Histórias Intrísecas escrita por Renata


Capítulo 3
Batatas sem gosto e melancolia.


Notas iniciais do capítulo

Demorei, voltei e nem sei o que dizer sobre.



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Eu estava tentando me concentrar no livro que eu tinha acabado de emprestar na biblioteca, mas minha amiga tinha uma ideia bem diferente da minha no momento. Eu já tinha tentado ignorá-la por tempo demais, mas eu não estava me saindo muito bem.

Conheço Melissa desde quando tínhamos quatorze anos, e no momento estou tentando entender o porque de ela estar surtando no meio do pátio da faculdade enquanto podíamos estar apenas desfrutando nosso tempo livre como duas pessoas normais. Ou pelo menos o tanto quanto é possível para duas calouras sem noção nenhuma de como sobreviver ao final do primeiro semestre.

–Você está me escutando Luiza?- Ela estava me encarando com as expressões fechadas enquanto batia os pés na minha frente.

–Tá Okay Mel.-Eu fechei o livro.- Mas será que podemos falar sobre essas coisas bizarras depois?

Dei uma olhada rápida ao nosso redor. Todos pareciam absortos em suas próprias bolhas. Melissa deixou os ombros caírem e voltou a se sentar ao meu lado.

–Você não acredita em mim, né?

Eu dei de ombros. Não me lembrava de Melissa ter me contado alguma coisa que não fosse verdade. E eu inclusive acreditava nela... mas no momento eu preferia poder dizer que não. Eu queria fingir que eu era normal, mas agora com Melissa me contando essas histórias, fica cada vez mais difícil de ser uma jovem adulta comum.

–Vamos pra sua casa, temos o horário livre mesmo. -Eu encarei minha amiga que abriu um sorriso enorme .- Só me deixe comprar alguma coisa pra comer, porque eu não sei se tenho estômago pra enfrentar... Ah, você sabe, seja lá o que você está afirmando que agora se alojou no sua casa.

–Bom, eu acho que podemos comprar alguma coisa no drive-thru.

Assenti e guardei meu livro na mochila.

***

Meia hora depois, eu e Melissa descemos do carro que ela tinha e paramos bem na entrada da casa. Eu segurava um pacote com um lanche completo e sinceramente, minha fome tinha passado e eu estava ficando com um pouco de medo. Eu não sei explicar exatamente porque. Eu não sabia se era de fazer papel de boba, ou de as coisas darem completamente erradas. Olhei com o canto dos olhos para minha amiga. Ela fez uma cara de quem estava nervosa, colocou os cabelos curtos e escuros atrás da orelha e procurou a chave da porta.

Ela entrou antes de mim, e eu troquei o peso do corpo de uma lado para o outro, ainda na soleira, pensando um pouco antes de entrar. Ela jogou a bolsa e as coisas dela no sofá e me conduziu até a cozinha.

Ela me fez sentar numa das cadeiras e abriu um armário, tirando de lá um pacote de cookies cobertos com chocolate. Eu tamborilei meus dedos na mesa, esperando por alguma coisa.

–E então?- Ela disse enquanto mordia um cookie.

–Então o que Mel?

–O que vamos fazer?

–Eu que devia fazer essa pergunta.- Larguei o pacote em cima da mesa ainda intacto.- Você me convenceu de que eu precisava vir até aqui. Eu tenho cara de padre ou qualquer coisa parecida?

–Mas Lu...- Melissa me olhou estranho.- Você é minha melhor amiga. É a primeira que eu devo chamar...E eu tenho certeza que você deve saber o que fazer.

–Pelo amor de Deus.- Eu encarei minha amiga incrédula.- Ainda tenta se convencer disso? Mel, eu estava blefando naquele dia, tá bom?

Minha amiga atacou mais um cookie. Ela estava nervosa. E eu também. Porque eu tinha que ter contado pra ela naquele fatídico dia no primeiro ano do ensino médio que eu podia ver coisas, ah, estranhas? Desde então ela vivia me questionando esporadicamente se eu tinha visto alguma coisa de novo.

E eu tinha. Muitas vezes. Mas eu preferia guardar aquilo pra mim. Geralmente isso não me afetava mesmo. Bom, só quando eu precisei expulsar o monstro que estava vivendo embaixo da minha cama. Mas no final da história até que ele era um cara legal, e às vezes até jogamos xadrez, quando sobra um tempo.

Rolei os olhos e cruzei os braços, ficando em silêncio por alguns minutos. O jeito era esperar, afinal.

Melissa tinha parado de comer os cookies e agora olhava aflita para todos os cantos da cozinha. Ela estava querendo me dizer alguma coisa, mas parecia apreensiva.

–O que é?- Eu disse querendo parecer despreocupada.

–Acho que devíamos ir até lá em cima.

Encarei minha amiga.

–É lá que ele se esconde?

–É. Quer dizer... eu o vi lá. Então é meu palpite.

Resolvi ir conferir, já que eu estava lá mesmo, não custava dar uma vasculhada.

–Eu estou logo atrás de você. - Melissa disse, como se quisesse me passar segurança ou algo do tipo.

Subimos as escadas da casa de minha amiga. A madeira rangia um pouco, o que deixava tudo um pouco sinistro. E eles gostam disso, claro. O corredor do andar de cima estava tranquilo. Resolvi dar uma espiada na sala. As cortinas estavam puxadas, deixando tudo um pouco escuro demais. Suspirei, estava ficando desacreditada.

–Talvez tenha se cansado.

–O que?-Melissa quase engasgou.

–Eles são livres.-Eu disse.- Quer dizer, mais ou menos.

–Mas Lu, eu tenho certeza. Eu não o vi, mas sei que está aqui dentro.

–Como você tem tenta certeza?

–Eu vejo muitos filmes...

Um barulho oco preencheu o cômodo e eu senti meu coração falhar uma batida. Eu e Melissa nos viramos na direção do som e alguma coisa nos atingiu. Melissa começou a gritar e eu fechei os olhos. Uma risada debochada chegou aos meus ouvidos e eu lutei para me livrar do tecido que cobria meu rosto.

–PEDRO!-Berrei furiosa.

Pedro estava vermelho de tanto rir. Melissa tinha os olhos arregalados. E eu estava com vontade de ir embora.

–Vocês tinham que ver as próprias caras.

–O que você está fazendo aqui?-Melissa finalmente questionou o próprio irmão.- Não devia estar na sua aula de resistência de materiais ou alguma coisa assim?

–É, mas não estou. -Ele disse, secando o canto dos olhos.

–Você está matando aula?-Melissa disse indignada.

–Parece que você também.

–Não, não estou.

–Ainda está encucada com aquela historinha?

Eu realmente não estava com muita paciência para ver aqueles dois discutindo. Brigas de irmãos geralmente são cansativas, sem sentido e podem ficar feias em questão de segundos. E conhecendo Melissa e Pedro, já sabia que era perda de tempo esperar que parassem. Desci as escadas concentrada em voltar para meu lanche. Sanduíche de frango grelhado, batatinhas...

Parei na porta da cozinha engoli seco. Aquela sensação esquisita que eu sempre sentia quando eu via alguma coisa que não era normal. E aquilo não era nenhum pouco normal. Tinha um cara comendo minhas batatas fritas. Um cara tristonho, vestido de um jeito antiquado e atacando meu lanche, parecia um jovem recém saído da adolescência. Eu decidi que precisava fazer alguma coisa. E talvez o alguma coisa fosse mandá-lo largar minha comida e sair fora.

–E aí?-Eu disse entrando de vez na cozinha.

O cara tristonho nem me olhou. Apenas continuou comendo como se eu não estivesse ali.

"Ah, qual é."-Pensei.

–Ei amigo.-Eu arrisquei de novo. Será que a gente pode conversar?

O cara fantasma levantou o olhar e me fitou. E isso foi bem bizarro. Ele não dava medo, mas tinha alguma coisa que o fazia parecer um pouco melancólico demais. Um tipo de melancolia que não pertencia a esse mundo. Eu me senti mal, mas decidi continuar.

–Meu nome é Luiza.

O tristonho apenas mordiscou mais uma batatinha.

–Augusto.- Ele disse um tempo depois.

–E então?- Eu comecei.- Como estão as batatinhas?

–Sem gosto.

–Sem gosto?

Augusto balançou a cabeça afirmando. Eu puxei uma cadeira e me sentei a mesa.

–Fantasmas não sentem gosto.

–Por que está aqui?

–Ah... porque eu morri?

–Isso eu sei.- Disse um pouco irritada, estava sem paciência para fantasmas sarcásticos.-Eu quero saber o que faz na casa da minha amiga.

–Eu achei a casa um tanto quanto adequada, então resolvi passar um tempo por aqui.

–Fala sério. Tipo um serviço de hospedagem na casa de estranhos?- Comecei a rir.

–É, mas os anfitriões não são sempre agradáveis.

Me concentrei em ouvir Melissa e Pedro brigando no andar de cima.

–Eles não podem te ver, mas Melissa está convencida de que tem um fantasma na casa... E olha você bem aqui, comendo o meu almoço.

Augusto, o tristonho, largou a batatinha novamente na embalagem.

–Eu nunca fiz isso antes.-Eu disse por fim.

Augusto apenas me encarou sem dizer nada. Ele tinha (tem?) cabelos castanhos bagunçados num ângulo "acabei de acordar", usava um casaco colorido, calças caqui e um tênis estranho. Era anos 80, com certeza.

–Isso o quê?-Ele perguntou finalmente.

–Conversar com...-Interrompi a frase, sem saber o que esperar. Augusto não disse nada, então voltei a falar. -Quer dizer, eu vejo muitos e não só como você. Eu jogo xadrez com um cara que estava morando em baixo da minha cama... tá isso ficou bem estranho.

–Xadrez?

–Ele não bem um cara, eu não sei explicar.

–Eu nunca fiz isso também.

–Ah?

–Conversar com gente igual à você. Apesar de já ter cruzado com muitos.

–Ah, eu não sou a única estranha então, legal...

–É um dom, talvez. Não estranheza.

–É bizarro sim.

Augusto puxou mais uma batatinha.

–E então?- Eu recomecei.- O que pretende fazer agora?

–O que você pretende fazer?

–Olha, eu não faço parte de nenhuma organização religiosa, então eu não vim aqui expulsar você. Eu bem que tive vontade, porque está comendo todo meu lanche, e tipo, ele custou os últimos centavos da minha mesada, e é um saco ser universitária e ainda precisar de mesada... Mas a questão é que precisamos dar um jeito nisso. Acho que eu posso pedir gentilmente que se retire.

Augusto me olhou menos tristonho, ele parecia mais espantado do que qualquer outra coisa.

–Olha, se você quiser conversar sobre tudo isso, eu acho que tudo bem.-Eu nem sabia por qual motivo eu estava oferecendo meu ombro para um fantasma, acho que ele me deixou um pouco tocada com seus olhos tristes.

Augusto me encarou de novo, dessa vez vi outra coisa, algo como confusão. Depois ele olhou de mim para a porta da cozinha e da porta da cozinha pra mim de novo.Eu resolvi dar uma conferida. E lá estavam Melissa e Pedro.

–Lu...-Melissa disse baixinho.

–Ah, pois é galera.-Eu dei um risinho.

Voltei a encarar Augusto, que estava pasmo, o quanto possível para um fantasma. Melissa e Pedro continuaram na porta, sem dizer nada. O fantasma continuou a comer minhas batatinhas.

–Ei!-Pedro disse. -Porque aquelas batatinhas estão flutuando e desaparecendo?

Augusto rolou os olhos.

–Você podia se apresentar para seus hospedeiros.-Eu sussurrei.- Se quiser é claro... Eles são um pouco barulhentos e tudo mais.

–E eles podem me ver?

–Talvez. Acho que se você tiver vontade, eles podem te ver.

Eu não tinha certeza disso.

Augusto fez uma expressão estranha e então Melissa deu um grito histérico. Pedro deu uma cotovelada nela, que devolveu com um tapa na cabeça. Eles estavam com os olhos grudados em Augusto.

–Esse é o Augusto, seu hospede temporário. Ele quer agradecer a estadia e as batatinhas.

O fantasma me encarou, bem menos triste e bem mais estranho.

Melissa deu um pulinho eufórico e depois me puxou pelos ombros. Ela estava tremendo.

–Tá tudo bem.-Eu disse.-Eu acho.

–Então é verdade.- Melissa me olhou. -Você pode mesmo vê-los.

–Bom, vocês também estão olhando pra ele agora.

–Mas só depois de você intervir.

–Mel, acho que resolvemos o problema.

–Bom, ele ainda está aqui, na nossa cozinha. -Pedro disse.

Eu encarei Augusto, que estava melancólico de novo. Eu me levantei, andei até ele e o encarei sem reação.

–A gente pode ir dar uma volta se você quiser.

–Você vai dar uma volta com um fantasma?-Pedro disse incrédulo.

–Augusto.- Melissa disse, brigando com o irmão, mas tão incrédula quanto.

Eu encarei Mel e Pedro. Depois voltei a olhar Augusto. Ele se levantou e me acompanhou até a porta. Saímos da casa e passamos pelo gramado e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, vi com o canto dos olhos Pedro me alcançando e Melissa fechando a porta da casa. Parei no meio do caminho.

–É claro que vamos todos juntos.- Melissa disse alto, correndo pelo gramado.

Eu apenas encarei os três. Melissa estava eufórica, Pedro estava mais silencioso que o costume e Augusto agora estava uma mistura de melancolia e ansiedade. Eu ignorei tudo isso e chutei uma pedrinha no caminho. Eu não podia me atrasar muito, era a coisa do xadrez.

Voltamos a andar.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha ficado pelo menos razoável, haha.



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