Não era pra ser assim... escrita por Madreamer


Capítulo 1
O começo


Notas iniciais do capítulo

O Marco narra a estória.
Boa leitura!



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Primeiro dia no último ano do ensino médio. Cidade nova. Escola nova. Amigos novos. Muita empolgação. Muita curiosidade. Muita diversão. Bom, deveria ter sido assim...

Eu acabara de chegar na escola. Vagueava pelos corredores procurando a sala do terceiro ano A. Aproximava-me de um grupo de amigos que conversavam animadamente para perguntar se sabiam onde ficava a sala.

— Com licença — eu disse, cutucando o garoto mais próximo. Ele se virou para me olhar, mas seus olhos miraram um ponto atrás de mim por um breve segundo e eu pude ver terror e medo se espalharem por suas feições.

— Tudo bem com você? — indaguei. Não sou assustador. Até falam que minhas sardas são fofas. Ele não poderia estar com medo de mim.

O menino nem se deu ao trabalho de me responder. Cutucou seus amigos e apontou com a cabeça para o portão de entrada. Levei meu olhar para onde ele apontava e me deparei com um grupo de jovens com calças pretas, coturnos e jaquetas de couro (a qual possuía uma caveira estampada nas costas) e uma blusa qualquer. O garoto que estava na frente, aparentemente o líder do grupo, era o único que vestia a jaqueta com alguns espinhos de prata nos ombros. Ele era alto, pele e olhos claros e tinha cabelos claros de dois tons. Ao seu lado, estava um garoto mais baixo que ele, olhos verdes e cabelos castanhos. Ele era abraçado por uma garota com traços orientais e olhos escuros que usava um cachecol vermelho. Do outro lado do líder, estava um garoto baixinho, meio careca, e ao seu lado uma garota um pouco mais alta que ele, de cabelos castanhos. Um pouco atrás desses dois estava um garoto louro e baixinho de olhos azuis.

Quando o grupo se aproximou, todos os alunos recuaram e abaixaram a cabeça, não sei se por medo ou por respeito. Eu fique lá, parado, encarando-os, o que fez seu líder andar em minha direção e, apesar de eu ser alguns centímetros mais alto que ele, gelei.

— Que foi, princesinha? Tá perdida? — perguntou ele, segurando meu queixo de modo que eu não pudesse desviar o olhar.

— Eu... Eu não... — gaguejei.

— Você não sabe quem somos? — gritou ele, pressionando as unhas em meu queixo. — Deixe-me esclarecer umas coisinhas: nós somos a gangue Titã, controlamos esta cidade, somos os donos do pedaço! Você, por algum acaso, sabe quantas pessoas já matamos? — ele puxou uma arma que estava sob a jaqueta e apontou-a para mim. — Já matamos até mesmo policiais. Todos aqui em Shiganshina nos temem, tanto que a polícia aprendeu a viver conosco aqui. Não importa em qual canto da cidade você vá, sempre ouvirá falar de nós. Sempre que nos veem, se curvam — apontou os estudantes submissos — porque apreciam suas vidas. Nós não temos nada a temer em Shiganshina, mas você — pressionou a arma contra minha têmpora —, você tem.

— D-desculpe. Eu me mudei pra cá ontem. Não sei muito sobre a cidade — minhas pernas estavam bambas, pareciam gelatina.

— Dessa vez, vou deixar passar — ele guardou a arma e sorriu para mim, aproximando seu rosto do meu. — Sorte sua que te achei bonitinho — sussurrou no meu ouvido, acariciando meu rosto com a mão que anteriormente segurava meu queixo. — Tome cuidado. Há muitos tarados por aqui — disse, lambendo minha bochecha. — Nos vemos por aí — e voltou para sua gangue.

— Não vamos dar uma lição nele, Jean? — perguntou o garoto de olhos verdes. Jean me fitou e sorriu maliciosamente.

— Não, Eren, não vamos dar uma lição nele.

Ótimo. Eu tinha dois nomes. Já era o suficiente para saber de quem eu devo me afastar.

Eren me encarou com ódio no olhar.

— Vamos! — ordenou Jean, indo em frente e sendo seguido pelo resto do grupo. Após eles se retirarem, os alunos voltaram a fazer o que antes faziam. Eu ainda estava dominado pelo medo, olhos vidrados encarando o vazio.

— Ei! — o garoto que eu chamei para perguntar sobre a sala me cutucou, tirando-me de meus devaneios.

— Hã? — olhei para ele sem saber o que fazer.

— Você me chamou. O que você quer?

— Ah, sim. Você sabe me dizer onde fica a sala do terceiro ano A?

— É só subir a escada e virar na última porta à direita.

— Ok. Obrigado.

— De nada.

Afastei-me dele e segui suas instruções.

Antes de encontrar a sala, achei um banheiro masculino e corri para ele. Lavei meu rosto. Céus! Como minhas mãos tremiam. Fiquei lá até me acalmar, o que demorou bastante, já que o sinal bateu justamente quando eu saia do ligar. Corri para a sala, o que me levou uns três minutos por eu consegui me perder umas cinco vezes. Quando adentrei a sala, pedi licença para a professora, que me permitiu entrar sem problemas, e tive a pior visão da minha vida: o garoto careca, a garota de cabelos castanhos e Jean estavam na mesma sala que eu. Estavam sentados lado a lado. Para piorar minha situação, só tinha um lugar disponível na sala: a cadeira ao lado da de Jean. Droga! Eu não podia atrapalhar mais a professora, então me dirigi ao lugar. Enquanto me aproximava, Jean não tirava aquele sorriso malicioso do rosto. Gelei novamente, mas sentei-me, relutante.

— Olá, gracinha. É bom te ver de novo — disse Jean com aquele sorriso.

A vontade de responder “o desprazer é meu” era grande, porém não me manifestei e tentei prestar atenção no que a professora falava. Só tentei mesmo.

— Vamos, não seja tímido, gracinha! — ele passou a mão pelo meu rosto. — Que foi, tá com medo de mim?

Toda a sala se virou para nós quando meu tapa na mão dele saiu sonoro demais. Jean ficou com um olhar desafiador, fazendo todos se voltarem para frente.

— Gracinha, você é corajoso — ele sussurrou ao meu ouvido. — Mas faça isso novamente, e você — suas mãos agarraram meu pescoço e o pressionaram levemente — morre. Estamos entendidos?

Balancei a cabeça afirmativamente e ele tirou suas mãos do meu pescoço. Eu soltei o ar que nem sabia que estava prendendo.

— Você é ainda mais fofo quando tá com medo, gracinha — a vontade de arrancar aquele sorriso da cara dele era enorme.

Foi assim que passamos três horários: sem prestar atenção em nada, ele me provocando e eu temendo por minha vida.

Quando o sinal indicando o intervalo bateu, fui o primeiro a levantar, mas Jean foi mais rápido: agarrou meu pulso e me olhou com um olhar que dizia "não faça isso ou você morre". Ignorei-o completamente e fui andando. O garoto com cabelos de dois tons era mais forte e apertou meu pulso, impedindo-me de me mover. Ele bateu levemente na cadeira na qual eu estava anteriormente, indicando para eu sentar. Eu já tinha sido estúpido demais, então obedeci.

Jean não me soltou por um segundo sequer. Também não disse nada. Só quando a sala se esvaziou por completo que ele me olhou. Não foi bem olhar. Estava mais para analisar.

— Sabe... Eu ainda não sei seu nome — ele disse após um longo momento me observando. Sua voz estava doce e ele não usou aquele irritante "gracinha".

— M-Marco. Marco Bodt.

— Jean Kirstein.

O garoto se aproximou de mim. Olhava-me nos olhos. Desviei o olhar e tentei empurrá-lo, o que foi inútil. Seus lábios roçaram nos meus e eu estremeci. Vendo minha reação, ele recuou alguns centímetros, depois dirigiu sua boca ao meu ouvido.

— Sabia que você tá me provocando? — sussurrou lentamente. Estremeci. — Sim, sim. Tá me provocando muito.

Ele afastou o rosto um pouco e acariciou meus cabelos, descendo para o rosto e dando especial atenção às minhas sardas. Acariciou-as por um bom tempo, passando a beijá-las logo em seguida. Depois, nossos lábios roçaram novamente e ele não recuou. Tomou meus lábios num beijo voraz, o qual acabou rapidamente quando eu mordi seu lábio inferior tão forte que logo senti o sangue na minha boca.

— Droga! — xingou ele, soltando meu pulso.

Aproveitei para fugir e corri em direção à porta. Jean não demorou muito: pulou em minha direção, levando-me ao chão com ele me prendendo com uma perna de cada lado do meu corpo. Eu estava completamente submisso.

— Não, não, não, não. Você não vai fugir de mim tão facilmente, gracinha — ele disse, mordendo o lábio inferior para conter o sangue. Eu me debatia, até que ele prendeu minhas mãos sobre minha cabeça com sua mão direita. Com a esquerda, voltou a acariciar meu rosto. Em pouco tempo, ele mordiscava meu pescoço.

— Por que? Por que você tá fazendo isso? Por que eu? — perguntei, tentando não transparecer o medo que sentia.

— Também não sei. Só sei que você chamou minha atenção e que agora eu te quero. E querendo ou não, você será meu — ele aproximou seu rosto do meu mais uma vez e me tomou outro beijo, também curto. — Você será meu — repetiu, saindo de cima de mim e oferecendo-me uma mão para eu me levantar. Olhei-a com desprezo e me levantei sozinho. — Você é corajoso. Mas essa coragem ainda pode te matar. Ah! Já te falei pra tomar cuidado com os pervertidos do local? — disse antes de sair da sala, passando a mão na minha bunda com aquele maldito sorriso malicioso.

Fique lá na sala, perplexo, até que meu estômago se manifestou. Céus, eu estava com fome. Decidi esquecer tudo que acontecera e fui para a lanchonete.

As mesas estavam cheias e a gangue Titã ocupava duas delas. Não olhei na direção dessas mesas, mas senti Jean me cravando com o olhar. Ignorei-o e fui comprar um lanche e, olha que maravilha!, descobri que deixei o dinheiro na sala. O vendedor me olhava furioso e eu já ia buscar o dinheiro quando uma mão pesada pousou sobre meu ombro.

— Quanto deu? — perguntou Jean.

— Cinco e cinquenta — respondeu o vendedor.

— Aqui — ele entregou o dinheiro e pegou o pão de queijo e o suco que eu escolhera.

O garoto me puxou em direção à mesa em que estava o resto da gangue e me entregou a comida. Eu recusaria se meu estômago não tivesse se roncado como um leão. Arranquei tudo de suas mãos e iria para outra mesa caso ele não tivesse me empurrado e sentado ao meu lado, encarando-me com aquele mesmo olhar de "não faça isso". Acabei cedendo e ficando ali mesmo. A garota que estava ao meu lado era a que vestia o cachecol vermelho. Ela sorriu para mim com compaixão e eu retribuí o gesto. Jean me olhava constantemente e eu já estava com raiva daquilo.

A gangue conversava sobre novas armas, porém eu nem prestei atenção. Minha mente só pensava se eu devia tirar a mão de Jean da minha coxa ou se eu o deixasse fazer o que queria me manteria vivo por mais um tempo. Optei pelo último.

Quando o intervalo acabou, todos fomos para a sala e Jean esteve grudado em mim com aquele sorriso maroto o tempo inteiro.

As outras três aulas eu também não prestei atenção, já que Jean alternava entre acariciar minha mão, meu rosto e minha coxa e sussurrar coisas como "você será meu", "seus lábios são uma delícia", "gracinha, não tenha medo de mim" e "pare de me provocar". Se ele não tivesse uma arma, estava sem dente, sem cabelo e com o olho tão roxo que poderia ser visto da Lua! Olhei para ele imaginando essa visão e não pude evitar um sorriso que quase se tornou uma risada malévola na qual você engasga do nada, como velhos.

Triiiiiiiim.

O sinal tocou. Eu estaria livre! Ar puro, sem rastro nenhum de Jean! Seria o paraíso... se a casa dele não ficasse na mesma direção que a minha. Sim! Aquela encarnação do diabo morava na parte sul de Shiganshina. Pelo visto aquela praga me seguiria até no inferno!

— Qual é?! Tá brincando comigo? — gritei para o céu quando fiquei sabendo que ele iria na mesma direção.

— Não se estresse, princesinha. Eu serei seu príncipe encantado — debochou ele, gargalhando.

— Jean! Pelos céus! Você não tem assuntos para resolver com sua gangue? — gritei.

— Você realmente não tem medo de mim, não é? Eu já disse: você será meu. Por bem ou por mal — disse ameaçadoramente. Engoli em seco e resolvi que seria melhor calar minha boca enquanto ele não tinha a arma em mãos.

O caminho foi silencioso. Jean tentava me tocar (seja na minha mão ou na minha bunda) incessantemente e eu tentava me afastar, falhando na maioria das vezes. Paramos em frente da minha casa e encontramos minha mãe saindo dela.

— Oi, filho. Desculpe mas tem uma emergência no trabalho e eu tenho que sair agora. Tem almoço na geladeira, é só esquentar. Por que não convida seu amigo pra almoçar também? — ela pergunta animada olhando Jean.

Antes que eu diga qualquer coisa, ela nos empurra para o interior da casa.

— Eu devo voltar tarde. Não aprontem muito, meninos. Tchau — disse trancando a porta, deixando eu e meu maior pesadelo trancados na minha casa.

Jean observa minha expressão de terror e se diverte com ela.

— Parece que eu não sou o único querendo que você seja meu — zomba ele.

Ele me joga contra uma parede e me prende nela com um braço em cada lado do meu corpo.

— Agora você será meu — sussurra ao meu ouvido.

Ele lambe minha orelha, descendo para o pescoço. Depois sobe para minha testa, distribuindo beijos por todo o meu rosto. Ao chegar em meus lábios, avança ferozmente e pede passagem com a língua, a qual cedi quando ele arranhou meu pescoço ameaçadoramente. O beijo foi se intensificando e só foi interrompido quando o ar se fez necessário. Jean ficou em silêncio depois disso, analisando-me por um longo tempo enquanto eu mal respirava.

— E aí? Não foi tão ruim assim, foi? — perguntou por fim, zombeteiro. Ele de fato beija muito bem, mas eu nunca admitiria isso. Não para ele.

— Você realmente não tem noção do que faz, não é? Obrigar uma pessoa a ficar com você... Sabe que isso nunca será bom pra ela? — perguntei indignado.

— Sim, eu sei disso. Mas você gostou. Eu posso ver em seu olhar.

Ele tinha razão. Merda! Vamos, Marco, controle-se! Um psicopata te agarra e você gosta? Que história é essa? Nada contra ele também ser um garoto, mas, poxa, ele está te usando para bel prazer. Não seja estúpido!

— Você é maluc — fui interrompido. Ele atacava meus lábios e eu não pude negar.

O beijo foi mais longo e quando nos separamos ele começou a mordiscar e lamber meu pescoço. Eu tentei afastá-lo inutilmente. Ele era bem mais forte do que aparentava! Jean se focou naquela tarefa por um tempo.

— Viu? Seu amiguinho tá gostando — disse ele quando parou o que fazia, apontando meu membro que estava começando a se excitar. Eu corei violentamente com aquilo.

"Puta merda! Tudo que eu não preciso agora é uma ereção! Controle-se, Marco!", repreendi-me.

— Marco, sabia que você fica uma gracinha quando tá tímido? — aquele maldito sorriso estava estampado lá.

— Não me importo se você tem uma arma. Eu ainda vou arrancar esse sorriso de você! — rosnei. Isso só o fez alargar o sorriso.

— Estarei esperando!

"Acalme-se. Acalme-se.", pensei, tendo sucesso em alguma coisa naquele dia.

Ficamos lá, um olhando para o outro, em silêncio absoluto, até que Jean o quebrou:

— Marco, você tá com quantos anos?

— Dezesseis.

— Dezesseis... Não gostaria de se juntar à nossa gangue?

— O quê?! Pra quê? Pra você me importunar ainda mais? Não, obrigado.

— Ok... Seria bom ter mais uns integrantes. Se mudar de ideia, sabe com quem falar — sorriu divertido.

— Não creio que mudarei de ideia — retruquei rudemente.

— Sim, você é realmente uma gracinha — ele me deu um selinho, já que percebeu que eu o morderia de novo caso intensificasse o ato. — Não acha que tá muito agressivo? — ele nem esperou uma resposta. — Bem, acho que aceitarei o convite da sua mãe. Você se importaria se eu almoçasse aqui?

— Mesmo que eu diga sim, não é como se fosse mudar alguma coisa, não é mesmo?

— Garoto esperto — disse com aquele sorriso, finalmente tirando seus braços da parede para eu poder sair. Guiei-o até a cozinha e distribui a comida sobre a mesa, entregando-lhe um prato e apontado a gaveta de talheres.

— Sirva-se — disse eu enquanto pegava um prato para mim. Ele o fez, enchendo o prato dele e levando-o ao micro-ondas, sendo seguido por mim.

Comemos em silêncio por um tempo, até Jean falar:

— Onde tá seu pai? Trabalhando?

Por que? Com tanto assunto nesse mundo ele escolheu aquele? Por que?

— Acho que isso não lhe diz respeito — respondi rudemente. Ele apenas encarou-me, surpreso pela resposta, calando-se em seguida.

Depois de comermos, guardei o resto das comidas e fui lavar a louça. Jean desapareceu por um momento, voltando com o celular em mãos. Ele se sentou à mesa e ficou me observando, também mexendo no celular vez ou outra. Aquilo estava me deixando nervoso. Eu podia ouvir sua respiração calma e tremia a cada inspirada. Agora, por favor, não me pergunte como eu consegui me cortar com uma faca sem ponta, um corte bem profundo, sujando de sangue as louças sob minhas mãos.

— Merda! Merda! — xinguei enquanto lavava o ferimento. Jean, ao ver o sangue, perguntou-me onde ficava o estojo de primeiro socorros. — Pra que diabos eu iria querer um estojo de primeiro socorros?! Minha mãe é a médica! — gritei irritado.

— Você não tem um esparadrapo ou coisa assim? — perguntou ele, mais calmo do que deveria. Acho que ele estava se divertindo com a situação.

— Na gaveta do banheiro. Segunda porta à esquerda — respondi mais calmo, vendo-o desaparecer no corredor.

— Senta — ordenou ele, com esparadrapo e algodão em mãos. Obedeci. —Você tem álcool?

— Deve estar no armário lá fora — disse, apontando a porta da cozinha que levava ao quintal.

Jean largou o que tinha sobre a mesa e foi atrás do álcool, voltando pouco depois.

— Aqui está. Isso vai arder. Tem certeza que posso fazer isso? — perguntou ele.

— Não, você não pode, porque eu quem vou fazer — respondi, tomando o álcool de suas mãos.

Eu tinha mesmo que cortar a mão direita? Fazer aquilo estava "meio" complicado. Eu mal consegui abrir o frasco de álcool com a mão esquerda. Jean ria enquanto eu batalhava para conseguir.

— Tudo bem. Você faz isso — desisti após uns três minutos.

Jean respondeu com um sorriso.

— Pode ser do meu jeito? — indagou.

— Que seja!

Ele me puxou para a pia e derramou o álcool no ferimento sem a menor cerimônia. Ardia bastante e eu não pude conter o grito.

— Desculpe por isso — ele me puxou novamente, fazendo-me sentar na cadeira. Em seguida, pegou um pedaço de algodão, umedeceu-o e passou-o delicadamente sobre o corte, colocando um seco sobre toda a extensão da ferida e prendendo-o com o esparadrapo.

— Obrigado — murmurei em tom quase inaudível.

— Não foi nada — respondeu com um sorriso sincero, não aquele maroto. — Bem, fique aí que eu terminarei de lavar a louça.

Eu quis protestar, mas ele me impediu, então fiquei lá, encarando a mesa. Foi quando reparei o celular de Jean bem na minha frente. Peguei-o e, para minha surpresa, vi que não tinha senha. Ele pesquisara meu nome e, com isso, encontrara alguns artigos de jornal sobre meu pai. Ele estava bem perto de descobrir o que aconteceu.

— O que está fazendo? — ele estava atrás de mim e secava as mãos na camisa.

Eu congelei como estava, no entanto, resolvi fazer o mesmo que ele.

— Eu que te pergunto! Por que quer tanto saber do meu pai?! — gritei.

— Fiquei curioso para saber o que aconteceu. Já que um certo alguém não me contou, resolvi usar o Dr. Google — retrucou ele.

— Mesmo assim. É minha vida! — levantei-me e fui para a sala, atirando-me no sofá onde as mochilas foram deixadas. Jean me seguiu.

— Por que você não pode me contar? — perguntou ele num tom mais dócil. Lágrimas embaçaram minha visão.

— Porque... Porque é tudo culpa de pessoas como você: de gangues! — bradei furioso, enquanto as lágrimas rolavam pelo meu rosto. — Tudo culpa de gangues. Tudo... — baixei o tom de voz. Jean aproximou-se de mim e segurou minha mão, apertando-a reconfortantemente, encorajando-me a continuar. — Quando eu morava em Trost, também estava cercado de gangues. Eu sempre me preocupei com isso, mas meu pai dizia que era besteira — fiz uma longa pausa. Não estava fácil continuar. — Um dia, eu, meu pai e minha mãe saíamos do mercado. Não sabíamos o que acontecia e fomos surpreendidos quando meu pai levou um tiro no ombro. Ocorria uma disputa entre gangues pelo território. Balas voavam de todos os cantos. Meu pai levou mais uns sete tiros, morrendo lá mesmo. Minha mãe levou um no braço e eu levei dois, um na coxa e outro no ombro. Eu e minha mãe nos jogamos no chão e esperamos um longo tempo até que os tiros cessassem por completo. Não sei de muita coisa, só sei que estava inconsciente e tinha perdido muito sangue. Nem sei como sobrevivi. Mas meu pai... Meu pai não teve chance alguma. Ele era a pessoa que eu mais amava. Eu tinha uma ótima relação com ele. Ele era meu melhor amigo... E eu o perdi... Para sempre — as lágrimas caíram mais intensamente. Jean me abraçou fortemente.

— Eu sei como você se sente — sussurrou ele em meu ouvido.

Fiquei indignado. Como ele poderia entender? Como, se ele mesmo faz parte de uma gangue? Não havia como. Eu fiquei com ódio dele por dizer aquilo, mas a tristeza foi mais forte e eu fiquei chorando nos braços dele, por mais humilhante que aquilo fosse. Jean acariciava meus cabelos.

Quando eu finalmente me acalmei, desvencilhei-me de Jean, que secou minhas lágrimas e voltou a segurar minha mão.

— Você não me entende. Como poderia? Você faz parte de uma gangue, tem o que quer. Não tem como você me entender.

— Acredite se quiser: tem sim — apertou sua mão na minha, parecendo querer confortar a si mesmo, não a mim.

— Se você diz... Mas pode me fazer um favor? — perguntei ainda com a voz embargada. Ele assentiu. — Pode apertar a outra mão? Eu cortei essa, então tá doendo com o aperto.

— S-sério? Isso que você queria? — perguntou ele, incrédulo, soltando minha mão. — Nem se compara com o que eu quero — ele sorriu maliciosamente.

— Ótima maneira de estragar o momento ainda mais.

Rimos fracamente.

— Desculpe. Não pude resistir.

Rimos de novo.

— Eu não sabia que você era tão pervertido assim! — zombei.

— Eu também não, então acho que sabemos quem é o culpado.

Eu coro, mas ainda me permito um sorriso.

Ficamos alguns minutos em silêncio.

— Você não deveria estar tentando me beijar ou qualquer coisa do tipo? — pergunto.

— Não sei. Deveria? Ou você quer que eu te beije? — retrucou a pergunta, zombeteiramente. Corei de forma violenta. — Fique sabendo que eu não sou tão mau assim, gracinha.

— Sabe... Obrigado. Você é a primeira pessoa que me conforta ao saber disso. Todos os outros dizem "sinto muito" e me olham com pena. Isso não trará meu pai de volta, então não sei por que sempre dizem isso, afinal, também não fará eu me sentir melhor. Você é o primeiro que não diz essas palavras. Obrigado por isso.

— Sem problemas. Isso é só porque eu entendo o que você sente. Eu já passei por isso — disse num tom triste. Seus olhos perderam o foco e ele fitou um ponto distante.

— Já passou por isso? Como?

Jean não respondeu, ficou daquele jeito até eu cutucá-lo e, num movimento rápido, ele levou uma das mãos à arma que carregava Seu rosto estampava terror e medo.

— Eu... Eu tenho que ir — murmurou ele.

— C-certo. Só um instante — peguei as chaves de casa que estavam na minha mochila e cinco reais e cinquenta, entregando-lhe o dinheiro. — Aqui. Não sou tão louco a ponto de ficar te devendo uma.

— Garoto esperto. Mas isso não me impedirá de nada, gracinha.

— Sim, sim. Já deu pra perceber — dei um tapa na mão dele que deslizava pela minha bunda e guiei-o à porta, abrindo-a.

— Então, tchau, gracinha — ele parou em frente da porta, roubando-me mais um beijo. — Até amanhã.

— Infelizmente — bufei, quando voltei a ser dono dos meus lábios.

Jean afastou-se com aquele maldito sorriso maroto nos lábios, enquanto eu trancava a porta.

Fui pro meu quarto e lá fiquei imaginando o que Jean teria passado que o deixara daquele jeito. Fora tão ruim quanto o que eu passei? Ou será que fora pior? Como eu poderia fazê-lo falar?

Esses pensamentos não ficaram muito tempo em minha cabeça, pois foram substituídos pelas lembranças: Jean cuidando do meu ferimento, dando-me suporte enquanto eu falava sobre meu pai. Talvez ele não fosse tão ruim assim. Ou talvez fosse... Que tipo de pessoa obriga outra a ficar com ela e depois age como a personificação do bem? Aquele garoto misterioso realmente me intrigara...

E foi com esses pensamentos que eu adormeci, conseguindo, de alguma forma, acordar só no dia seguinte, atrasado para a aula.


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Notas finais do capítulo

Lembrem-se: comentários são sempre bem vindos.
Qualquer erro, me avisem.



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