Waves of Fate escrita por Lirael


Capítulo 2
Insegurança




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/608139/chapter/2

Soluço afastou o suor da testa com as costas da mão, fazendo uma pausa nas marteladas para mergulhar a peça de metal na água. O vapor subiu quase que instantaneamente, mas nem o barulho do chiado altíssimo conseguia desanuviar sua cabeça. Passara toda a manhã calado e pensativo, trabalhando em um conjunto de ferramentas de arado.

Claro que ele estava feliz. Por muito tempo haviam sido somente ele e Estóico. Sua mãe havia sido morta e Soluço cresceu vendo seu pai manter uma distância respeitosa de outras mulheres. Estóico nunca tivera a intenção de se casar de novo, embora não lhe faltassem pretendentes em Berk e outras ilhas, mulheres jovens e belas que podiam dar-lhe filhos. Mas embora as pessoas se perguntassem o porquê dessa decisão, aqueles quem eram mais próximos a ele sabiam que ninguém jamais ocuparia no coração de Estóico o lugar que antes fora de Valka.

Merida viera. Soluço se casara, e apesar da sugestão de seu pai de construir uma casa separada para eles, Soluço e Merida decidiram por continuar vivendo com Estóico. O líder viking mal pôde disfarçar o alívio com a decisão deles. Nem Merida nem Soluço concordaram em deixar Estóico viver sozinho. E então, Merida anunciara que estava grávida e a notícia encheu sua casa de luz. O clã Haddock, após anos estagnado, finalmente poderia crescer. Seu nome e seu sangue seriam passados adiante. A gravidez de Merida não era apenas uma promessa de vida, mas também de um futuro.

Mas conforme o tempo passava, cresciam os medos e as preocupações de Soluço. Em breve ele seria líder. Seu pai concordara em adiar esse momento para depois da chegada da criança, para que Soluço pudesse acompanhar a gravidez de Merida e cuidar dela. Mas ele fora claro em dizer que não iria esperar nenhum dia a mais. E também havia outra coisa...

– Qual é o problema, Soluço? - Perguntou Bocão, ao notar Soluço encarando uma enxada com um olhar vazio.

– Bocão, eu não posso ter um bebê! - Soluço exclamou, deixando cair a enxada outra vez no barril com água.

O ferreiro franziu as sobrancelhas.

– É claro que não pode. Isso é trabalho de mulher. Francamente, Soluço, eu achei que até mesmo você soubesse disso agora.

Soluço negou com a cabeça, ignorando a brincadeira.

– Você consegue imaginar o que eu faria com um bebê, Bocão? Eu? - ele perguntou, com um olhar suplicante, dando uma ênfase exagerada a última palavra.

Se havia alguém e Berk que poderia compreender o horror daquela ideia era Bocão, que havia testemunhado em primeira mão o caos que as invenções de Soluço haviam causado ao longo dos anos.

–Eu não vou conseguir, Bocão. Meu filho iria acabar louco, ou pensando que é um dragão em vez de uma pessoa, ou...

–Aleijado? - Bocão completou em um tom seco.

Soluço confirmou com a cabeça, não se atrevendo a dar voz aos próprios pensamentos. Perder um membro não era a pior coisa que poderia acontecer, certamente não a um viking, mas nenhum pai queria ver seu filho com uma perna de metal.

– Eu não sei porque todo esse drama. Você tem pelo menos mais cinco meses antes de ter que se preocupar com isso.

– Cinco meses! - Soluço exclamou, com um súbito pânico na voz - Eu tenho que aprender a trocar uma fralda ou como alimentá-lo e segurá-lo e eu nem sei o que mais!

– Você não conseguiu matar nenhum dos bebês dragões até agora. - comentou Bocão, enfiando o braço no barril d'água até o cotovelo para apanhar a enxada, analisando-a em seguida.

– Dragões são diferentes! Eles são resistentes, bebês são todos moles e frágeis.

Bocão bufou.

– Soluço, eu garanto que quando você tiver seu filho você não vai estragar tudo. - Bocão deu uma olhadela em Soluço, parecendo reconsiderar - Tudo bem, você pode estragá-lo um pouco, mas nada para além do reparo. E além disso, você não vai estar sozinho. Você terá Merida, Banguela e seu pai para ajudá-lo. E isso sem contar com Maudie. Ela já ajudou a cuidar do que, três crianças?

– Quatro. - Soluço suspirou. - Merida, Hamish, Hubert e Harris.

– E eles são todos saudáveis, não são?

Soluço concordou com a cabeça, embora não fosse capaz de colocar a mão no fogo pela sanidade dos trigêmeos. Bocão bateu com a mão boa em um balcão, fazendo as ferramentas tilintarem.

– Aí, está vendo só? Você vai ter toda a ajuda que precisar. E seu próprio pai também já criou um filho, não se esqueça disso. Há algo de errado com você agora?

Soluço negou com a cabeça.

– Não estou dizendo que ser pai é uma coisa fácil - advertiu Bocão, lembrando-se das constantes queixas de Estóico a respeito do filho - Mas eu tenho certeza de que, quando chegar a hora, você vai lidar bem com isso, Soluço. Não tenha a menor dúvida. Então, por enquanto, guarde as suas preocupações para coisas mais imediatas, como por exemplo, essa enxada que está torta. - disse e pousou a peça metálica sobre uma bigorna para que Soluço a refizesse.

– Obrigado, Bocão.

O ferreiro respondeu com um aceno de cabeça e se virou para terminar seus afazeres, dando a conversa por encerrada.

____

Astrid derramou um pouco de mel no chá, mexendo-o com uma colher antes de entregá-lo a Merida. Depois, bebericou lentamente, afastando o copo com um suspiro satisfeito.

– Isso está ótimo, Astrid. - Merida elogiou - Obrigada.

– Está, não está? - ela sorriu - É uma das poucas coisas que eu sei fazer. Sou um desastre cozinhando.

Merida sorriu.

– Eu também já fui assim. Mas alguns meses ajudando Maudie na cozinha corrigiram o problema. Se quiser eu peço para ela lhe ensinar. Ela me expulsa toda vez que entro na soleira. Acha que estou inválida só por estar grávida. - Merida franziu o cenho - Não aguento mais! Todos estão me tratando como se eu fosse de vidro! Soluço é irritante, mas Estóico é o pior. Levei quase duas semanas para convencê-lo de que era seguro subir as escadas.

Astrid riu tentando imaginar a cena, mas sabia as motivações de Estóico. Soluço e Merida estavam juntos a quanto tempo? Pouco mais de um ano? E nos primeiros seis meses os dois quase não eram vistos fora de casa, fechados como coelhos na primavera. Ainda assim, Merida demorara demais para engravidar. Talvez fosse apenas coincidência, talvez não.

– Você tomou algum tipo de chá especial para evitar a gravidez, Merida? - Astrid perguntou.

– Na verdade não. Não tomei nada.

– Nem mesmo no início? Quero dizer, na lua de mel?

– Por que está me perguntando isso?

– É possível que Estóico não esteja exagerando. Nunca se perguntou por que demorou tanto para engravidar?

Merida concentrou-se em olhar para o copo, como se pudesse encontrar as respostas que queria ali.

– Olhe. Eu não sei muito sobre essas coisas. Talvez você devesse perguntar a Gothi sobre isso, não sei. Mas você vive em uma ilha cheia de vikings. Só isso deveria ser um motivo para preocupação, mas como agravante ainda temos dragões. - Astrid fez uma pausa, olhando a expressão de Merida passar de pensativa para assustada. Pegou a mão da amiga por cima da mesa, tentando tranquilizá-la. - Eu não quero assustar você. Só acho que não faria mal um pouco de cuidado, pelo menos nos primeiros meses.

Merida assentiu. Se qualquer outra pessoa tivesse dito, Merida teria ignorado. Mas Merida confiava em Astrid e tinha certeza de que ela só queria seu bem. Ela tinha razão. Não faria mal abandonar os vôos em que praticava arco e flecha com Dealan, ou suas constantes explorações de cavernas por um tempo.

– Você já escolheu um nome? - perguntou Astrid, na tentativa de guiar a conversa para um caminho mais alegre.

– Ainda não. Estava pensando em algum nome em gaélico.

– Gaélico? Mas você não pode lhe dar um nome em gaélico! Como vai afastar os gnomos e trolls?

Merida bufou. De todas as crendices vikings, aquela era a que ela mais achava ridícula.

– Eu vou protegê-lo, claro. Meu arco é mais do que suficiente para mantê-los afastados.

– Mas Merida! - protestou Astrid, gesticulando loucamente. - É uma tradição muito antiga e...

– Você parece a minha mãe falando! - Merida cortou. - Não vou chamar meu filho de Espirro ou Dor de Barriga por causa de uma tradição! Além disso, seus pais quebraram as tradições, então tudo bem nomeá-lo de uma forma diferente.

Os olhos de Astrid rolaram nas órbitas, mas ela sabia que aquela discussão já estava perdida.

– O que você acha que será? - Astrid apoiou os cotovelos na mesa, lançando um olhar expectante para a barriga de Merida.

– Acho que será uma menina. Se for, vou chamá-la de Elora.

– O que significa? – a guerreira perguntou, de sobrancelhas franzidas.

– Rainha das fadas.

– Elora. - Astrid disse, olhando para cima enquanto o fazia. - Elora. É bonito, forte. Eu gostei.

– É melhor do que chamá-la de Náusea. - Merida rebateu.

– Já disse ao Soluço?

– Ainda não. Não temos conversado muito. Ele parece sempre preocupado e atarefado, agora.

Astrid assentiu.

– Ele falou comigo sobre isso. Não se preocupe, Merida. Ele só está com um pouco de medo.

– Por que ele teria medo?

– Por que ele não teria? Alguns anos atrás e ninguém acreditava que ele sequer fosse conseguir se casar. E agora ele vai assumir o comando de Berk e ainda por cima ser pai, quase ao mesmo tempo! Quem pode dizer o que passa pela cabeça dele?

____

Já era tarde da noite, mas Soluço ainda não voltara da forja. Merida aproximou as mãos da lareira para aquecê-las, silvando quando Soluço abriu de repente a porta da sala e uma lufada de ar frio a atingiu.

– Desculpe. - ele olhou para ela, desviando os olhos assim que viu sua barriga.

Merida não havia perdido o movimento.

– Maudie fez cordeiro. - Ela comentou, franzindo a testa quando ele apenas assentiu.

– Estou sem fome. Vou tomar um banho e já subo.

– Vou ficar te esperando.

Merida subiu as escadas em direção ao seu quarto. Banguela estava lá, e assim que a viu acendeu o fogo para ela. Merida sorriu. No princípio achou um pouco estranho dividir o quarto com um dragão. Pensou várias vezes em como abordar o assunto com Soluço sem que ele se sentisse mal, mas no fim acabou desistindo. Banguela e Merida ocupavam partes iguais no coração de Soluço. Ele não poderia desistir nem de um, nem de outro. Os dois já se amavam desde muito antes de Merida entrar em suas vidas e mesmo assim Banguela a aceitara de coração aberto. Nunca tivera ciúmes do afeto que Soluço devotava a ela nem disputava o tempo que seu marido gastava com ela. Como ela poderia afastá-lo de sua vida?

Banguela fazia parte dele. Logo, casar-se com Soluço implicava casar-se com o Fúria da Noite. Fazia parte dela também.

Merida ignorou a cama e os lençóis convidativos e sentou-se junto ao dragão, reclinando-se confortavelmente contra ele. Banguela logo iniciou aquele ronronar calmante que ela adorava, e assim, encostada a ele, sentindo o movimento e as vibrações de seu corpo agradavelmente quente contra o dela, Merida teve que lutar para se manter acordada.

– Eu amo você também. - ela confessou baixinho, um pouco hesitante e surpresa com a descoberta. - Sabe disso, não sabe? Sabe que eu te amo?

O Fúria da Noite virou a cabeça para olhar para ela e ao olhar aqueles olhos, Merida soube que ele a entendera. Ela sorriu, inclinando-se para apoiar a testa contra o focinho dele, não antes de deixar um beijo delicado nas escamas. Ficou assim alguns minutos e se afastou outra vez, recostando-se contra ele. O dragão olhou-a nos olhos com uma expressão satisfeita, depois baixou os olhos para a barriga dela. Inclinou a cabeça de lado e ficou algum tempo olhando. Depois, parecendo sonolento, apoiou a cabeça no chão e dormiu, levando Merida para o sono junto com ele.

____

Ela acordou e o quarto estava envolto em trevas. As chamas da lareira tinham se apagado, mas aquecida pelo calor de Banguela ela nem mesmo tinha se dado conta. Ela lançou uma olhadela para a cama e se levantou ao não ver a silhueta de Soluço. Quando chegou à sala, ele ainda estava lá, sentado, encarando as chamas com uma caneca na mão. Nem mesmo a ouviu chegando. Merida aproximou-se e se sentou ao lado dele no catre. Soluço não se moveu. Ela não sabia o que dizer a ele, nem como diria. Sentia-se de certa forma como uma vez, há muito tempo atrás, quando seu pai lhe colocara um passarinho de asa quebrada entre as mãos e lhe pedira para tomar cuidado. Havia tanta fragilidade nele e seu coraçãozinho batia tão rápido sobre a pele dela que Merida sentiu medo de que qualquer movimento seu o matasse. Antes que percebesse, prendeu a respiração.

Ela olhou outra vez para a expressão distante de Soluço. Então, tocou-lhe o rosto, fazendo-o se virar para ela.

– Volte para mim. - ela pediu, esperando que ele se lembrasse.

Aquilo pareceu ser a coisa certa a ser dita. Soluço se lembrou e deu um sorriso fraco, suas mãos envolveram o rosto dela com cuidado. Ele a beijou com uma ternura indescritível, como se tivesse medo que ela quebrasse ou fugisse. Depois, afastou sua boca da dela, descansando de olhos fechados com sua testa unida a dela.

– Eu também estou com medo. - ela confessou, vendo-o abrir os olhos e encará-la com atenção. - Nunca fiz isso antes, preciso de você ao meu lado. Preciso de você todo ao meu lado.

– Me desculpe por me afastar. Eu só estava... - ele fez uma pausa, pensando no que dizer a ela.

– Eu estou aqui para você. - Merida assegurou.

– Eu sei. - ele a beijou na testa. - Estou aqui para você também. - ele disse, pegando sua mão e puxando-a - Vamos dormir.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Perdoem o Soluço, vai. Ser pai é uma responsabilidade imensa. Quem não ficaria assustado?

P.S.: Ah, uma coisinha que o Ricardo Marçal me lembrou: no finalzinho do Wings of Fate eu mencionei meio por cima que a Merida havia feito amizade com um dragão. Assim como em Upside Down, esse dragão é um Skrill e o nome é o mesmo. Simplesmente não consigo imaginar a Merida com outra espécie de dragão que não seja um Skrill...