Não era pra ser assim... escrita por Madreamer


Capítulo 14
O fim do começo


Notas iniciais do capítulo

Capítulo novo? Será que é um milagre de Natal?



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         Já eram onze da noite. Eu não vira Jean desde manhã. As crianças já estavam dormindo e eu me inquietava mais a cada ligação que ele não atendia.

         O relógio apitou à meia-noite. Mais alguns minutos e ouvi a porta se abrir.

         — Jean?

         — Marco? — seu hálito fedia a álcool.

         — Você ficou o dia inteiro bebendo?

         — Não! Eu só... Precisava passear um pouco, esfriar a cabeça.

         — Esfriar a cabeça ou ficar bêbado?!

         — Foram só alguns goles!

         — Não, Jean, não foram só alguns goles! Eu senti o cheiro logo que você abriu a porta!

         — O que espera ao ficar quase um dia inteiro num bar? Eu sei que eu tô fedendo, mas eu não bebi muito.

         — A que ponto chegamos, Jean? Ao ponto em que não conversamos com o outro e bebemos para resolver nossos problemas?

         — Não, Marco — tocou meu braço, mas afastei-me.

         — Bom, é o que parece. Eu só te vi de manhã, Jean! Seus filhos não falaram com você hoje! — gritei.

         — Dá pra gente ir pro nosso quarto? Você vai acordar as crianças.

         — Eu vou acordar as crianças? Não fui eu que cheguei em casa à meia-noite e bêbado!

         — Eu não to bêbado! — gritou.

         — Como eu vou saber? Como eu ainda posso confiar em você se você nem falou comigo hoje e desapareceu o dia inteiro? A gente não conversa mais, Jean. Tem quase dois meses que nós só falamos “bom dia” e “boa noite”. Como eu confio no meu marido se ele tá chegando tarde do trabalho, isso quando você vai trabalhar. Já ligaram aqui inúmeras vezes perguntando se você tava doente já que não tava indo pro trabalho. Eu sei que tá difícil, Jean, mas você é minha família e eu preciso de você. Eu preciso saber que você ainda me ama, porque às vezes eu me pergunto se vale a pena me amar, me pergunto se não seria melhor deixar você e as crianças para encontra uma família, um lar novo e melhor com uma pessoa que não seja um fard...

         — Não. Não fala isso, Marco. Você não é um fardo. E é claro que eu te amo, Marco. Você também é minha família.

         — Então por que você tá tão estranho? Por que você não me conta o que tá acontecendo, Jean? Por que você sumiu o dia inteiro?

         — Porque é minha culpa — gritou novamente. — É minha culpa, Marco. Eu... Eu te deixei assim — seu tom de voz não passou de um sussurro. — É minha culpa.

         Suspirei pesado e balancei a cabeça negativamente. Estendi a mão e a mão de Jean encontrou a minha.

         — Por que você não vai tomar banho e conversamos depois, quando nós dois estivermos mais calmos.

         — Tudo bem — disse com a voz embargada.

        Assim que a porta do banheiro fechou, meus joelhos cederam. E eu caí. Encolhi-me e chorei.

***

         — É assim que eu gosto — disse quando Jean sentou-se ao meu lado na cama. Acariciei seus cabelos molhados. — Cheirinho bom de xampu.

         Jean permaneceu em silêncio. Respirou fundo.

         — Tenho que te mostrar uma coisa antes de conversarmos.

         — O quê?

         Ele não respondeu. Segurou uma de minhas mãos e conduziu-a até sua coxa. Havia algumas saliências. Cicatrizes.

         — Por favor, Jean, me diz que... Me diz que isso não é o que eu to pensando.

         O homem jogou seu corpo sobre o meu.

         — Me desculpe — disse entre soluços. — Me desculpe! Me desculpe, Marco. Não era pra ser assim... Era... Era pra... Era pra ter dado tudo certo. Era pra gente ser feliz!

         — Jean... — respirei fundo e percorri minhas mãos por seu corpo até encontrar seu rosto. — Não foi sua culpa. Foi um acidente, meu amor.

         — Não, não foi! Se eu não tivesse inventado uma surpresa, aquilo não teria acontecido!

         — Não tem como você saber, Jean!

         — E tem como você saber?

         — Não é isso que importa, Jean. O que importa é que eu tô aqui. Nós estamos aqui.

         Jean continuou chorando em meu colo. Acariciei seus cabelos e esperei que ele se acalmasse.

         — Você continua... Se machucando? — questionei após alguns minutos.

         — Não! — quase gritou. — Foram só... Algumas vezes... Me perdoe.

         — Você quer conversar sobre isso?

         Ele hesitou por alguns segundos: — Eu só... Eu não sei! Quando me dei conta, minha perna já estava sangrando. Eu não sei o que deu em mim.

         — Você quer conversar com um psicólogo?

         — Não. Eu já tô bem melhor... Não vai se repetir. Eu prometo.

         — Tudo bem. Mas fale comigo se você tiver um impulso desses. Ok?

         — Ok. Obrigado — e ele me abraçou, escondendo seu rosto em meu peito.

         — Eu te amo, Jean.

         — Também te amo, Jesus sardento.

         Sorri. Fazia tempo que Jean não me chamava assim.

         — Sem mais segredos, tá bom? — falei. — Eu quero que você me conte tudo, Jean: o que você tá pensando, seus medos... E eu farei o mesmo.

         — Promete?

         — Prometo.

         — Eu também prometo.

         — E é pra você parar de se culpar. Quem disse que eu não tô feliz? Eu construí uma vida com a pessoa que eu mais amo e agora eu a divido com nossos filhos. Você sabe o quanto eu desejava isso? Chegar em casa e ser coberto de beijos pelas crianças, deitar na cama e conversar com meu marido até pegarmos no sono. Jean, esse é meu sonho. Eu sou feliz. Você me faz feliz.

         — O que eu fiz pra merecer o Jesus sardento? — riu levemente e beijou minha bochecha.

         — Me conquistou com essa sua cara de cavalo — sorri.

         — Te amo. Prometo que vai ser tudo diferente. Eu vou concertar as coisas.

         — Não tem nada pra concertar, Jean. A não ser a pia da cozinha. Ainda tá vazando.

         Jean riu e me beijou.

***

         Acordei com Joy lambendo meu rosto.

         — Bom dia, flor do dia!

         — Jean! — sorri. Um aroma suave logo preencheu o quarto. —Você trouxe rosas?

         — As mais cheirosas que consegui!

         Sorri e senti minhas bochechas esquentarem. Jean beijou minha testa.

         — Vá se arrumar. Temos compromisso.

         — Aonde vamos?

         — Ao seu restaurante favorito: o nosso restaurante.

         — Convencido — ri. — E as crianças? Elas não vão?

         — Já estão nos esperando.

         — Não foram à escola?

         — Já voltaram da escola.

         — Que horas são?

         — Duas e vinte e sete.

         — Você me deixou dormir até tarde?

         — Você tava tão bonitinho.

         — Jean!

         Ele riu do meu desespero.

         — Não precisa se apressar. Reservei o restaurante só pra gente.

         — E seus clientes?

         — Eles podem esperar. Não é como se fossem parar de ir ao restaurante. Eles amam minha comida!

         — E é bom continuarem amando a comida! Você é todo meu!

         — Tá com ciúmes?

         — De maneira alguma!

         — Tá bom. Vou fingir que acredito.

         Mostrei-lhe a língua e fui tomar um rápido banho.

         A comida estava, como sempre, divina. Esquecemos-nos de absolutamente tudo por algumas horas e aproveitamos nosso tempo com nossa família.

         Jean e eu deixamos de lado os últimos meses nos quais tínhamos agido como desconhecidos e voltamos a ser dois adolescentes apaixonados, como no ano em que nos conhecemos.

         Enquanto Jean ficava cada vez mais famoso por seu restaurante, eu ficava conhecido por meus livros. Escrever deixou de ser apenas arte para mim e também virou terapia.

        

***

 

E foi assim que deixamos de viver nossas vidas e passamos a compartilhá-las. Compartilhar cada medo, cada receio e, obviamente, cada momento de felicidade. No fim do dia, estando cansados ou não, ouvíamos tudo que o outro tinha a dizer e sempre terminávamos o dia com um “eu te amo”.


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