Não era pra ser assim... escrita por Madreamer


Capítulo 2
O passado de Jean




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Corri pelo quarto atrás de roupas que estivessem apresentáveis, já que as minhas estavam amarrotadas. Peguei uma calça jeans, uma blusa qualquer e o mesmo tênis encardido de sempre. Disparei para a cozinha, passei margarina em um pão e fui comendo pelo caminho da escola. Consegui chegar no exato momento em que o sinal bateu. Apertei o passo para chegar à sala, onde fui encarado por todos até sentar no único lugar disponível: ao lado de Jean.

— Bom dia, gracinha — disse ele, sorrindo. Um sorriso sincero, não aquele sorriso de um maníaco.

— Bom dia — respondi sem retribuir o sorriso.

Eu mal me aconcheguei na cadeira e ele já estava me beijando, um beijo rápido, mas calmo e delicado, como se eu pudesse quebrar ao menor toque brusco. Assim que ele me soltou, empurrei-o para o lado e encarei-o com raiva. Ele me fitou e disse "gracinha" só com os lábios, sem emitir som algum.

A primeira aula ocorreu normalmente, mas na segunda eu tive uma desagradável surpresa:

— Vocês deverão formar duplas, que eu escolherei. Terão duas semanas para conhecerem um ao outro melhor. Quero que façam dois desenhos: um sobre a primeira impressão que tiveram do parceiro e outro sobre sua visão do parceiro ao ver como ele realmente é — disse Mike, o professor de artes visuais. — Assim que souberem suas duplas, juntem-se a ela e comecem a falar um pouco de si.

O sorteio estava rolando sem problemas, mas quando Mike determinou que Jean seria a dupla de Marlo, este quase desmaiou de medo. O terror estava marcado em seu rosto.

— Marco! — chamou-me Mike, vendo a reação do garoto. — Tem problema para você fazer dupla com o Jean, já que tá sentado ao lado dele?

"Sim, tem problema sim. Este cara é um tarado. Você não pode me deixar fazer dupla com ele, ainda mais por duas semanas!".

— Não, problema nenhum — disse. Sim, eu cavei minha própria cova.

— Pensei que fosse dizer não, gracinha — sussurrou Jean, aproximando sua carteira da minha.

— É, eu também pensei.

— Bem, vamos começar. Por que se mudou para Trost?

— O-o quê?! — droga, vou mesmo ter que responder este cara. — Por causa da violência em Shiganshina. A herança que meu pai nos deixou era pouca e já estava acabando. Mudamos pra cá porque ouvimos que a violência aqui é baixa, e estavam errados, e a cidade também não é muito cara. Poderíamos viver com o resto da herança até minha mãe arranjar outro emprego. A empresa na qual ela trabalhava não estava pagando bem, então foi a escolha que fizemos: mudar de cidade.

— Interessante — balbuciou com o cotovelo apoiado na mesa e seu rosto escorado na mão, seus orbes castanhos fixos em mim. — Você tem irmãos?

— Não.

— Tá gostando da cidade?

— Não muito. A violência aqui não é baixa como nos disseram — lancei-lhe um olhar de ódio.

— Acontece... — deu de ombros. — Quais são seus passatempos?

— Ler, assistir animes e séries, ler mangás, desenhar... Espera aí! Eu estou num interrogatório, por acaso? Por que você é o único perguntando?!

— Porque você não quer saber nada sobre mim. Tanto que me quer longe de você.

Ele tinha razão.

— Mas eu vou ter que saber, não é mesmo? Não estou com vontade de perder pontos praticamente grátis.

— Tudo bem. Pergunte o que quer saber — cedeu ele, por fim.

— Você tá com quantos anos?

— Dezesseis, assim como você.

— E por que, com dezesseis anos, você se tornou líder de uma gangue?

Jean não respondeu. Fitou o chão com o olhar desfocado para depois me encarar.

— Por que quer saber isso? — perguntou com a voz levemente embargada.

— Por que você quis saber sobre meu pai? — perguntei em tom desafiador e ele não respondeu.

— Não é da sua conta! — disse ele por fim.

Após isso, ele nem me olhou e passamos o resto do horário em silêncio. Durante a terceira aula, também nos mantivemos calados. Jean contemplava o nada, seus olhos estavam vidrados e os olhos marejados. Ele tremia levemente.

Só no intervalo que nos falamos. Ao contrário do dia anterior, eu o prendi na sala dessa vez.

— O que você quer? — perguntou rudemente.

— Eu? Eu quero saber o que aconteceu com você que eu não posso nem tocar no assunto. Você disse que entende o que eu passei. Por que eu não te entenderia? Confie em mim.

Eu mesmo não sabia o que estava dizendo. Fui vencido pela curiosidade e também pela preocupação. Eu o havia deixado daquele jeito: triste e frágil. Não poderia deixá-lo assim.

Passaram-se alguns minutos e não obtive resposta. Eu o encarava e seus olhos ainda miravam o nada.

— Por favor, Jean — peguei sua mão e a apertei reconfortantemente, como ele fizera comigo, mesmo que o corte do dia anterior doesse —, confie em mim.

Novamente, ele não respondeu coisa alguma, mas as lágrimas saíram pouco depois. Eu o abracei e acariciei seus cabelos. Ficamos assim até o fim do intervalo se aproximar, quando Jean se acalmou e parou de chorar. Eu sequei as lágrimas que restavam em seu rosto.

— É justo... Você me contou sobre seu pai e eu te conto sobre a gangue... Parece justo — ele esboçou um sorriso triste — Mas aqui... Não é um bom lugar. Você pode esperar pra eu te contar em outro lugar?

— Claro. Sem problemas — concordei. Eu já havia pressionado-o demais.

Ele me deu outro sorriso triste. Acabamos ficando sem lanchar, afinal, só faltavam três minutos para a próxima aula começar.

Jean tentava se focar nas aulas, entretanto, falhou, já que não anotava nada no caderno, apenas rabiscos incompreensíveis. Eu também não prestei muita atenção. Corroia-me tê-lo num estado tão deplorável.

Passou-se uma eternidade até que as aulas finalmente chegassem ao fim. Jean saiu da sala apressado e eu só joguei os materiais na mochila para conseguir alcançá-lo.

— Jean! — chamei-o ao vê-lo atravessando o portão de saída. Corri até ele. — Você não quer almoçar na minha casa? Poderemos adiantar o trabalho de artes também.

— C-certo — consentiu.

— Mãe! Meu... Ahn... Amigo veio almoçar aqui pra depois fazermos um trabalho. Tem problema? — perguntei ao chegar em casa, largando a mochila num canto da sala.

— Problema nenhum! — respondeu Marina, minha mãe. — Tá quase pronto!

— Vem! Vamos pro meu quarto — disse para Jean colocando a mochila nos ombros novamente. — Estaremos lá em cima — gritei para minha mãe poder ouvir.

— Certo. Mas não vai me apresentar seu "ahn... amigo"? — gritou ela de volta.

Guiei Jean até a cozinha.

— Mãe, Jean. Jean, mãe.

— Prazer. Eu sou "Mãe” — zombou ela. — Marina — acrescentou.

— Prazer — respondeu Jean, meio fechado.

— Não seja tímido! É bom saber que meu pequeno Mama já tá se enturmando — disse com um sorriso de orelha a orelha. — Chamarei vocês quando o almoço ficar pronto.

— Certo — disse eu, corado pelo "Mama".

Enquanto subíamos a escada, Jean me lançou um olhar debochado.

— Nem uma palavra sobre o "Mama".

— Certo... Pfffff — e ele começou a gargalhar. Uma gargalhada gostosa que eu poderia ouvir o dia inteiro.

Lancei-lhe um olhar repreendedor e cheio de ódio, fazendo-o se calar.

— Que foi, Jeje? Ficou com medo de mim? — disse eu quando adentrarmos o quarto.

— Jeje?! De onde diabos você tirou isso?!

— Não sei... Talvez você pareça muito fofinho para ser um líder de gangue — zombei.

— Fofinho? Você me acha fofinho?

— Agora que você falou, cara de cavalo soa melhor.

— O quê?!

— Que foi, cara de cavalo? Eu sou o único que te chama assim? Nunca reparou que suas feições lembram as de um cavalo?

— E você? Todo sardento, com esse seu jeito de bonzinho, parece até um... Um... Jesus sardento! — retrucou.

— Acho que sua ofensiva falhou com sucesso, cara de cavalo — sorri marotamente. Jean apenas bufou de frustração.

Sentamos-nos na cama. Depois dessa seção "zoar é tudo na vida" ficamos alguns segundos em silêncio.

— Jean? Será que você poderia me contar seu motivo pra ser líder de uma gangue?

Suas feições que antes estavam relaxadas transformaram-se bruscamente e ele estava tenso, uma carranca estampada no rosto.

— Você não vai me deixar em paz enquanto eu não falar, certo?

Ele nem esperou uma resposta:

— Assim como você, eu perdi minha família pra gangues. Não foi só um membro, foi minha família inteira: meu pai, minha mãe e minha irmã. Estávamos na cidade vizinha, Stohess, procurando por umas especiarias, já que meu pai era cozinheiro. Tínhamos acabado de sair da loja quando fomos abordados por uma gangue. "Ora, ora, ora. Parece que temos carne fresca por aqui!", dissera o líder. "A mãe daria uma ótima empregada, já a filha seria uma ótima amante. Geovani, o garoto também é bem atraente. O que acha de ficar com ele? Você não se amarra num jovenzinho?", dissera outro. Meu pai se pôs em nossa frente, tentando nos proteger. A gangue prendeu-nos num círculo enquanto o líder espancava meu pai até que ele caísse. Em seguida, arrastou-o pra frente do círculo e o alvejou com inúmeros tiros. "Corram!". Foi a última coisa que minha mãe disse antes de se lançar sobre a gangue, causando uma distração. E foi o que eu fiz: encontrei uma brecha e corri, corri até tropeçar em meus próprios pés. Eu esperava olhar para trás e encontrar minha irmã, mas tudo que vi foi uma rua vazia. Voltei para o local onde fomos atacados e encontrei os corpos dos meus pais. Nunca mais vi minha irmã. Desde então, eu vivo sozinho — as lágrimas começaram a cair incessantemente. — Não me sobrou nada. Eu sempre os vejo em minha mente, o rosto de cada um deles... Não! Não! — ele começou a gritar. — Não se aproximem da minha irmã! Deixem-nos! — ele ainda gritava. Estava num transe e revivia o acontecido em sua mente.

Puxei-o para mim, apoiando sua cabeça em meu peito. Abracei-o forte e acariciei seus cabelos. Ficamos lá por um bom tempo. Surpreendi-me ao ver que minha mãe não apareceu no quarto para ver o motivo dos gritos.

Quando ele finalmente se acalmou um pouco, tomei coragem para perguntar:

— Isso foi quando?

— Há cinco anos. Eu tava com onze anos e minha irmã com catorze.

— E por que você lidera uma gangue agora? Eu não compreendo. Você deveria querer acabar com as gangues, não fazer parte de uma.

Jean respirou profundamente, ainda chorando, antes de continuar.

— Porque eu quero vingança. E porque acredito que ainda posso encontrar minha irmã.

Eu o embalo num abraço mais forte.

— Onde você vive? Como é um menor de idade não pode ter uma casa. Mora num orfanato? — escolho bem as palavras. Ele estava tão vulnerável e era por minha culpa. Eu poderia tentar matá-lo e ele nem revidaria.

— Eu moro nas ruas — ele desfaz o abraço. — Já fui pego por um orfanato, mas fugi em dois dias. Desde então eu vivo num armazém abandonado de Trost. Costumávamos vender armas. Com o que conseguimos eu ainda posso sobreviver por uns anos. Às vezes eu passo uns dias na casa dos meus amigos, quando eles oferecem.

Fiquei pasmo. Jean mora nas ruas!

— E-eu sinto muito, não sei o que dizer — gaguejei.

— Não precisa dizer nada.

Jean secava as lágrimas. Eu o envolvi em outro abraço, acariciando sua cabeça.

— Você quer dormir aqui hoje? Pra não ter que dormir nesse armazém.

Ele se afastou apenas o suficiente para me olhar nos olhos.

— Você não tá brincando — murmurou.

— Por que eu brincaria sobre isso? Podemos colocar um colchão no chão. É só você se manter na cama e não pensar em nada travesso enquanto eu durmo. Se é que você me entende.

Consegui fazê-lo esboçar um sorriso.

— Eu... Eu aceito sua proposta. Não vai ter problema pra você ou sua mãe?

— Problema nenhum.

— Meninos! Tá pronto! — gritou minha mãe.

— Já estamos indo! — gritei de volta. — Tem um banheiro ali — apontei para uma porta na parede oposta à da cama. — Quer lavar o rosto pra se acalmar mais um pouco?

Ele assentiu e foi para o banheiro, voltando alguns minutos depois. Seguimos em silêncio à cozinha e cada um se serviu. Jean sentou ao meu lado e minha mãe ficou na cadeira em frente a mim.

— Então, Jean, você também é novo na escola? — perguntou minha mãe enquanto comíamos.

— Não. Eu sempre estudei lá.

— Ela é realmente boa pra ser considerada a melhor escola pública de Trost? Dizem que é até melhor que algumas particulares...

— Sim. É uma escola muito boa, sim.

— Você avisou seus pais que tá aqui?

Jean cravou fundo suas unhas em minha perna, sob a mesa.

— Sim... — hesitou. — Eles sabem.

— Por falar nisso, será que Jean pode dormir aqui por um tempo? — perguntei. — Os pais dele vão viajar por uma semana ou mais.

— Claro. Sem problemas. Podemos passar na sua casa pra buscar umas roupas mais tarde.

— C-certo — suas unhas afundaram um pouco mais em minha perna.

Depois disso comíamos e conversávamos sobre coisas triviais. Quando eu e Jean terminamos, fui impedido de lavar a louça devido ao corte do dia anterior, então Jean o fez e fomos para meu quarto quando ele terminou.

— Então, o que quer saber sobre mim? — perguntou ele, sentando-se na cama.

— Por enquanto nada. Vou fazer o primeiro desenho agora. Se você também quiser desenhar os seus tem folha na gaveta da escrivaninha e você pode pegar lápis no meu estojo — disse, jogando o objeto sobre a mesa de estudo. — Vou beber água. Quer um pouco?

Jean negou, ainda na cama.

Quando voltei, deparei-me com Jean rodeado por folhas sobre a cama. As folhas eram meus desenhos.

— Jean! O que tá fazendo?! — perguntei indignado.

— M-Marco! — pulou da cama, assustado. — E-eu... A pasta caiu no chão e —

— E você inventou isso agora! — cortei-o.

— D-desculpe. A pasta me chamou a atenção — hesitou um pouco. — Mas você desenha muito bem. Por que não posso ver?

— Porque... Aí tem coisas que eu não gostaria que ninguém visse.

— Tipo o quê?

— Tipo uns desenhos de... Antigas paixões fracassadas.

— Você não precisa se envergonhar disso. Ninguém deve saber quem são essas pessoas... — ele passou a mão por um dos desenhos. — Eles são muito bons. Cada traço, cada detalhe. Você não gostaria de me desenhar?

Seus olhos brilharam. Como aquele garoto que me ameaçara ficou tão doce e ingênuo? Será que é porque ele me contou o que passou e começou a confiar em mim?

— C-claro! — gaguejei pela surpresa. — Como você gostaria que eu te desenhasse?

— Como você prefere? Não tenho ideia de que pose fazer... Você é o artista, você escolhe — sorriu entusiasticamente.

— Ok. Deixe-me pensar.

Sentei-me na cama com o caderno no colo, lápis e borracha em mãos. Fitei Jean por um tempo e depois olhei ao meu redor.

— Tive uma ideia!

Fechei um pouco a janela que ficava em frente da escrivaninha, deixando apenas um pedaço do quarto ser iluminado e arrastei a mesa de estudo para um canto. Em seguida, empurrei a cama de modo que esta recebesse o feixe de luz. Jean me olhava curioso.

— Você gosta de ler, Jean?

— Sim, eu gosto sim. Não tem problema arrastar os móveis desse jeito?

— Não, minha mãe já se acostumou. Toma — entreguei-lhe um livro que tirara da estante. — Se ajeite na cama como preferir.

Jean me olhou desconfiado, mas pegou o livro e se direcionou para a cama. Sentou-se com as costas apoiadas na cabeceira da cama, com o livro no colo, e me encarou indagador.

— Abra o livro em qualquer página e finja estar lendo.

E le fez o que mandei. O sol clareava o ambiente através das venezianas abertas. O feixe de luz mais forte iluminava um pequeno pedaço do rosto de Jean, dando destaque aos seus olhos castanhos. Seu semblante estava calmo e relaxado. Coloquei a cadeira em frente da cama e esbocei a cena.

— Ok. Pode se mexer — disse depois de um tempo concentrado na tarefa.

— Tá pronto?!

— Não, ainda não. Fiz só um esboço, ainda tenho muito pra fazer.

— Ok — seu brilho nos olhos diminuiu.

— Por que não desenha sua primeira impressão sobre mim enquanto eu termino?

— Ainda não sei o que desenhar... Posso dar uma olhada na sua estante?

— Claro.

Jean foi em direção à estante, parando em frente da mesma e admirando-a. Ele tocou um livro com extremo cuidado, curiosidade estampada no rosto. Fiquei embasbacado ao ver que aquele garoto cruel tinha tal paixão como livros. Ele percebeu meu olhar e voltou-se para mim.

— O que foi? Por que tá me olhando assim?

— Hã? Eu só estou pensando como alguém encantado por livros desse jeito pode ser capaz de matar alguém.

Sua visão desfocou um pouco, mas logo voltou ao normal.

— Acontece, não é mesmo?

— Meninos! Tenho que ir pro hospital! Mais tarde nós pegamos suas roupas, Jean! — minha mãe gritou antes que eu dissesse alguma coisa.

— Ok! — gritei de volta.

Jean voltou aos livros, tocando cada um com cuidado. Concentrei-me no desenho por um longo tempo, dando atenção a cada minuciosidade. Isso demorou bastante, já que eram quase seis de tarde quando:

— Acabei! — clamei triunfante.

— Sério?! — Jean levantou os olhos do livro que lia sobre minha cama. — Posso ver?

— Claro!

Levantei-me da cadeira e sentei na beirada da cama, estendendo-lhe o desenho.

— Uau! Tá perfeito! Cada detalhe, os efeitos de luz e sombra...

Seus olhos brilharam intensamente. Eu os fitei e me afoguei naquela imensidão castanha. Meu corpo agiu automaticamente, pois, quando me toquei, eu acariciava a bochecha de Jean e me aproximava para um beijo. Jean, por sua vez, aceitou o ato que se intensificava. Em algum momento consegui reunir a pouca sanidade que me restava para interromper o gesto e empurrar Jean levemente.

— D-desculpe por isso. Não sei o que deu em mim — murmurei olhando o chão.

— Não precisa se preocupar.

Pude vê-lo lambendo os lábios pelo canto do olho. Um silêncio nos cercou, juntamente com a tensão que pairou no ar. Depois desse momento, finalmente quebrei o silêncio:

— Não quer passar no armazém agora para pegar umas roupas?

— Sim, sim. Vamos.

Assenti enquanto guardava o desenho na pasta, descendo a escada em seguida e sendo acompanhado por Jean.

Jean ia à frente, me conduzindo. Tivemos que passar por becos escuros e apertados e por passagens que eu não fazia ideia que existiam para chegarmos ao armazém. Ele era grande e estava imundo. Boa parte das portas estava trancada e Jean abriu uma no fim do corredor do segundo andar. Aquele era o único cômodo que não tinha teias de aranha. Possuía uma estante velha e desgastada com alguns livros também velhos, tanto didáticos quanto de literatura, e uns cadernos surrados. A janela estava coberta por um pano escuro e sob ela se encontrava algo como uma cama: um bloco de madeira coberto por lençóis e mantas.

— Você vive aqui? — perguntei.

— Sim. Não tenho muita opção, não é mesmo?

Não respondi. Jean pegou uma grande sacola que se encontrava sobre a estante e tirou de lá algumas roupas.

— Vamos? — perguntou.

Assenti saindo do cômodo juntamente com ele, que trancou a porta.

Voltamos a nos esgueirar pelos becos e passagens para voltarmos à minha casa. Jean deixou as roupa sobre a cama e sentou-se na mesma. Sentei-me ao seu lado, mas ficamos em silêncio.

— Ei... Marco... — disse ele por fim.

Levei meu olhar a ele.

— Você acha que um dia... Poderia me dar uma chance? Eu acho... Eu acho que estou realmente gostando de você... Desde o primeiro momento que te vi me senti atraído por você. Agora que o conheço melhor e sei o quão bom você é e sou atraído ainda mais... Você daria uma chance pra mim? Uma chance pra nós?

— O-o quê?! E-eu não sei! Eu... Talvez?

Jean sorriu com a resposta.

Refleti sobre o assunto. Nunca tive alguma preferência sexual, então, para mim, não teria problemas sermos ambos garotos. Jean estava realmente se comportando, já que o primeiro beijo daquele dia fui eu quem iniciou. Talvez fosse porque ele não queria me assustar mais, talvez porque ele ainda estivesse abalado pelas lembranças que compartilhou...

— Tá com fome? — perguntei após um breve momento de silêncio.

— Estou com fome dos seus lábios — disse num tom sedutor, caindo na gargalhada em seguida, sendo acompanhado por mim. — Agora, falando sério, sim eu estou com fome.

— Então vamos comer alguma coisa.

— Certo.

Chegamos na cozinha e eu pus mais de metade da comida que temos sobre a mesa.

— Pra que tudo isso? — pergunta Jean.

— Pra você escolher.

— Eu vou fingir que isso é normal...

— Então o que você quer comer?

— Hum... Tem farinha de trigo aqui? — perguntou após uma olhada na mesa. Chequei no armário e respondi:

— Sim, tem sim. Pra quê?

— Pra eu fazer um bolo. Isso soa meio gay, mas já que você me desenhou acho que posso retribuir com algo em que sou bom.

— Tudo bem... Pode usar a quantidade que precisar — sentei-me em uma das cadeiras.

— Certo. E agora levante esse traseiro da cadeira e arranje alguma coisa para fazer!

— C-como assim? Estou sendo expulso da minha própria cozinha?!

— Sim, isso mesmo!

Resolvi não protestar e fui para a sala assistir TV. Quase uma hora e meia depois, Jean aparece ordenando-me que feche os olhos. Obedeço e ele senta ao meu lado.

— Abra a boca — disse ele.

Obedeci novamente. Poucos segundos depois senti o gosto do melhor bolo do mundo, uma mistura de chocolate, nozes e um toque de laranja.

— Uou! Tá muito bom! Quem te ensinou?

— Ninguém. Meu pai até tentou me ensinar, mas acabei aprendendo sozinho — colocou outro pedaço do bolo em minha boca.

— Posso abrir os olhos?

— Sem problemas.

Abri os olhos e Jean me olhava com desejo.

— Po-por que tá me olhando assim?

Jean não respondeu. Avançou em meu rosto, lambendo minha bochecha direita, inclinando-se um pouco mais e roçando seus lábios nos meus. Recuou rapidamente.

— D-desculpe. Tinha um pedaço de bolo ali — fitou o chão.

Devido à surpresa, demorei a responder.

— Tudo bem... Eu acho. Bem, agora estamos quites — sorri. Jean subiu sua visão e observou meus olhos por um longo tempo, voltando a olhar o chão.

— Certo... — disse por fim.

Fomos para a cozinha e lá comemos em silêncio. Jean corava e fitava o chão toda vez que nossos olhares se encontravam. Quando estávamos satisfeitos, Jean fez questão de lavar a louça e quando ele terminou voltamos para o meu quarto.

— Quer tomar banho? — perguntei-lhe.

— Você não quer tomar primeiro?

— Não, tá tudo bem.

— Certo — dirigiu-se ao banheiro sem mais uma palavra.

E u fique esboçando coisas aleatórias até que a voz de Jean me trouxe de volta ao mundo real.

— Marco? Onde tem uma toalha?

Droga! Esqueci de entregar-lhe uma!

— Espere aí! Vou pegar — respondi.

Peguei no armário a toalha e adentrei o banheiro sem lembrar de um “pequeno” detalhe: Jean estava nu. Suas bochechas ruborizaram ao me ver e eu desviei o olhar, entregando-lhe o objeto.

— Desculpe — murmurei.

Jean pegou a toalha de minhas mãos apressadamente e eu voltei para o quarto sem esperar uma resposta. Eu estava tão surpreso quanto Jean, porém, a imagem de seu abdômen bem definido insistia em permanecer em minha mente. Repreendi-me até Jean me tirar de meus devaneios novamente. A toalha estava presa à sua cintura e ele foi até a cama, onde tinha deixado as roupas.

— Hey! — virou-se para mim. — O que achou da visão? — sorriu maliciosamente.

— O-o quê?!

— Vai dizer que não gostou? — aproximou-se de mim, fazendo-me recuar e cair na cadeira que se encontrava atrás de mim.

— O que está fazen — fui interrompido por ele tomando meus lábios em um beijo.

Resisti no começo, mas logo fui tomado pelo doce sabor de seus lábios. Num movimento involuntário, segurei-o pela nuca e aprofundei o beijo. O ato cessou quando mal havia ar em nossos pulmões.

— E agora? Ficou melhor? — aquele sorriso voltou a sua boca, mas logo suas feições se tornaram uma carranca. — Eu... Eu... Droga! Desculpe. Parece que acabei com as mínimas chances que eu tinha.

Eu mal ouvi o que ele disse. Levantei-me da cadeira num impulso e voltei a segurar sua nuca, trazendo seus lábios para os meus. Como o anterior, foi um beijo intenso e foi assim, entre beijos, que paramos em cima da cama, meu corpo sobre o dele. Uma onda de calor me atingiu.

— Marco! — Jean interrompeu um beijo, repousando sua mão em meu peito. — Por mais que eu te queira, sei que não é o que você quer.

Levei um tempo para processar o que eu fazia e o que ele dissera. Afastei-me rapidamente e corei.

— Eu... Você tem razão. Desculpe por isso.

— Relaxa. Tá tudo bem.

Depois de um breve momento de silêncio com alguns centímetros nos separando, eu resolvo perguntar:

— Jean, por que o que eu sinto ou penso importa agora? Até ontem você não dava a mínima e agora isso te interessa?

— Bem, como eu disse, eu tô começando a gostar de você. De verdade. E também... Eu te contei pelo que passei. Só meus amigos sabem disso... — respondeu amargamente.

Mais um momento de silêncio, esse bem longo.

— Bem, se vista e eu vou tomar banho — quebrei o sossego do ambiente.

— Certo.

Sem mais uma palavra, cada um foi realizar sua tarefa.

Tomei um banho rápido. Sai do banheiro enrolado na toalha e encontrei Jean deitado em minha cama lendo um livro. Vesti-me de costas para ele.

— Jean? — virei-me em sua direção.

— Sim? — tirou os olhos do livro.

— É verdade?

— Sim, é verdade! Mas acho que devo perguntar o que é verdade. Não sei se você já reparou, mas telepatia ainda não existe.

Levei um tempo para processar as palavras e finalmente entendê-las.

— É verdade que você tá sentindo algo por mim? — aquilo martelava em minha mente.

— Sim — encolheu os ombros —, é verdade — disse após um momento de hesitação.

Um silêncio reinou no cômodo.

— Sua mãe sempre chega tarde assim? — perguntou ele.

— Às vezes... Ela deve estar de plantão. Bem, vou pegar um colchão para podermos dormir.

— Certo.

Voltei alguns minutos depois com o colchão em mãos e joguei-o no chão, saindo para pegar os lençóis, travesseiro e cobertores e voltando em seguida. Arrumei tudo enquanto Jean me observava.

— Pode ficar na minha cama. Os lençóis foram trocados hoje mesmo, estão limpos.

— Então é uma pena. Você tem um cheiro bom... Mas tem certeza que não quer ficar na sua cama?

— Sim, tenho certeza. Não se preocupe com isso!

Ele assentiu.

Conversamos por mais alguns minutos até que o sono nos dominou.

Dormi profundamente, no entanto, fui acordado por um barulho e um xingamento baixo por volta das duas da manhã.

— Jean? — chamei na escuridão, sonolento. — Tá tudo bem?

— Sim, sim... Tá tudo bem. Desculpe por te acordar.

— Sem problemas. Aconteceu alguma coisa?

— Não. Eu só... Preciso ir ao banheiro.

— Certo.

Ouvi os passos de Jean até o banheiro e ouvi-os novamente quando ele voltou, deitando-se na cama sem mais uma palavra. Menos de uma hora depois, fui acordado novamente. Dessa vez, ouvi Jean sair do quarto, mas não tenho certeza de que ele voltou para o cômodo.


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Notas finais do capítulo

AVISO: os próximos capítulos demorarão a serem postados por motivos de: volta às aulas e falta de tempo. Espero que compreendam. Kisses.



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