado pelos inúmeros olhos ali presentes. [Então esta é a entidade que aguardávamos, ela é realmente única.]

“E letal também.” Oriko chamou a atenção. “Incubator, é melhor se afastarem se possível. Essa coisa parece... ter ódio de você. Não queremos problemas desnecessários.”

[Certo. Devo presumir que onde você está seja seguro o suficiente.] Os Kyuubeys que não estavam conectados ao globo negro acima do grande prisma se deslocaram para ficarem atrás de Oriko.

“Vejo que estamos nos entendendo...” Oriko testemunhou a criatura negra se agarrar ao prisma aonde Madoka estava inconsciente e então ela olhou para o lado, mais precisamente para um ponto vazio no meio da galeria.

Ela molhou os lábios com a ponta da língua e acenou com a cabeça em sinal de cumprimento. “Olá.”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: Sem futuro



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Visionária" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.