Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 32
Parte II - Apreensiva




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Capítulo 31: O som do silêncio 

Elizabeth 

Hello darkness, my old friend 
I've come to talk with you again 
Because a vision softly creeping 
Left its seeds while I was sleeping 
And the vision that was planted in my brain 
Still remains within the sound of silence
(The Sound Of Silence — Simon & Garfunkel)

Aqui estou eu novamente. Achei que deveria aparecer por aqui e acredito ter boas razões para isso. Pode-se dizer que as pessoas não lidam bem com mortes repentinas. Uma hora, você vê a pessoa; em outra, você tem a notícia de que ela já não faz parte do plano dos encarnados. Não é algo que a mente humana compreende ou aceita de imediato, diferentemente do fato súbito que ocorreu. O cérebro pode ser rápido e lento ao mesmo tempo. 

É interessante ver o quanto as pessoas não gostam de ver a morte. É assustador para muitos o desaparecimento inesperado de um grito gutural sobre uma visão de mundo, a essência de um ser escapando, brutal ou suavemente, do seu invólucro canal. Para outros, é motivo de alegria e comemoração, afinal, os mortos vão à um lugar melhor. Outros o acham fascinante a ponto de gostar de fazer isso. Tento enxergar como o fim de um ciclo, algo previsto e determinado a acontecer, embora considere que a minha morte foi completamente inesperada. 

Ah, sim. Preciso narrar os fatos. Fico me perguntando se as pessoas gostam das minhas reflexões, mas prefiro pensar que elas servem para reafirmar algo que René Descartes percebeu: penso, logo existo. 

Depois que Shelly se distanciou do local do acidente, entrou em choque. Saiu andando e guiando sua bicicleta pelas ruas da véspera de Natal, cujas lojas se fechavam, e os transeuntes, ansiosos para voltar às suas respectivas residências, as esvaziavam vagarosamente. 

— Shelly, saia desse estado, você pode fazer isso. — tentei fazê-la me ouvir pela quinta vez, sem sucesso. — Essas coisas acontecem. As pessoas morrem, por mais que seja difícil. 

Seus dedos se apertavam contra o guidom da bicicleta e suas lágrimas se misturavam com a chuva torrencial que caía, lavando a calçada, os telhados e os prédios. Seu rosto pálido e transtornado e seus lábios meio azulados e trêmulos denunciavam seu estado de espírito. Ela não conseguia me ouvir. Shelly se fechara para tão dentro de si que temi por sua sanidade. Eu já vira aquilo acontecer com uma pessoa e senti medo por ela. A chance de ela ficar louca era tão igual a dela não ficar. Torcer por possibilidades era estranho. O fato de elas estarem divididas igualmente era a abertura a novos caminhos e o fechamento de outros.  

— Shelly, me escute. — encostei minha mão em seu ombro e foi o suficiente para sentir todo o seu peso, o quanto ela estava em choque. 

Certo, preciso pensar em alguma coisa rápido. Eu não deveria intervir de forma tão direta, porém não gostava de ser uma mera observadora. Não em casos em que eu podia fazer algo sem ser censurada. Volitei, procurando alguém conhecido. Concentrei-me um pouco e vi as possibilidades, as gotas de chuva quase flutuando no ar, as pessoas em câmera lenta, os reflexos de chances feitas e não feitas aparecendo. Eram tantas possibilidades e tão maravilhosas... é fácil se perder. De repente, vi a presença forte de determinada ameríndia marrenta, um pouco irritada por causa de uma discussão com Ben, afinal ele não a chamou para a casa de Jaden, o fato de ter que sair na chuva e alguns hormônios alterando seu estado natural. Parei de ver as possibilidades e voei atrás de Melinda. 

— Por que você não vai pela rua à esquerda? — sugeri. — Lá não tem aquele chocolate quente? Talvez seja bom para acalmar os ânimos. 

A sugestão foi bem-vinda. Ela não podia me ouvir como Shelly fazia, mas era aberta a sugestões boas. Chocolate sempre é uma boa sugestão. O pedal da bicicleta esbarrou no pé de Melinda e ela praguejou, erguendo seu guarda-chuva: 

— Ei! Olha por onde... — ela se deteve ao ver aqueles cabelos negros colados no corpo franzino familiar. — Shelly?! — Vendo que ela não parou com seus passos trôpegos, a garota com guarda-chuva se colocou em seu caminho: — Ei, Shelly? Está tudo bem? Você está toda molhada. 

Mel tirou as mechas do cabelo do seu rosto e viu que sua amiga tremia. Seus olhos lhe pareceram sem foco e quando ela notou isso, pude sentir toda a sua preocupação. Vez ou outra, parece estranho chama-la de Mel, mas é como se eu a conhecesse, já que ando bastante com Shelly e os Snakes, embora eles não me vejam por razões óbvias. 

— Shelly, algo errado? — Então, a garota encharcada começou a soluçar. — Ei, se acalme. Está tudo bem, certo? Vem, vamos lá em casa. Você precisa se aquecer. Está frio. 

Nenhuma resposta, apenas soluços doídos. Melinda passou a mão por seus ombros e a conduziu até sua casa, preocupada com o estado da sua amiga. A casa estava vazia. Dave fora buscar sua mãe no hospital com seu avô. Melinda rapidamente a empurrou para uma ducha quente. 

— Preciso que você tire sua roupa, está molhada. Tem outras aqui, nessa cadeira, que estão secas. Você acha que pode fazer isso só? — ela concordou com a cabeça e Mel se permitiu um sorriso otimista. — Ótimo. Farei chocolate quente para nós. 

Mel saiu e Shelly ficou um bom tempo sentada no chão do banheiro, encarando o vazio enquanto a água quente lhe caía pelo corpo e pelas roupas, invadindo sua pele. Então, seus pensamentos começaram a ficar embaralhados e confusos e ela fechou os olhos por alguns instantes. Então, os abriu lentamente, parecendo situar-se. Trocou-se e dirigiu-se à cozinha, onde Melinda acabara de colocar o chocolate nas xícaras. Ao vê-la, a ameríndia sorriu amistosamente. 

— Venha tomar chocolate. — ela ofereceu. — Vai lhe fazer bem. 

— O que... O que estou fazendo aqui? — a voz da jovem vidente soou frágil, confusa e baixa. 

— Encontrei você andando sem rumo na rua, parecendo em choque. Acho que aconteceu algo bem grave, não? — Shelly baixou o olhar ao lembrar-se do acidente. — Vamos, sente-se. Vamos conversar aos poucos. 

Shelly sentou-se à mesa, olhando sua caneca de chocolate. Depois, resolveu pegá-la, com os dedos ainda trêmulos e sorveu alguns goles, os lábios finalmente adquirindo alguma cor. 

— Você pode optar por não falar nada, mas eu sou sua amiga. — Mel a lembrou. — Fiquei muito preocupada com você quando a encontrei na rua daquele jeito. 

Shelly suspirou, quase chorando novamente. Baixou a cabeça, entrelaçou os dedos na nuca. 

— Aconteceu algo horrível, horrível... — ela sussurrou de forma quase inaudível. 

— Fique calma, por favor. — Mel sentou-se próximo a ela. 

— Eu tentei evitar, mas não consegui... tanto fogo... 

— O que você não conseguiu evitar? 

— Vi o acidente deles antes que acontecesse. 

— Como assim viu? Quem são eles? — Mel indagou. — Shelly, comece do início. 

— Eu não consegui... Meu Deus, eu não pude fazer nada... — sua voz ameaçava o pranto crescente na garganta. 

— Shhh. — Mel aproximou-se dela e a abraçou. — Está tudo bem agora. — ela pegou novamente a caneca de chocolate, oferecendo-a a Shelly. — Você mal bebeu seu chocolate! Tome. 

— Eu sou uma vidente — Shelly revelou subitamente, a amargura impregnada em suas palavras em conjunto com as lágrimas. — Sou uma vidente que viu o futuro dos pais de Jaden e não conseguiu fazer nada para evitar isso. Para que serve isso, então? Sofrimento para mim e para os que me cercam? Por quê? 

— Shelly, como assim vidente? — Mel parecia não acreditar, colocando a caneca de forma sutil na mesa. 

— Eu vejo o passado e o futuro. Vi o seu passado. Tanta dor... seu pai... eu sinto muito. Sinto muito por não fazer nada, sinto muito... — ela recostou sua cabeça na testa na mesa, levando as mãos à cabeça. Melinda tentou ignorar o calafrio que passou pela sua espinha e o arrepio que fez os pelos do seu braço eriçarem. 

— O que você sabe sobre mim? — a ameríndia indagou cautelosa. 

— Seu pai... foi um monstro que não sabia deter os próprios desejos e impulsos. Vocês sofreram tanto... Ah, meu Deus, Jaden vai sofrer tanto... 

— Jaden? Como assim, Shelly? Pelo amor de Deus, o que houve? 

Não me sobressaltei quando o telefone de Mel tocou: era o número de Jaden. 

— Alô? — a dona do celular atendeu. 

Boa tarde, aqui quem fala é o oficial Müller. Você é parente de Jaden Pendlebury? 

— Sou uma amiga próxima — Mel respondeu prontamente, levantando-se da cadeira onde sentara, a aflição lhe invadindo. — Houve algum problema? 

Poderia se apresentar, por favor? 

— Sou Melinda Callahan. Por favor, poderia me dizer o que houve? — ela repetiu a pergunta, preocupada. 

Infelizmente, os pais dele faleceram em um acidente na rodovia 99, em Richmond, há poucas horas. — A fisionomia de Melinda foi tomada pelo choque advindo pela notícia repentina associado à revelação de sua amiga. — Seu amigo está há quinze minutos trancado no banheiro e precisamos de alguém para tomar alguma providência legal. Uma vizinha está tentando entrar na casa, se apresenta por Mary Ann Revenry. Posso deixa-la entrar? 

— Deve. — a garota respondeu rapidamente. — Ela é amiga da família e vai ajuda-lo nisso. Estarei aí em vinte minutos levando outras pessoas que podem ajudar nisso. 

Obrigado e desculpe pela forma que a notícia foi dada, mas foi necessário

A ligação terminou e Melinda, trêmula, alternava o olhar entre o eletrônico e Shelly, que tentava se controlar, sem muito sucesso. O pensamento da moradora da casa foi tão claro que qualquer espírito presente poderia ouvir com facilidade: “Caramba, o que eu faço agora?” 

— Primeiro: respire e se acalme — sugeri aproximando-se dela, fazendo-a arrepiar-se novamente. — Depois, a acalme. Ela precisa de você. Está frágil agora. 

Aparentemente, minhas palavras surtiram o efeito desejado, pois Melinda, logo após engolir a água predisposta em um copo, aproximou-se de Shelly: 

— Acredito em você, Shelly. — o olhar da vidente voltou-se à sua amiga de forma confusa e Mel aproveitou para mantê-la assim, olhando-a. — Você é mesmo uma vidente, meu Deus, isso é tão inusitado! Esse fato é realmente preocupante e doloroso, mas preciso que você seja forte por enquanto. Todos estarão muito absorvidos pelos problemas que apareceram agora. Eles não lhe entenderiam, não agora. Você terá que confiar em mim e eu confiarei em você. Faremos as coisas darem certo juntas, ok? Como na ponte de macarrão. 

Pontes... pontes são símbolos de paz e de união. Nunca a união foi tão pedida, tanto entre os povos quanto entre o imaterial e o humano. 

— Seguiremos juntas — Mel prosseguiu após breve pausa, segurando as mãos finas e geladas da canadense. — Confie em mim e fique calma. Shelly, você não faz ideia do quanto eu preciso de você calma. Por favor, siga meu pedido e vai dar tudo certo. 

Shelly apenas a abraçou. 

— Obrigada. — ela sussurrou. 

— Você vai ficar bem? 

— Vou tentar. — Seus olhos mostravam sua tristeza e angústia. 

— Ligarei para meu avô. O chocolate já deve estar frio, mas tome. Vai fazer bem, ok? 

Shelly concordou com a cabeça, tentando não pensar enquanto tomava seu chocolate morno distraidamente. Melinda ligou para o seu avô: 

— Vô? 

— Diga, pequena kamama. 

— Jaden está com problemas. Os pais dele sofreram um acidente de trânsito e faleceram. 

Pobre garoto... — Thomas lamentou sinceramente logo após superar a rápida notícia. 

— Minha mãe está muito cansada? 

Houve dias piores. 

— Diga a ela e a Dave que estou indo a Kerrisdale. 

Mas estamos quase chegando... 

— Se puderem, vão para lá assim que puderem, vô. Tchau. 

Mel desligou e respirou fundo. 

— Podemos sair, Shelly? 

— Sim. 

— Vai dar tudo certo, ok? Vamos. 

Elas saíram da casa. 

Enquanto isso, Jaden finalmente saiu do banheiro, pálido e o olhar perdido. 

— Falamos com Melinda Callahan, ela disse que está vindo. Também ligamos para Riley Pendlebury, Clint Harrington, Benners McCarthy e Shelly, a única que não atendeu, o celular estava desligado. — o oficial Müller informou, mas acredito que o garoto não o compreendeu: 

— O que disse? — ele indagou. O oficial repetiu a frase e Jaden apenas assentiu, jogando-se no sofá e passando nervosamente a mão pelos cabelos. — Como... como aconteceu? 

— Foi muito súbito. — o outro policial, cujo sobrenome era Coleman respondeu, penalizado por um jovem perder os pais tão cedo. Ele explicou novamente como o acidente ocorreu. 

— Pegue um copo d’água, querido. — Ann veio da cozinha e sentou-se ao seu lado, afagando suas costas. — Vai acalmá-lo. 

O garoto limitou-se a tomar a água, desorientado, e devolver o copo a Ann. Senti sua dor como um rasgo envenenado feito em sua alma e em seu coração, o sangue jorrando aos borbotões e uma ferida em carne viva. Essa ferida foi uma apunhalada pelas costas e latejava, ardia como fogo, doía.  

Dentro da casa, o silêncio reinava. Embora a casa reagisse a chuva torrencial do lado de fora, com as janelas batendo por causa do vento, suas brechas uivando e o telhado provocando ruído, o silêncio feito entre as quatro pessoas que se encontravam nela era quase nocivo e opressivo, como se o veneno da ferida houvesse se espalhado pelo ar. A morte parece bastante com isso: um veneno gasoso que atinge apenas as pessoas que precisam dele, mas que também surte efeito nas pessoas próximas. 

Onde eu estava? Ah, certo, lembrei. Não demorou para que Clint e Ben chegassem com seus pais. Mel e Shelly entraram pouco tempo depois, seguidas por Carol, Thomas e Dave. Os adultos procuraram resolver algumas pendências legais. 

— Sinto muito, Jaden — Shelly sussurrou, os lábios trêmulos. — De verdade, eu... 

Jaden a abraçou, profundamente abalado. Shelly não sabia exatamente se sentia culpa ou tristeza enquanto a visão agarrada à sua mente a lembrava do seu fracasso. Fecharam-se naquele abraço com desespero, como se pudessem encontrar algum consolo um no outro. 

Todos foram ao necrotério para decidir o que fazer com os restos mortais. O momento de reconhecimento foi um choque que seria desnecessário caso Riley Pendlebury tivesse chegado a tempo para um exame de DNA. Os adultos optaram por não deixar Jaden fazer isso, então Ann o fez. Decidiram deixar os restos mortais em alguma conservação no dia do Natal e resolveram cremar os Pendlebury no dia seguinte. Terminar o que o fogo começou. 

Mel decidiu dividir o quarto com Shelly, embora seus familiares tenham ido para casa. Ben e seus pais foram para casa, assim como Clint e Owen Harrington. Jaden ficou na casa dos Pendlebury com a sua tia, que chegara depois que eles chegaram do necrotério. 

Poucos naquela noite conseguiram dormir: os que o fizeram, não o fizeram bem; os que não alcançaram esse ato de descanso mental e físico limitaram-se a pensar deitados, como Jaden, ou conversar entre si, como Mel e Shelly. Depois de um tempo, todos alcançaram o mesmo resultado: o silêncio sufocante de palavras ditas ou não ditas. 

Acho que já disse tudo o que tinha para dizer sobre a morte e sobre o que aconteceu no restante do dia 24 de dezembro de 2003, o dia que criou cicatrizes e desencadeou possibilidades surpreendentes. 


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Notas finais do capítulo

VOLTEEEEEEEEEEI o/
Meu Deus, que saudade. Espero que ainda esteja todo mundo aqui :D
Desculpem a demora, estava buscando inspiração. Acho que consegui fazer com que ela voltasse aos meus braços.
Críticas, comentários, sugestões, desabafos, correções e comemorações abaixo vvvvvvvvvvvvvvvvv
Até o próximo o/



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