Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 31
Capítulo 30 - Combustão




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 Acordei de umas 8:00 a.m., esperando que o dia fosse bom. Mesmo com isso, me senti um pouco preocupada sem saber exatamente com o quê. Olhei para o teto, sentindo o frio impregnado nas paredes, resultado de uma madrugada cheia de ventos gélidos.

Depois de Jaden perdoar os pais, o clima ficou menos tenso. Ele pareceu mais tranquilo e descontraído. Para ser franca, não gostava muito do que eu estava começando a perceber em mim. Eu não podia vê-lo ou falar nele sem sentir meu coração dar umas batidas a mais por minuto, o que achei horrível. Com tantas visões e movimentações na minha vida, eu tinha logo que me apaixonar pelo meu vizinho?

Ao menos eu conseguia admitir isso depois de muito refletir. Conversei com Mel e ela achou que eu devia beijá-lo logo e me declarar, mas a ideia me deu arrepios. Ter que saber se ele gosta de mim? Namorar de novo? Tentando esconder a minha habilidade? Ou pior: ter que contar sobre ela antes? Ah, não, estou bem só, obrigada.

O problema é que a ideia estava me matando. Queria poder conversar com Jaden abertamente sobre isso, mas eu não conseguia encontrar as palavras. Não para falar disso. Ele devia estar me achando louca por causa do dia do choro. Procurei manter a normalidade na nossa amizade.

Sacudi a cabeça, tentando desfazer a quantidade de pensamentos aleatórios, levantei-me, fiz minha higiene matinal, saí do quarto e vi que minha mãe já havia saído de casa. Vi um recado fixado na TV:

Shelly,

Fui comprar material para a nossa ceia.

Espero voltar logo.

Você sabe quem é.

Ok, mãe. O dia prometia chuva, pelo que pude ver pela janela. Tomei café da manhã, deitei-me no sofá. Resolvi ligar para Jaden:

Oi, Shelly. Tudo bem? — ele atendeu e senti um sorriso involuntário distender minha fisionomia.

— Ah, sim. Tudo. Só não tenho o que fazer, aí resolvi ligar.

Ben e Clint estão me ajudando a fazer o jantar aqui no meu cubículo. Eles foram gentis. Quem diabos acorda às 6:30 a.m. para ajudar o amigo a cozinhar?

— Imagino. — idealizei sua animação, a sua expressão animada e seu sorriso desenhando-se em minha mente.

Querendo vir ajudar...

— Não sei. Vou pensar.

Estamos beliscando camarão. — ele informou em tom divertido.

— Isso é chantagem, Jaden. — reclamei com água na boca. Ele riu:

Já pode vir, Shelly.

Despedimo-nos, desliguei o telefone. Ir ou não ir? Queria ir, mas estava com receio de onde meus sentimentos estavam me levando. Decidi ir. Não é como se eu fosse ficar sozinha com Jaden. Troquei de roupa, peguei minha bicicleta e fui tranquilamente até Chinatown. Ok, era um lugar um pouco frenético. Ergui minha bicicleta e fui subindo a escadaria. Bati na porta e Jaden abriu a porta e seu sorriso foi convencido:

— Sabia que não resistiria ao camarão.

— Vim só porque não tinha nada melhor para fazer. — esclareci enquanto colocava minha bicicleta para dentro do apartamento.

— Agora tem — Ben afirmou me arrastando. — Você será nossa ajudante e irá descascar os camarões.

— Eu achei que já estava pronto — fiz a minha melhor cara triste. Clint olhou com simpatia para mim:

— Foi assim que eles me arrastaram para cá.

— Achamos que precisaríamos de ajuda — Jaden sorriu.

— Mereço. — pensei em voz alta e dando um tapa na minha própria testa. — Vamos, colegas. Temos trabalho a fazer.

Fui à cozinha e me juntei aos meninos no descasque dos camarões.

— Ei, alguém sabe o que está fazendo? — indaguei.

— Eu tenho uma ideia — Clint respondeu. — Bem, por muito tempo, tive que cozinhar para mim e para o meu pai, então...

— Fico feliz por contar com sua experiência, precisaremos dela — Ben pareceu agradecido.

— Seus pais viajaram? — indaguei a Jaden.

— É, minha mã... Adele... Droga, não sei como chamá-la. Enfim, Adele foi visitar a irmã, Riley. Em época de Natal, ela gosta de ir. Foram anteontem, disseram que chegarão no começo da noite.

— Não seria melhor fazer as comidas na casa deles não? — Ben questionou. — Tipo, por razões óbvias.

— É, seria, mas já estamos aqui. — Jaden respondeu, parecendo já ter pego a prática de descascar camarão. — Tomara que essa lasanha fique boa. É a preferida deles.

Você só se magoa com quem se importa.

— Alguém já colocou a massa para pré-cozer? — Clint perguntou.

— Precisa? — Ben indagou. Clint, Jaden e eu batemos em nossas testas simultaneamente. Depois, rimos pela espontaneidade do movimento.

— Sim, cabeça oca. — Jaden respondeu sorrindo. — Pelo menos, em dotes culinários.

— Posso cuidar disso. — me ofereci. — Onde está a massa?

— Espere. — o loiro pediu. Parecendo ter um insight, abriu a porta de um dos armários e pegou a massa da lasanha. — Falta a forma.

— O quê?! — olhei-o, incrédula.

— Ah, peguei emprestada. Está aqui. — ele pegou a forma na parte das panelas e me deu.

— Por um momento, achei que você não teria isso. — comentei enquanto enchia a forma d'água. 

— Não era para fazermos isso. É véspera de Natal. — Ben reclamou.

— É uma boa ação, Ben. — Jaden argumentou. — É algo que você faz no Natal.

— Ainda tenho que ajudar meu pai depois daqui. — Clint informou.

— O que vocês vão fazer? — perguntei levando a forma ao pequeno fogão.

— Meu pai conseguiu comprar peru esse ano.

Comemoramos:

— Uhu! — dei um gritinho.

— Revolucionário! — Ben deu um soco no ar como Freddie Mercury e com o entusiasmo do fim do movimento, dois camarões voaram no rosto de Clint.

— Vai com calma com essa mão, McCarthy. — ele reclamou de forma não tão convincente.

— Donald vai passar o Natal com você? — indaguei. Clint pareceu um pouco sem graça.

— Sim.

— Que fofo — comentei em um sorriso. — Você e Mel passarão separados mesmo, pelo que já nos disseram, certo, Ben?

— Isso.

— Você pode ligar para ela no Natal. — sugeri. — Por sinal, onde está Mel?

— Ela disse que ia arrumar o quarto e estudar programação ontem.

— Ah, verdade. — lembrei.

— Eu não sei como ela gosta disso — Ben comentou meneando a cabeça.

— Também não sei, mas se ela gosta... — Clint deu de ombros.

— E Dave?

— Clube de leitura — os meninos zombaram em uníssono.

— Ele deixou de ter vida social depois dessa porra. — Ben reclamou meneando a cabeça.

— Tipo isso.

— Está faltando música — Jaden decidiu quando finalmente acabamos de descascar os camarões.

— Verdade — concordamos.

Jaden lavou as mãos e deixou seu mp3 no alto falante. “In The End”, de Linkin Park, fez-se ouvir.

— Essa letra é um pouco tensa no começo — comentei.

— O refrão é tão estimulante... — Clint foi sarcástico.

— Mas o som deles é legal. — Ben argumentou.

— Não deixa de ser verdade. — Jaden concordou.

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The clock ticks life away”. Aparentemente, Elizabeth conhecia a música. Foi estranho ouvi-la cantar a parte da rima e imaginei o quão louco seria se eu dissesse em voz alta: “Ei, a música é tão legal que minha amiga fantasma cantou ela!”

Você não canta mal, Elizabeth”, comentei.

Eu sei”, ela respondeu com autoconfiança.

— Vamos cantar o refrão! — Ben intimou.

Com toda a nossa desafinação, cantamos o refrão “estimulante” da música.

— Meu Deus, como cantores, somos ótimos amigos — comentei rindo enquanto desligava as bocas do fogão. — O que faremos com os camarões?

— Fritamos e fazemos o molho depois. — Clint respondeu.

— Clint, o chefe oficial dos Snakes — Ben nomeou fingindo solenidade.

— Já dá para casar, carnuck — provoquei num sorriso e ele ficou sem graça. Era fácil deixa-lo sem graça, quase como eu.

— Tive que insistir para não trabalhar hoje — Jaden pareceu lembrar. — Meu chefe é um pouco louco.

— Devo concordar com isso. — Ben considerou.

— Sério, cara, você deveria procurar outro chefe — Clint retomou um assunto de longas discussões. Jaden rolou os olhos.

— Vocês realmente não cansam de dizer isso. Mr. Wang não é um chefe ruim, ele só é rígido.

— Você é a porra de um adolescente, não devia lidar com “rigidez” — Ben fez aspas com os dedos, largando momentaneamente a fritura do camarão.

— É isso ou morrer de fome.

— Bem, a casa dos pais serve para isso, geralmente. — Clint refletiu.

— Isso se chama independência.

— Ok, pega leve, anjo xingador. — Ben pediu erguendo as mãos em rendição.

Crawling começou a tocar.

— Nada como o poder do aleatório. — Clint notou. — Meu pai gosta dessa banda.

— Seu pai parece ser legal. — Ben comentou. — Um pouco sensível, talvez? Eu deveria tirar fotos.

Olhei-o, sem entender.

— O quê?

— Estamos sendo fodas cozinhando e não temos nenhuma foto?

Às vezes eu me perdia na aleatoriedade dele. O fotógrafo tirou uma foto nossa de supetão: eu encarei a câmera com expressão surpresa, Jaden e Clint sorriam.

— Eu definitivamente não sou fotogênica. — decidi ao ver a foto. — Posso tirar uma sua, Ben.

— Se puder voltar a olhar o camarão, agradecerei, McCarthy.

— Foi mal. — Enquanto eu preparava a câmera, ele voltou à frigideira e a sacudiu levemente, pegando depois uma colher e mexendo-os. Tirei a foto: melhor do que a minha, sem dúvida.

— Ficou muito legal — Jaden comentou.

— Não gosto de sair em foto. — o jovem fotógrafo retrucou fazendo uma careta.

— Sério? — ergui uma sobrancelha.

— A única que eu gostei em anos foi a do baile de Halloween.

— Que eu tirei — fiz questão de lembrar.

— Que você tirou. — ele confirmou.

O camarão ficou pronto e Clint logo adiantou o molho.

— Assaremos a lasanha aqui ou você assa na casa dos Pendlebury, Jaden? — Clint indagou.

— Eu levo e asso.

— Tenho que ir, gente. — Ben informou. — Eu já deveria estar em casa.

— Eu também. — Clint emendou.

— Ei, caras, vocês são fodas. — Jaden expressou-se com sinceridade enquanto apertava a mão de Ben e dava uns tapinhas nas costas dele. Fez o mesmo com Clint: — Valeu pela ajuda.

— Estamos aqui para isso, anjo xingador — Ben afirmou.

— Você sabe que pode nos chamar para qualquer coisa.

— Vamos com calma nessa afirmação, Clint — Jaden brincou sorrindo. Piadinhas à parte, os meninos foram cada um para sua casa, ou seja, fiquei só com Jaden em seu apartamento.

— Como faremos para levar a lasanha? — perguntei antes de pensar demais na situação em que eu me encontrava.

— De ônibus? — ele sugeriu como se fosse óbvio. Pigarreei apontando para a minha bicicleta. — Ah.

Pensei um pouco:

— Minha ideia não é nada convencional — comentei.

Em pouco tempo, Jaden estava na garupa da bicicleta, segurando-se com uma mão e segurando a lasanha com a outra.

— Você sabe que isso é perigoso, certo? — ele procurou confirmar falando perto do meu ouvido.

— Sei! — respondi tentando fazer com que ele me ouvisse. Tive que frear de forma um tanto brusca no sinal e senti ele caindo sobre minhas costas.

— Porra, Shelly.

— Desculpe — sorri procurando demonstrar vergonha. Ele sorriu também. — Segure-se!

Chegamos à casa dos Pendlebury rindo com o transporte louco da lasanha.

— Meu Deus, deveríamos fazer isso mais vezes. — Jaden comentou com seu sorriso largo.

— E ter o risco de cair? — olhei-o, incrédula. — Você é louco.

— Um pouco. — seu sorriso estava tão descontraído como sempre.

Entramos, Jaden colocou a lasanha no congelador.

— Bem, agora tenho que fazer algumas coisas lá em casa, tipo o pudim. — comecei a me despedir.

— Obrigado pela ajuda. — ele agradeceu bagunçando meu cabelo. Sacudi a cabeça e tentei penteá-lo:

— Por que você faz isso? — reclamei. — Fica todo embaraçado.

— Para você ficar assim — ele respondeu rindo.

— Você gosta de me irritar, eh? — dei um soco de leve no braço dele, que continuou rindo. Que braço rígido.

— Eh? Parece uma hispânica — ele continuou a me zoar.

— Vamos parar por aqui, Capitão América. — pedi cruzando os braços. Ele só fez continuar sorrindo. — Certeza de que não precisa mais de ajuda?

— Meus pais vão chegar a tempo de terminarmos o jantar juntos. Se quiserem juntar as duas ceias, estaremos por aqui.

— Tudo bem. Foi boa a manhã.

— Bem louca também. — ele acrescentou.

— Com Ben não sabendo que precisa pré-cozer as massas que não vêm pré-cozidas — lembrei rindo. Jaden riu também.

— Ben sendo Ben.

Ele me acompanhou até a porta.

— Precisando, sabe onde me achar. — lembrei.

— É, eu sei. — ele pareceu não saber bem o que fazer. — Shelly, eu queria...

— Sim? — olhei-o atentamente.

— Eu posso... posso perguntar algo?

— Ah, claro. — concordei.

— Tem uma garota da qual gosto muito, mas eu realmente não sei como dizer isso a ela. O que você faria?

Aquela pergunta me abalou tanto que tive que processar por alguns segundos. Havia uma garota? Como ele nunca me falara dela? Ela era bonita? Normal?

— Ela... parece gostar de você? — balbuciei, tentando contornar minhas emoções.

— Eu fico na dúvida em alguns momentos. Queria muito que sim. — ele respondeu, pensativo.

— Ela é bonita? — indaguei.

— Linda. — Seu suspiro foi espontâneo. — Tem um sorriso tão bonito que de vez em quando gostaria de congelar o tempo e ficar olhando.

— Eu a conheço? — tentei fazer com que a minha voz não saísse estrangulada.

— Não sei. — ele refletiu. — É uma pergunta difícil.

— Você deveria tentar — aconselhei tentando não olhar diretamente para ele, mas sim para a janela da sala da casa. — Sua sinceridade pode conquistá-la.

— Ela não parece ser fácil. Parece meio desiludida. Eu já fui por um tempo e entendo, mas queria fazê-la ver o que sinto e tentar fazê-la mudar de ideia.

— Ela é sortuda.

— Você acha que eu deveria ousar? — ele me olhava de forma curiosa. — Não sei, dar flores?

Pode parecer estranho, mas eu gostava de flores.

— Se você vir que ela gosta de você, você pode até tentar algo a mais.

Droga, por que eu disse isso?

— Sério?

— Só se você notar isso... de forma intensa.

Eu não notei o quanto estávamos próximos até olhar para frente. Seus olhos estavam fixos nos meus e eu podia sentir o cheiro de menta na sua respiração.

— Você parece triste. — Sua voz grave me fez estremecer. — Não gosto de ver você assim.

— Você deveria falar com a garota — sugeri baixinho.

"Você é bem cega para uma vidente de vez em quando", Elizabeth comentou.

Jaden passou a mão pelo meu rosto e me beijou. Sabe quando eu disse que meu cérebro chegava perto de fritar quando surgiam as possibilidades? Bem, ele derreteu, se espalhou pelo meu corpo e voltou para a minha cabeça. Peguei em seus braços definidos, me sentindo eufórica. O seu beijo quente, decidido e ao mesmo tempo cuidadoso me fez sentir no lugar certo. Passei os dedos entre os seus cabelos e o abracei forte. Ele parou de me beijar e olhou para mim, os olhos vidrados e brilhantes.

— Você disse que poderia beija-la se visse o mesmo sentimento. — ele sorriu levemente para mim e não consegui deter o sorriso formando-se em meus lábios. — Você gosta de mim também? Poderíamos... não sei. Ficar juntos?

Estaquei e foi quase como se o tempo estivesse em câmera lenta. Quase, mas não foi. Como eu queria ficar com ele. Como eu queria que todas as minhas expectativas fossem cumpridas.

— Oh, merda, eu conheço esse olhar. — Jaden recuou e eu quase avancei procurando seu abraço. — Você vai me dar o fora.

— Jaden...

— Esqueça que isso aconteceu, ok? Vamos continuar amigos.

— Jaden, o problema não é você. Eu queria tanto ficar com você. Queria ter a coragem para fazer algumas coisas, mas não consigo. Eu não estou pronta ainda, não posso estar com uma pessoa que não me conhece, que não sabe meus problemas.

— Então me diga! — ele quase subiu seu tom de voz. — Por favor, me diz o que te impede de viver!

Segurei um soluço.

— Não é tão simples. — sussurrei.

— Você tem me dito isso desde sempre. — seu tom de voz foi baixo dessa vez.

— Não crie expectativas sobre mim. — minha voz tremia. — Não faça isso com você.

— Eu... é difícil não criar expectativas.

Olhei para ele tentando não chorar. Seus olhos me encaram com incompreensão, o que estava me quebrando como uma marreta batendo em um muro prestes a desabar. Eu queria tanto conseguir contar tudo para ele...

— Desculpe, Jaden, mas agora não dá. Desculpa.

Saí em direção à minha casa antes que eu fizesse algo a mais. Chegando lá, joguei-me no sofá, afundei meu rosto no couro escuro do estofado e chorei, me xingando mentalmente. Ouvi a minha mãe perto de mim:

— Shelly? Shelly, o que foi?

Só continuei chorando, me sentindo idiota.

— Você está me deixando preocupada. — ela tentou chamar a minha atenção, acariciando a minha cabeça.

— Eu vou ficar bem, mãe — consegui dizer em meio aos soluços. — Só me deixe um pouco quieta.

— Mas Shelly...

— Eu lhe direi depois. — murmurei, a frase soando abafada e quebrada pelos soluços. — Por favor, mãe.

— Farei o nosso almoço. O pudim já está no forno.

Ela voltou à cozinha e eu chorei mais um pouco, mas parei depois de algum tempo.

"Estou tão cansada", murmurei mentalmente para Elizabeth.

"Acontece quando você pedala até Chinatown, fica em pé por umas três horas e volta pedalando com um cara de quase 90kg em sua bicicleta", ela alfinetou.

"Não foi bem isso que quis dizer", soltei as palavras lentamente.

Bem, eu deveria me levantar, mas continuei emborcada no sofá, o rosto grudado no couro. Ao lembrar de Jaden, quase chorei de novo.

"Seus sentidos estão distraídos, meio dispersos, meio entorpecidos", Elizabeth me lembrou isso pela milésima vez naquela semana.

"Por que você está me dizendo isso direto?"

"Porque estão. Nem sempre é algo bom".

Deu a impressão de que ela falou algo a mais, porém um sono incontrolável me invadiu devagar e me fez dormir.

Sonhei que estava às margens de uma autoestrada, os carros passando de um lado a outro, a chuva caindo contra o asfalto. Eu conhecia aquela estrada. Era Richmond, pouco antes de Vancouver. Subitamente, um caminhão saindo da cidade com um tanque combustível tenta fazer uma ultrapassagem, porém perde o controle e vira de lado na estrada, a carga desconectando do caminhão. Então, um carro azul veio rápido demais para frear, embora tentasse, e colidiu com a gasolina descarrilhada. Todavia, não era qualquer carro azul; era o Ford azul de Robert. Tudo explodiu.

Acordei em um salto, arfando. Não, aquilo não podia ser naquele dia. Não em plena véspera de Natal.

Elizabeth?”, chamei, começando a entrar em pânico.

Olá”, ela respondeu em sua costumeira educação.

Isso tem chance de acontecer hoje?”, perguntei, cautelosa.

Sim. Na verdade, tem uma chance enorme”. Seu tom de relatório me irritava às vezes, mas dessa vez me preocupou.

Por que você não me disse isso antes?!

Saltei do sofá, me levantando.

Por que você não viu isso antes?

Grunhi, frustrada, e optei por fazer algo. Eu sabia onde era aquela estrada: ao sul, como quem vai aos Estados Unidos. Fazia sentido, eles estavam voltando de lá. Subi a escadaria e troquei de roupa.

— Shelly, para onde você vai? — minha mãe gritou da cozinha ao me ouvir descer a escada.

— Eu volto já, mãe! — respondi antes de fechar a porta.

Saí de lá rapidamente e usando minha bicicleta, procurei lembrar dos caminhos mais rápidos possíveis, tentando, ao mesmo tempo, ligar para Adele ou para Robert, mas os telefones estavam "fora da área de cobertura". Tabarnak.

"Eu amo meu filho, Shelly, mas o perdi", Adele desabafara em um dia em meio às lágrimas.

E ele está prestes a perder você.

— Shelly, você não pode impedir isso — Elizabeth tentou me demover.

— Ah, eu posso sim.

— Não, você não pode.

— Estamos falando dos pais de Jaden! Eles não podem morrer! Não agora que eles se reconciliaram!

Pedalei pelas ruas, peguei os atalhos que pude. Todos aqueles alertas de Elizabeth dizendo que meus sentidos estavam entorpecidos e que eu tinha que relembrar minhas prioridades finalmente fizeram sentido.

"Obrigado por falar com Adele, Shelly", Robert agradeceu quando voltei para casa no dia em que consegui com que eles se reconciliaram. "Não queria ficar sem falar com o meu filho. Ele é uma parte de nós, por mais que seja adotado".

"Verdade", concordei. “Ele precisa de vocês”.

— Você está ficando sem tempo. — a fantasma advertiu.

— Não importa. — sussurrei.

— Shelly, algumas coisas não podem ser evitadas.

— Não importa! — gritei em voz alta.

— Algumas coisas não devem ser evitadas.

— Isso não significa que eu não vou tentar! — fiz com que a minha voz se sobressaísse no trânsito, com algumas pessoas me olhando como se eu fosse louca.

Uma garoa fina começou a bater em meu rosto, junto com o vento frio. Meus pulmões pediam por ar, minhas pernas queimavam. Não posso parar, não posso... tive que parar por uns três minutos graças a uma crise de asma. Quase lá, quase lá...

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The clock ticks life away

A chuva engrossou e me encharcou por completo, mas não desisti. Precisava tentar. Cheguei próximo ao ponto onde teria o acidente. Ótimo, nada... antes que eu concluísse o pensamento, o caminhão de gasolina tentou fazer uma ultrapassagem, perdeu o controle e os pneus deslizaram, fazendo a carga se desconectar. O de Robert vinha logo atrás e por tudo ter sido muito súbito, ele não teve tempo de frear o carro.

Olhei, em choque. Estava tão igual à minha visão... O tanque explodiu e o fogo subiu, o vento fazendo-o dançar, a água caindo, molhando tudo em seu caminho, mas eu não sentia mais aquilo. Não soube dizer se a explosão me deixou surda ou se tudo realmente perdeu o foco, se eu tremia de frio ou de choque. Tudo o que consegui ver foi o fogo queimando carros, lambendo peças, latarias, Adele e Robert presos no carro. Minhas pernas fraquejaram e meus joelhos uniram-se ao asfalto. Meus diálogos com os Pendlebury perpassaram minha mente:

"Sinto falta das suas visitas, Shelly", Adele desabafara no recital.

"Meu garoto precisa de individualidade e sociabilização", Robert afirmara ao me dar carona.

"Sou grato por ter ótimas vizinhas e amigas", Robert dissera no jantar de ação de graças.

"Sou grata pela felicidade que estou vivendo" Adele se abrira naquele jantar.

"Você só se magoa com quem se importa", lembrei-me de Jaden me dizendo isso.

"Shelly, fique de olho nele por mim, sim? Não quero que meu filho tenha algum problema de saúde. Já basta a hipoglicemia. Faça com que ele fique bem", foi o que Adele me pedira no primeiro dia que a visitei depois das revelações, logo após se acalmar de um choro prolongado.

"Espero que você fique bem da próxima vez que vir algo grande em combustão", ouvi a voz de Elizabeth em meus ouvidos.

Minha visão ficou embaçada pelas lágrimas e pela chuva e tudo o que consegui fazer foi ficar quieta, na esperança de tudo sumir e se aquietar se eu ficasse lá, parada. Depois fugi, porque a luz que entrava nos meus olhos, formando aquela imagem pavorosa em minha cabeça, se transformava em dor e culpa.

 

Fim da primeira parte.


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Notas finais do capítulo

Inicialmente: desculpem por fazer esses vacilos, mas enfim, foi como o planejado.
Alguém quer me matar? Provavelmente sim.
Só quero dizer muito obrigada pelos 100 reviews e pelas 2384 visualizações. Sério, vocês me dão muita motivação para continuar essa fic que tenho planejado com todo o amor e cuidado do mundo. O que falar desse povo lindo que eu nem conheço, mas já considero pacas? OBRIGADA, PESSOAS LINDAS!
Como já dito, a fic terá uma pausa e pretendo voltar a postar no fim de março. Não chorem, eu volto.
Críticas, comentários, sugestões, teorias e desabafos abaixo vvvvvvvvvvvvv
Até logo o/



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