Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 5
Capítulo 5 - Falas impensadas


Notas iniciais do capítulo

Nesse capítulo, terá uma cena beeem intensa, algumas conversas, algumas reflexões.
Espero que gostem =)



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Uma mulher, talvez com uns vinte e cinco anos, definhava em cima de uma cama, com os olhos cerrados. A aparência dela contrastava e muito com o ambiente. Era um quarto grande, espaçoso, muito bem decorado. Contudo, a tristeza da mulher era contagiante, como se ela se espalhasse para o resto do quarto. Olhei para a dama mais criticamente.

Ela era, praticamente, a versão adulta da menininha do meu outro sonho. Os mesmos cabelos dourados, o nariz empinado, os lábios pequenos. Mas seus cabelos estavam em desordem, os olhos fundos, pele pálida. Parecia mais uma morta. Seu vestido era simples, mas parecia vestidos de lojas de grife. Um homem abre a porta do quarto e a fita, preocupado.

Pausa para descrição: o homem era alto, bonito, charmoso e elegante. Tinha olhos castanho-esverdeados, pele amorenada, cabelos castanho-médio penteados para trás, mandíbula quadrada, barba bem-feita. Vestia um terno risca de giz preto com uma gravata azul-escuro.

Como se sente hoje, Angel? — o homem indagou, preocupado. A dama entreabre os olhos. Olhos azuis quase cinzas.

Como sempre.

Ele se aproximou dela, ajoelhou-se e beijou sua mão, como um legítimo cavaleiro. Ela sentou-se na cama e perguntou com voz fraca:

Alguma notícia?

O homem abaixou a cabeça, triste.

Ainda nada.

Angel soltou um forte suspiro e jogou-se novamente nos travesseiros.

David, isso é torturante.

Eu não devia ter confiado...

Ele não teve culpa — a dama cortou. — Nem ele, nem você.

Angel, por favor, reaja. Nosso pequeno Carter precisa de você. E eu também.

Angel olhou para ele com carinho. Depois de um profundo suspiro, ela respondeu:

Vou tentar, meu amor. Prometo.

O sonho mudou.

Dois homens caminhavam em uma trilha dentro de uma floresta. Eles carregavam duas pessoas nos ombros. O da direita carregava a tal menininha do meu sonho insistente. Ela estava semiconsciente, olhar um pouco vidrado, debatendo-se, sem forças. E o do lado esquerdo... Meu Deus. Jaden. Ele parecia atordoado e doente. Seus olhos pareciam cansados e seu corpo trêmulo. Fechou os olhos, parecendo exausto.

Os dois chegaram a tal serraria abandonada. Era uma construção velha, pintura quase inexistente, paredes quase desabando. Aquilo eram praticamente ruínas. Eles entraram e amarraram Jaden em uma cadeira e a criança em um pedaço de madeira. O mesmo homem do meu sonho insistente apareceu e deu um tapa no rosto de Jaden. Ainda não conseguia identificar sua face.

Acorde! — ele gritou.

Jaden levantou a cabeça e abriu os olhos. Ele pareceu irritado quando sussurrou:

Você.

Sim, sou eu. Acordei você para que você tenha a oportunidade de ver uma cena única.

Cena única...? — Jaden indagou com ar desorientado, sacudindo a cabeça.

Vocês dois — o vilão desconhecido apontou para dois dos três brutamontes que havia no local — Peguem a tora e a coloquem na esteira. Isso vai ser divertido.

Não! Jaden gritou, parecendo mais desperto. Eleanor!

Jaden, socorro! a menininha gritou, agitando os braços na direção dele. Jaden tentou se libertar, sem sucesso.

Ah, Jaden Lancaster. Isso vai ser muito interessante de se ver, embora eu acredite que você não tenha preparo psicológico para isso.

Lancaster?!

Jaden não tirava os olhos de Eleanor. No olhar de ambos reluzia puro desespero e aquele desespero me invadia rapidamente. Eleanor gritava, com medo, e tentava se libertar, debalde. Jaden fazia a mesma coisa, com o mesmo resultado. Eu queria agir. Queria desamarrar todo mundo, dar um jeito de fugir dos brutamontes, colocar os dois a salvo e resolver a questão, mas eu era apenas uma observadora. Não podia fazer nada.

Quando estava tudo pronto, o psicopata andou calmamente e ligou a esteira. Eleanor continuava a gritar, rouca, enquanto Jaden gritava também:

Você não pode fazer isso! Pare com isso agora mesmo! Não!

O homem sorria, louco e cruel. Achei que o sonho ia parar na parte em que ela quase ia ter a cabeça cortada, mas foi pior: o sonho continuou. Eu até tentei desviar o olhar, mas a cabeça estava paralisada. Fechei os olhos, mas a cena se passou na minha cabeça. A cabeça de Eleanor foi sendo cortada aos poucos. Seus gritos eram horríveis, fundiam-se ao seu choro. Eles se misturavam aos gritos desesperados de Jaden, que diziam "Não!!".

Em pouco tempo, havia muitas gotículas de sangue em muitos locais, uma menina morta com parte do cérebro para fora da cabeça, rosto irreconhecível, uma poça de sangue ao redor do corpo de Eleanor. O corpinho frágil da menina estava simetricamente cortado, seus órgãos saindo do envoltório carnal. E então eu vi a expressão chocada de Jaden. Deu vontade de fugir, sair dali, parar de ver aquilo, gritar, gritar alto. Então eu escuto uma voz:

É isso que vai acontecer se você não fizer nada para impedir. Vai permitir mesmo que uma criança inocente seja sacrificada? Impeça esse futuro, por favor!

Acordei aos berros. Minha mãe apareceu no quarto, assustada:

— Filha, o que foi?!

Olhei para ela, sentindo o meu suor frio em cada parte do meu corpo. Eu tremia como galho seco no vento forte. Afundei o rosto entre as mãos e solucei. Minha mãe sentou-se na cama e me abraçou.

— Ei, foi só um sonho. Calma. — ela sussurrou no meu ouvido.

— Ah, meu Deus, foi horrível... horrível... — balbuciei, em pânico.

— Já passou. Calma.

— Eleanor... a serra... não pode... Ah, meu Deus...

Ignorem a falta de nexo na frase, eu estava em pânico.

— Vamos, se acalme, minha garota. Foi apenas um sonho.

Ela realmente não sabe nada sobre os meus sonhos.

— Vou pegar um copo d'água para você. — ela sugeriu.

— Não! — recusei. — Não, por favor. Eu não... — eu ia dizer que não queria ficar sozinha, mas iria ser meio estranho. Ela entendeu e determinou:

— Então vamos juntas.

Eu me sentei na cama e me levantei, mas minhas pernas estavam tão bambas que quase não consegui me manter em pé. Minha mãe me ajudou e me conduziu até a cozinha. Sentei-me em uma das cadeiras e enfiei o meu rosto entre as mãos. Sem sombra de dúvida, esse foi o pesadelo mais apavorante da minha vida. Minha mãe pigarreou e finalmente notei que ela tinha colocado um copo de água na minha frente. Peguei o copo com mãos trêmulas e bebi alguns goles.

— Sente-se mais calma? — ela indagou, solícita.

— Mais ou menos. — murmurei.

— Imagino que tenha sido um sonho muito ruim.

Eu olhei para minha mãe e falei séria:

— A senhora nem imagina o quanto.

— Vamos voltar para o quarto. Tente dormir.

— Não vou conseguir. — sussurrei de cabeça baixa.

— Tente. Se quiser, eu fico por lá até você ir dormir.

— Não, não precisa. Já estou mais calma. Dá para ir.

Ela olhou para mim com olhar desconfiado. Assegurei:

— Qualquer coisa, eu chamo.

— Vou confiar em você. Vamos, vamos subir.

Subimos as escadas e cada uma entrou no seu respectivo quarto. Eu me sentei na cama, abraçando minhas pernas. Não adiantava, eu não conseguiria dormir. Desenhar o que acontecia depois? Não. Eu me amo o suficiente para não desenhar aquilo. Ir para a floresta pegar o resto dos dardos... era uma boa ideia, mas o fato de ter que ir sozinha não me agradou.

Se bem que ir só era melhor do que ir com Jaden. Não que a companhia de Jaden fosse desagradável, muito pelo contrário! Só que aquele pesadelo... Criei coragem. Olhei as horas no meu lindo relógio de parede: eram 04:45 a.m. Dei de ombros. Eu ia sair de todo jeito. Troquei de roupa, coloquei minha bota, calcei as luvas, peguei minha balestra, a minha mini aljava e saí, procurando ser a mais silenciosa possível.

Eu não ia atirar. Só ia usar... vocês sabem, só em casos de emergência. Em pouco tempo, cheguei ao bosque. Olhei ao redor e notei que os dardos estavam no mesmo lugar. Suspirei. Agora é só tirar.

Subi em uma árvore, tirei um dardo e coloquei no meu bolso. Pulei para outra árvore e, graças a Deus, deu certo. Tirei outro dardo. Diminuí a altura, pulei para outra e, no meio do caminho, a risada sinistra daquele homem ecoou nos meus ouvidos.

Eu me distraí. Não segurei a árvore direito e acabei caindo de uma altura de um metro e alguma coisa. Meu corpo inteiro sentiu o choque daquele tombo. Não foi tão ruim, as folhas amorteceram minha queda. Mesmo assim, doeu. Fiquei por um bom tempo lá, deitada, sem coragem para me levantar, vendo as folhas que joguei para cima com o meu ppouco peso deslizarem no ar e caírem. Deu vontade de ficar por ali, porém, se eu sumisse, minha mãe ia fazer um escândalo.

Levantei-me, dolorida. Minha cabeça tinha batido em alguma coisa, pois latejava. Quando fiquei em pé, pisquei forte e me apoiei em uma árvore. Não consegui tirar todos os dardos, isso é evidente, mas a maioria nem dava para ver. Quem olhasse para aquilo ia pensar que um caçador com uma péssima mira tentou caçar algum pássaro e não conseguiu. Respirei fundo. Ia ser difícil voltar para casa dolorida do jeito que eu estava. Caminhei lentamente, meio desorientada.

Quando cheguei ao quintal da minha casa, notei que não conseguiria subir aquela árvore. Entrei pela porta dos fundos mesmo, tirei as botas e as meias em cima de um tapete que havia lá, enfiei as meias dentro do calçado, peguei as botas e andei silenciosamente. Subi as escadas e quando passei pelo quarto da minha mãe, escutei o seu leve ressonado. Ao menos ela não me viu sair. Entrei no meu quarto, coloquei minhas botas no lugar de costume, guardei minha arma e a munição, me sentei na cama.

Já eram quase seis horas. Resolvi tomar um bom banho de água gelada. Despi-me, peguei minha toalha de banho e entrei no banheiro. A sensação maravilhosa da água caindo no meu corpo me fez esquecer temporariamente tudo. Depois desse banho muito mais do que demorado, saí do banheiro, vesti uma roupa leve.

Deite-me, só para ver se o meu corpo parava de doer tanto. Meus olhos começaram a pesar e eu até cedi, mas um flash daquele sonho com Eleanor partida ao meio me fez estremecer. Sentei-me à minha banquinha e resolvi desenhar a mulher loira e quase morta, porém de uma forma mais saudável. Quando eu acabei, o despertador tocou.

— Shelly, você vai para a escola hoje? — minha mãe gritou perguntando.

— Vou!

Estiquei-me na cadeira. A dor de cabeça tinha passado mais, todavia meu corpo continuava dolorido. Mesmo assim, iria para a escola. Rapidamente guardei o meu desenho junto com os outros. Fui ao banheiro, me olhei no espelho e não gostei do que vi. Um rosto pálido, com olhos fundos, lábios sem cor, os cabelos longos em total desordem, emoldurando o que seria uma ótima face de um filme de terror. Suspirei. Lavei meu rosto, coloquei um pouco de corretivo, o que não ajudou muito, troquei de roupa e desci as escadas. Encontrei a minha mãe na cozinha, bebericando uma xícara do café.

— Conseguiu dormir?

— Não.

Ao menos fui sincera.

— Ao menos hoje é o último dia da semana.

— Felizmente.

— Tem o que para o café?

— Ovos fritos e suco de laranja na geladeira.

Dei de ombros. Peguei um pão, coloquei o ovo dentro, enchi um copo com suco e comi tudo. Peguei os livros, saí e fui para o ponto de ônibus.

Hora de disfarçar meus medos intensos e meu choque.

Jaden chegou logo depois e me olhou meio espantado.

— Shelly, o que houve?!

Sorri.

— Digamos que o meu problema de insônia atacou novamente.

— Você parece doente. — ele comentou, parecendo preocupado.

— Não é nada demais. E provavelmente vou dormir em alguma aula.

Jaden sorriu.

— Você tem jeito?

— Provavelmente não. — sorri, mas parei de sorrir com a pergunta que veio a seguir:

— Você escutou um grito que houve ontem à noite?

Vamos lá, Shelly, diga alguma coisa.

— Grito? — procurei ganhar tempo.

— Sim. Alto e digno de um filme de terror. Acordei com ele. Por alguma razão, me arrepiou até os ossos.

— Escutei, mas achei que tinha sido coisa da minha imaginação, então voltei a tentativa de dormir.

— Ah, sim. — Uns segundos de silêncio e perguntei: 

— Você conhece alguém chamada Eleanor?

— Eleanor... não. Não conheço. Por quê?

— Por nada, por nada. – mudei de assunto rapidamente: – E aí, já se habituou a vida no Canadá?

— É, está dando para se acostumar, embora não tenha ido conhecer a cidade.

— Eu te mostro. Afinal, você está falando com a melhor guia turística do Canadá.

Ele sorriu. Bocejei e me escorei no poste.

— Agora deu sono, hein, garota?

— Sim. Meu metabolismo decidiu: os dois primeiros horários serão para compensar parte das horas que não dormi.

O ônibus chegou e nós entramos. Ao invés de sentar lá no fundo com a galera, no meu lugar de sempre, sentei na primeira cadeira do lado esquerdo, na janela. Jaden sentou-se do meu lado. Eu cerrei os olhos, cansada e dolorida. Cochilei por alguns instantes até que sinto um braço na minha frente, me impedindo de ir para frente e cair por causa da inércia do ônibus. Dei um salto, lembrando-me também da garotinha partida ao meio. Jaden me segurou.

— Você precisa ficar mais atenta, hein?

Esfreguei os olhos.

— Vou deixar para dormir na sala mesmo.

— Durma aí. Eu impeço você de cair.

— Não, não. Desisto da ideia de dormir no ônibus. Converse comigo. Assim eu não dormirei. Gosta de que tipo de música?

— Ah, aí fica difícil definir. Vai desde o hip hop, rock, rap, até a música clássica.

— Música clássica?

— Eu toco violino. – ele esclareceu.

— Que bacana! Eu acho o violino um instrumento muito lindo! – dei minha opinião, entusiasmada.

— Um pouco complicado de se aprender, mas vale a pena. Eu tenho que ensaiar para um recital em que vou tocar em Sacramento.

— Daqui a quanto tempo? — questionei.

— Três meses.

— Dá tempo. — afirmei.

— Esse será o meu segundo recital.

— Já? — perguntei surpreendida.

— Sim. — o loiro respondeu sorrindo, talvez da minha surpresa.

— Fantástico. — comentei.

— Que nada. — ele meneou a cabeça, sorrindo orgulhosamente.

Chegando à escola, descemos do ônibus e nos dirigimos à sala. Lá, Jaden acabou por ficar no banco da frente e eu fui lá para trás. Logo, logo, me esqueci de sonhos, de preocupações e da aula de história. Perdi a noção de lugar, consegui dormir só pela exaustão mental, acordei com Jaden me cutucando:

— Ei, acorda! Aula de artes musicais agora para nós. Você precisa me mostrar onde é a sala.

Num instante, fiquei esperta.

— Ah, vamos para ontem! O que estamos fazendo aqui ainda?!

Peguei a minha mochila e saí rapidamente da sala, basicamente correndo. Quando chegamos à sala, o professor tinha acabado de sentar-se em sua cadeira.

— Ah, Miss. Shelly! Fico feliz que tenha chegado. Apresente-me o aluno novo.

Ao menos Jaden me seguiu.

— Ele é Jaden Pendlebury e ele toca violino.

— Shelly! — ele reclamou baixo, num tom repreensivo.

— Ah, é verdade, Mr. Pendlebury?

— Sim. Eu tocava na Orquestra Filarmônica de Sacramento.

Alguns alunos fizeram "Oh!", outros ficaram cochichando. O professor pegou o seu violino, entregou a Jaden e disse:

— Toque um pouco para nós.

Ergui as sobrancelhas, surpresa. O professor nunca deixava ninguém tocar sequer no verniz do seu violino. Jaden ficou sem graça. Eu me afastei um pouco, sentando-me, e ele começou a tocar Eine Kleine Nachtmusik, Mozart. Ele tocava bem. Muito bem. Ele parou de tocar no meio da música, depois de fazer a parte rápida da mesma. Todos o aplaudiram. Jaden devolveu o violino ao professor e sentou-se do meu lado. Mr. Dasovic agradeceu e colocou o violino em posição segura sobre a mesa.

— Alguém sabe qual foi a música que acabou de ser tocada? — o professor questionou. Ninguém falou nada, então, levantei a mão. Ele fez sinal para que eu falasse.

— Essa é Eine Kleine Nachtmusik, de Mozart. — respondi. Como eu não poderia saber, era meu toque de celular!

— Sim.

Então ele começou a falar da história de Mozart e tudo o mais. E, realmente, era de se lamentar que um cara que compôs tanto tivesse morrido tão jovem. Óbvio que, como eu gostava da aula, acabou num piscar de olhos. Outro intervalo. Jaden e eu fomos para o pátio, mas ele foi conversar com o grupo de músicos da escola enquanto fui conversar com outras pessoas. Quando nos encontramos novamente, indaguei:

— Ainda não escolheu um grupinho?

— Bem, o grupinho dos nerds tem caras bacanas, mas eu não sou tão viciado em jogos. Os populares são abusados demais, não sei como você tem tanta paciência. Eu não sou suficientemente conhecedor de música clássica para participar do grupo dos músicos, embora dê para conversar bastante com eles. E nem me fale no grupo dos skatistas, não posso colocar os pés em um skate sem cair.

Ri, divertida. Ele parecia um tanto assombrado por uma solidão com a qual ele já tinha sofrido, se acostumado e construído amizade.

— Eu também não entro em nenhum tipo de grupo. Sou uma espécie de... coringa. Dou-me bem com todo mundo, mas não faço parte de nenhum grupinho, por assim dizer.

— Tem pessoas que vivem assim e vivem muito bem. Não vejo necessidade em ficar escanchado em alguém para se sentir seguro e mal se conhece.

— Concordo completamente! — exclamei, contente. Finalmente tinha encontrado alguém para conversar assuntos que eu gostava tanto!

Ficamos conversando sobre esse assunto, depois como algumas pessoas precisavam de ajuda, em seguida de como a sociedade capitalista quase forçavam as pessoas a comprar e como isso levava a insatisfação pessoal... Eu me surpreendi com a amplitude com que ele via tudo, com seu modo de ver o mundo. Era aberto, impessoal, mas com um toque de sensibilidade e sutileza, nada em excesso. Mal percebi quando o toque se fez soar.

— Próxima aula: Matemática. — anunciei. Jaden sorriu.

— Você é uma pessoa muito boa para se conversar. Dá para falar qualquer coisa com você.

Eu sorri, sem graça. Eu nunca conseguia retribuir ou agradecer a um elogio que me faziam. Que torturante.

— Uh... é, legal. Você também. — gaguejei

Droga, Shelly. Não podia pensar em algo mais interessante para dizer não?

Jaden riu. Eu o olhei e aquele choque atravessou meu corpo. De novo. Quando eu o olhava, era uma sensação tão familiar... De onde eu o conhecia? Ele também olhou para mim, com seus olhos brilhantes. Parecia meio em transe. Desviei o olhar antes que meu cérebro não pensasse mais.

— Vamos para a aula ou ficaremos com a fama dos alunos que mais se atrasam.

— É, vamos.

Quando entramos na sala, o professor milagrosamente ainda não estava lá. Procurei esquecer a cena anterior e comecei a conversar com ele e, aos poucos, nos introduzimos em um assunto sobre sonhos.

— Eu li uma vez que os sonhos são a realização dos nossos desejos. — ele introduziu um assunto.

Eu o olhei, séria. “Sonhei com a morte da sua irmã, soldado”, quis responder. “E você não fazia nada para impedir”. Ainda estava chocada com aquele sonho. Mas...

Sério que ele realmente achava aquilo?

— Sigmund Freud era louco.

— Você não concorda?

Eu ri, amarga.

— Aquele cara, definitivamente, só sabia da metade de definição de sonhos. O resto, ele generalizou. Um completo idiota.

— Por que você diz isso? — Jaden questionou.

— Vamos lá, alunos, vamos prosseguir com Logaritmos. Abram os livros na página 149. — o professor chegou sem nos dar bom dia e exigiu logo. Grosso...

Eu só fiz pegar o livro e abrir na página exigida. Jaden ainda me olhava com expressão meio confusa, afinal, não era todo mundo que chamava Sigmund Freud de louco e de idiota. Fiz fielmente os cálculos de matemática. Ao final das aulas, coloquei meu material na bolsa e quando eu ia saindo da sala, Jaden chamou:

— Ei!

Voltei-me.

— Espere-me, por favor. — ele pediu. Eu o aguardei e ele logo veio com sua mochila. Falou: — Agora quero saber por que Sigmund Freud era um idiota.

— Sonhos não são apenas vontades reprimidas. — expus meu ponto, entediada.

— Algumas vezes não parece, mas se você observar bem... — ele tentou falar, mas o cortei:

— Nem tente me convencer.

— Como você pode falar tanto sobre sonhos se, certamente, mal os têm? — ele indagou com ar de dúvida.

Ok, agora ele implorou por isso.

— Mal os têm?! — perdi o controle. — Escuta, garoto, você não sabe nada sobre isso.

— Ah, é?! E o que você sabe? — ele questionou em tom propositalmente provocativo. Ele queria arrancar informações. Mas eu não as daria tão fácil.

— O que você, definitivamente, não sabe. Se me der licença, vou a pé. E nem ouse me seguir ou quando eu chegar a minha casa, minha primeira providência vai ser lhe perseguir com minha balestra.

Andei e Jaden não me seguiu de início, mas logo eu ouvi seus passos atrás de mim. Quando eu percebi, ele já caminhava do meu lado. Viramos a esquina e logo entramos numa rua deserta. Ele levou a mão ao bolso e puxou uma balinha de caramelo.

— Admiro sua coragem. — comentei ainda irritada.

— “Sonhos” me parece ser um assunto meio impossível para você. — ele considerou, ignorando a frase que resmunguei.

Talvez por que eu só sonhe com a desgraça alheia.— lamentei no mais perfeito francês.

— O que você disse? — ele indagou franzindo o cenho.

— Não gosto de sonhos. Eles são confusos. — dei uma desculpa clássica, olhando para a calçada.

Senti-me horrível. Como eu podia mentir para um garoto como Jaden? Conhecíamo-nos há um dia e eu já sentia uma imensa confiança naquele cara, como se pudesse falar tudo e ainda manter isso tudo em total sigilo. Mas eu sentia medo. Medo de parecer estranha e louca. Vaidade maldita.

— Jaden... — comecei, sem coragem de concluir.

— Diga, Shelly.

— Eu disse aquilo sobre Freud porquê... bem, eu...

Shelly, você sabe, por favor, não gaguejar?

— Algum problema? — Jaden indagou solícito.

Olhei para as folhas de uma árvore e para o céu, tentando me controlar como sempre tive sucesso em fazer. Dezesseis anos tendo sonhos premonitórios podem deixar uma cabeça meio fragilizada. E eu estava tão cansada. Cansada de tê-los, de tentar entende-los, de martelar minha cabeça procurando uma solução e, principalmente, de ter que escondê-los.

E o sonho daquela menininha... Ela não merecia morrer daquela forma, era apenas uma criança. Meus sonhos me ensinaram que pessoas podem ser más, contudo eu não queria ver essa maldade. Não mais. Era horrível.

— Não, deixemos isso para lá. — pedi engolindo minha vontade de chorar, sacudindo a cabeça. — Quer conhecer melhor o bairro?

— Ah, claro. Vai ser um prazer.

— Então, continue me seguindo, vamos pegar um ônibus. Hora de conhecer Kerrisdale.


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Notas finais do capítulo

Fiquei sem postar semana passada porque postei dois capítulos semana retrasada, então me senti mais à vontade em dar um tempinho. Semana de prova é fogo, mas prometo manter o ritmo de postagem (e sem 45 dias ou mais sem atualizar).
Esqueci de dizer nos capítulos anteriores: imagino Jaden parecido com Lucas Till, porém mais novo do que ele está atualmente. E os capítulos estão ficando maiores! O que acham disso? Devo reduzir a quantidade de palavras ou assim está ok?
Agradeço a quem comentou e a quem está acompanhando, precisamos de mais pessoas como vocês no mundo :3
Até o próximo :*