Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 4
Capítulo 4 - Dejà vu


Notas iniciais do capítulo

Como uma boa vizinha, Shelly ajuda seus novos vizinhos, mesmo que esteja preocupada...
Espero que gostem.



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Demorei um pouco a processar a informação.

— Espera: você está se mudando para a casa da esquina, certo? — perguntei.

A casa da esquina era inabitada desde que eu tinha dez anos. Uma mulher cometeu suicídio lá e adivinhem: sonhei com isso antes que acontecesse.

— Isso. Meus pais estão organizando tudo hoje, tenho que chegar logo em casa. — ele explicou.

— Por isso que eu tinha visto homens reformando a casa. Quer ajuda? — indaguei solícita.

— Seus pais não ficarão preocupados não?

— Minha mãe trabalha o dia todo, ela não vai se incomodar. Meu pai não vive comigo.

— Ah... certo. — Acho que ele ficou meio sem graça em ter perguntado isso, mas demonstrei não me importar muito.

O ônibus chegou. Subimos e eu fui logo conversar com a galera do fundo do ônibus. Procurei incluir Jaden na conversa. E até que ele foi um bom conversador. Dava a impressão que ele podia conversar sobre qualquer coisa. Enfim, logo chegamos à minha rua e, consequentemente, à frente da minha casa.

— Bem, eis minha casa. — mostrei. — Vou só deixar as minhas coisas aqui dentro.

— Certo, te espero aqui fora.

Deixei minhas coisas em cima do sofá e tranquei a casa de novo. Andamos até a esquina e pronto, chegamos à casa dele. Sorri.

— É só tropeçar e eu já estou na sua casa! — comentei.

— Verdade. — ele riu também. — Vem, vamos entrar.

Ele abriu a porta e eu entrei logo em seguida. Resumo da casa: caixas, móveis fora de lugar e uma mulher atarefada andando de um canto a outro da casa enquanto um homem procurava ajuda-la.

— Mãe, pai, temos visita — Jaden chamou a atenção deles.

Foi quando eles me notaram.

— Ah, me desculpe, querida, mas é que temos tanto a organizar! — A mulher olhou para mim e sorriu. Eu a olhei fixamente. Ela era... Eles eram... Ah, meu Deus.

— Mãe, essa é Shelly. Estudamos na mesma escola e ela mora a duas casas daqui. — Jaden adiantou as apresentações, me fazendo um favor.

Fiquei em choque por uns dois segundos até que eu notei que eles me olhavam com certa preocupação. Tratei de me recompor.

— Olá. — Dei o meu melhor sorriso forçado.

— Eu sou Adele e esse é meu marido Robert. — a dama se apresentou.

— Minha mãe vai gostar de conhecê-los. — procurei desviar a atenção do que eu estava pensando. — Vim aqui para ajudar vocês com alguma coisa...

— Ah, querida, não precisava se incomodar...

— Não é incômodo nenhum. – adiantei-me.

Ah, me esqueci de descrever o casal: Adele tinha cabelos castanhos, ondulados e presos em um coque, olhos castanho-escuros e simpáticos, sorriso bonito e fácil, nariz empinado, um pouco acima do peso. Robert não era exatamente bonito, mas era charmoso. Tinha olhos castanhos, grandes e expressivos, cabelos castanhos médios, pele clara, uma boca estranhamente carnuda. Sim, acho homens com boca carnuda estranhos.

— Então, você poderia me ajudar na cozinha! Tem muito a pôr em ordem. — Adele convidou em um sorriso entusiasmado.

— Tudo bem. — concordei num amplo sorriso. Eu realmente deveria ganhar um Oscar. Mas aí... — Portanto que não tenha muita poeira... Sou asmática, não é muito boma exposição a poeira e...

— Ah, não se preocupe, limpamos tudo antes de nos mudarmos.

— Então tudo bem.

— Jaden, meu filho, pode me ajudar aqui na sala? — Robert pediu. Que voz grossa.

— Beleza, pai.

— Venha, querida.

Acompanhei Adele até a cozinha.

— Você mora aqui há muito tempo? — ela perguntou enquanto eu a ajudava a colocar a louça no lugar.

— Desde que eu nasci. — respondi sorrindo.

— Tem quantos anos?

— Dezesseis.

— Ah, Jaden tem dezessete, é um ano mais velho que você.

— É, ele me disse.

— Jaden nem queria tanto assim vir. Sabe como é, ele tinha amigos, escola, namorada...

— Compreensível. Também não iria querer sair daqui.

— E também, a ex-namorada dele... sabe, não era para o meu filho. Era uma péssima companhia.

— Entendo.

— Você tinha que ver quando ele era pequeno, era a coisa mais fofa do mundo!

Ela era a típica mãe coruja.

Depois dessa frase, ela começou a falar da infância do garoto e de todas aquelas histórias constrangedoras que, se Jaden soubesse que Adele estava me contando, ele enfiaria sua cabeça no solo e não a tiraria de lá. Quando terminamos, voltamos à sala, que jazia devidamente em ordem em consequência dos nossos esforços.

— Ah, graças a Deus falta pouca coisa. — Adele suspirou.

— Verdade. — Robert concordou.

— Venham comer, farei um lanchinho para nós. — a dona da casa convidou. Vendo que eu mordia o lábio, um tanto constrangida, ela riu e acrescentou: — Você está incluída também.

Rimos. Fomos para a cozinha, onde Adele começou a fazer sanduíches para nós, e Robert me perguntando como era a escola. Jaden disse que eu era a melhor guia turística do Canadá. Isso foi só porque mostrei a escola para ele e porque ele não sabe que conheço Vancouver em peso. Lanchamos e conversamos distraidamente até que olhei a hora: 08:30 p.m.

— Nossa, preciso ir para casa. — Percebi.

— Mas já? — Jaden reclamou.

Sorri.

— É, tenho que ir para casa.

— Tudo bem, querida. Jaden, acompanhe a garota até a porta.

Eu me levantei:

— Foi um prazer conhece-los.

— Ah, o prazer foi nosso. — Robert disse num sorriso.

— Venha sempre, querida! — Adele exclamou, dando um abraço em mim. Mulher simpática.

— Pode deixar. — respondi meio constrangida. Jaden me acompanhou até a porta. Quando a porta foi fechada, ele falou:

— Eu ia te pedir para você me ajudar em francês... naquela hora.

Naquela hora... calma, estou processando. Ah, naquela hora. Quando ele viu aquele desenho e quase teve um ataque cardíaco.

— Ah, tudo bem, eu posso te ajudar, francês não é tão difícil quanto parece ser. — disfarcei.

— E quanto a aquele desenho...

— Eu vou guardar... e quem sabe fazer uma versão melhor. Até amanhã.

Dei meia volta e fui para casa. Assim que entrei na minha casa, minha mãe levantou-se do sofá e disse logo:

— Shelly Marie Revenry! Onde você estava até essa hora da noite?

É, me esqueci de dizer: meu nome do meio é Marie. Clichê, não?

— Desculpe por não deixar recado, mãe, é que eu fui direto para a casa dos novos vizinhos da esquina. Tem um garoto lá que começou a estudar hoje na minha sala.

— Ah, certo. Um garoto, eh? — ela disse me olhando com desconfiança. Eu olhei para minha mãe com a minha melhor cara de "Você só pode estar brincando".

— Não é nada do que você está pensando.

Ela riu.

— Ok, ok. Já jantou?

— Sim, mas, se você quiser, eu te acompanho no jantar, só na conversa mesmo.

— Combinado. Vamos, acabei de esquentar a comida.

Fomos para a cozinha e, enquanto ela colocava a comida no prato, falei-lhe sobre os nossos vizinhos com naturalidade. Ela contou como foi seu dia de trabalho. Depois que ela terminou de comer, eu disse que ia para o meu quarto e fui logo antes que ela começasse a dizer que fico muito enfurnada nele. Primeira coisa que fiz: passei o desenho a limpo, coloquei o máximo de detalhes que pude e até desenhei, em outras três folhas, algumas cenas do que aconteceu depois.

Bem, certamente vocês notaram que Adele e Robert não são os pais de Jaden. Eles eram o casal daquela noite. De quem Jaden era filho? Eu tinha uma breve desconfiança. Resolvi deixar isso para lá. Afinal, aquele assunto não me dizia respeito. Peguei o desenho da menininha amarrada no tronco e olhei para a minha "obra prima". Se aquilo fosse visto por alguma criancinha, provavelmente causaria alguns pesadelos. Mesmo com esse fato, aquele desenho foi, praticamente, o melhor desenho que já fiz. E que, provavelmente, iria sonhar com aquilo. De novo.

Eu precisava sair, pensar. Abri o fundo falso, guardei meus desenhos, peguei minha balestra, alguns dardos, um casaco, coloquei minhas botas preferidas e saí pela janela, descendo a árvore seca. Fiquei com a sensação de que me esqueci de alguma coisa, mas não me lembrei o que era. Ninguém merece. Quando desci da árvore, olhei pela janela e vi minha mãe dormindo na frente da TV. Está aí a explicação de ela nunca notar as minhas saídas noturnas.

Ah, rápido esclarecimento: sim, eu tenho uma balestra que é diferente de todas as balestras que já vi. É uma espécie de pistola ao invés de ser na forma de espingarda. Tem garotas que se defendem com facas (embora eu também me defenda com facas), artes marciais ou algo do gênero, mas sempre tive um tombo por arco-e-flecha. Já como arco-e-flecha é praticamente inutilizado, eu fiquei meio decepcionada. E, em uma das raras vezes que o meu pai apareceu, ele me presenteou com essa balestra. Meu pai é do Exército Brasileiro, então não foi difícil para ele conseguir uma, mas só Deus sabe como ele conseguiu entrar no Canadá com uma.

Usos de uma balestra? Vários! O Centro de Instrução de Guerra na Selva, que fica na Floresta Amazônica ou algo do tipo, treina seus "recrutas" a saber utilizar bestas. É uma arma usada em algumas competições de tiro com arco. Também é utilizada em alguns casos especiais. Dá para matar com essa arma. O OSS (Office of Strategic Services, atual CIA) matou algumas pessoas apenas com balestras na Segunda Guerra Mundial. O Exército Americano tem algumas versões... Ok, já deu para entender. Embora não seja tão popular, gosto dessa arma em especial.

Enfim, cheguei a um bosque que tem perto da minha casa. Felizmente, não é tão difícil achar um bosque por aqui. Olhei ao redor. Escuro, silêncio, árvores, insetos, chão cheio de folhas. Está aí o resumo. Respirei fundo, tirei um dos dardos, coloquei na balestra e comecei a atirar nas árvores. Ambientalistas me detestam, tenho certeza. Continuei a atirar, concentrada, quebrando alguns galhos, até que escuto uma voz atrás de mim.

— Você atira bem.

O cérebro disse "Pare!", mas o dedo estava no gatilho. Sem querer, apertei-o e se Jaden não tivesse sido rápido e desviado, teria sido ferido.

— Você é louco?! — indaguei assustada.

— Eu ia te perguntar a mesma coisa. — ele falou olhando para o dardo no chão e para mim, na mesma emoção que eu.

— O que faz aqui? – perguntei, impaciente.

— Resolvi andar por aí, conhecer melhor o bairro. – esclareceu em tom casual. – Acabei chegando perto e observando você atirar. Que pontaria, hein?

— É um pouco tarde para garotos... — eu ia dizer indefesos, mas ia soar estranho. Prossegui com a frase: — Novatos no bairro estarem em uma floresta deserta e escura às 11:00 p.m.

— Eu sei me cuidar. — ele sorriu, soturno. — Apresente-me a arma que quase me matou.

Segurei com as duas mãos a balestra.

— Isso é uma balestra. — esclareci como quem fala a um garotinho de três anos.

— Tudo bem, vamos processar as informações: você é a garota mais popular e misteriosa da escola, desenha como uma profissional, é uma ajudante inata e sabe atirar com um troço que parece uma pistola misto de arco-e-flecha. — ele fez o levante de informações como quem lê um relatório.

— É uma balestra. — repeti.

— Ok, ok. É uma ba-les-tra. — ele separou as sílabas. Rolei os olhos e não consegui reprimir um sorriso.

— Perdido? — indaguei, vendo que ele olhou ao redor, um tanto apreensivo.

— Um pouco. — ele admitiu.

— Ah, não se preocupe, você está com a melhor guia turística do Canadá. — brinquei, lembrando-me do que ele disse. Jaden riu.

— Ah, é, tinha me esquecido desse detalhe.

— Quer aprender a atirar com uma balestra?

— Sei lá... nunca peguei em arma nenhuma.

Eu o olhei, incrédula.

— Dessa vez, eu farei o levantamento de informações: você é um garoto da terra do Tio Sam, um legítimo americano, onde todas as armas imagináveis são liberadas, e você nunca pegou numa arma.

Jaden olhou para mim, quase rindo, parecendo um menino.

— É.

— Oh, Jesus... Tudo bem. Vamos lá, aula particular com titia Shelly: segure a balestra assim, como quem mira numa arma comum. — Enquanto eu falava, o fiz segurar a arma e ensinando-o a mirar. Ok, essa cena está invertida. — Agora é só apertar o gatilho.

Jaden atirou numa árvore e acertou um galho. Ele quase cai com o recuo de arma. Eu ri e ele fez o mesmo.

— Isso é bacana. — ele comentou, ainda sorrindo.

— Bacana é o que eu vou fazer agora. Se quiser, fica treinando um pouquinho, mas tente não me acertar.

— O que você vai fazer? — ele indagou, curioso.

Tirei meus dardos da cintura, deixei no chão e comecei a subir em uma árvore para tirar um dardo que ficou cravado lá. Geralmente, costumo retirar os dardos que atiro. Não sei se essa informação é ciente, mas, no Canadá, o porte de armas só é legal para pessoas maiores de dezoito anos. Sendo assim, tiro os dardos, apenas para joga-los fora, muito bem disfarçados, ou queima-los. Virei-me, na árvore mesmo, me joguei para outra árvore e quase que caio.

— Shelly! – Jaden gritou preocupado. Eu o olhei com desdém.

— Ei, eu sei subir em árvores! — gritei de volta.

Escalei uma distância curta e tirei o outro dardo. Dessa vez, optei por descer. Minhas mãos ardiam. Olhei e vi que tinha alguns cortes. Ah, lembrei-me do que esqueci: as luvas. Sempre levo luvas quando vou atirar, facilita o meu trabalho quando vou tirar os protótipos.

— Suas mãos merecem bons curativos. — Jaden comentou.

— Verdade. — tive que concordar. — Mas não tem problema. Amanhã cedo eu venho pegar o resto.

Ele olhou a hora e eu estiquei o pescoço para ver também. Olhei meu relógio e eram 11:15 p.m.

— Você tem um sério problema de insônia, hein?

Eu ri. Se ele soubesse da metade da história...

— É, por aí.

— Você vai voltar agora?

— Sim. Vamos. – chamei, pegando os meus dardos e a minha balestra de Jaden.

— Dá para levar?

— Relaxe, cara. As mãos estão cortadas, não amputadas.

Ele sorriu.

— Você faz isso há quanto tempo? – perguntou com curiosidade.

— Uns dois anos. – respondi.

— Todo dia?

— Na maioria das vezes, sim. Às vezes, fico uns dias sem atirar. Tipo uma semana ou duas.

Ele assobiou.

— Interessante.

— Nessa rotina de atirar em árvores e treinar pontaria, é a primeira vez que um garoto quase morre. – comentei com ar inocente.

Jaden riu. Uma risada cristalina.

— Tudo tem sua primeira vez. — ele comentou.

Chegamos aos fundos da minha casa.

— Vemo-nos amanhã? – perguntei.

— Sim. Até mais. – ele despediu-se, indo silenciosamente para frente da minha casa e indo à sua casa.

Eu escalei a árvore, entrei no quarto, guardei a balestra, tirei minhas botas e me dirigi ao banheiro, com a intenção de lavar minhas mãos. Ardeu. Ouch. Tomei banho e vesti uma roupa de dormir. Olhei a hora: meia noite e meia. Até que cheguei cedo. Deitei-me e, por milagre, dormi logo.

E, óbvio, os sonhos não me abandonaram.


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Notas finais do capítulo

Peço desculpas caso a história esteja indo devagar, mas foi como quis escrever. Críticas, elogios, sugestões e correções são bem-vindos.
Até a próxima :*