Crônicas dos Elementais escrita por btfriend


Capítulo 24
Perspectivas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/606609/chapter/24

Sylvie estava sendo escoltada pela cidade. Permanecia de cabeça baixa, ouvindo o tilintar das placas metálicas das vestes dos guardas enquanto tentava desviar dos olhares dos habitantes curiosos. A sensação era de que estava sendo julgada por todos e nem ao menos sabia o motivo. Ela entendia que era apenas por estar cercada por servos do oráculo, e que isso não era algo que via-se todos os dias na cidade, mas, mesmo assim, preferia estar fora daquela situação desagradável.

Teve que sair às pressas deixando seu filho, Trent, em casa. Heather e Mary Ann se ofereceram para arrumar o que havia sobrado do lanche da tarde que fora interrompido. Sylvie, que antes havia sido portadora de boas notícias, estava com um pressentimento de que algo ruim iria acontecer. E, dada as circunstâncias do momento, apenas esperava que não fosse algo envolvendo Tyler.

A caminhada parecia não ter fim. Seus pensamentos tornavam cada passo mais longo e pesado. Apesar de saber onde estava indo, parte dela não queria chegar, mas, quando Sylvie visualizava um grupo de pessoas cochichando, apenas desejava que aquela falsa procissão encontrasse seu destino final. Queria eliminar  a ansiedade de saber o motivo de estar sendo requisitada pelo oráculo, porém o medo de ser algo ruim a dominava.

De repente a marcha foi interrompida. Chegaram.

A construção destoava na cidade. A entrada era formada por colunas antigas com detalhes metálicos brilhosos. Um pequeno corredor construído sobre um teto arqueado apresentava imagens de seres míticos e palavras em diferentes tipos de escritas antigas. O início do corredor era guardado por duas estátuas que assemelhavam-se a grandes leões, que possuíam duas esferas negras reluzentes no lugar dos olhos e já faziam com que muitas pessoas mantivessem certa distância do local. Ao final dele, uma porta de ferro mantinha-se trancada para todas as pessoas corajosas o suficiente que tentassem entrar sem permissão.

Atravessaram o corredor no mesmo ritmo vagaroso que tinham andado pela cidade. Pararam em frente a porta de ferro e permaneceram imóveis durante algum tempo.

— Estamos esperando o que? Não vamos entrar? - perguntou Sylvie impaciente para qualquer um dos guardas que a cercava.

Não houve resposta. O silêncio ainda predominava no recinto. Os guardas não se comunicavam entre si e muito menos esboçavam algum tipo de reação. Aquela ausência de barulho era perturbadora e Sylvie não conseguia imaginar como os guardas conseguiam conviver sem ter nenhum tipo de interação. Não era a toa que muitas pessoas os evitavam.

"Finalmente!", Sylvie pensou aliviada quando escutou um barulho vindo do outro lado da porta, que logo foi aberta. Esperava saber o motivo da sua ida até ali. Esperava, mesmo, escutar alguma coisa que não fosse metal batendo.

Do outro lado da porta encontravam-se duas escadas. A da direita seguia para cima, onde os guardas que a estavam escoltando subiram no mesmo instante que a porta foi aberta. A da esquerda ia para o subsolo e o mesmo guarda que abriu a porta fez sinal que Sylvie o acompanhasse.

O ambiente ali dentro nada parecia com o exterior. Não havia detalhes, nem pinturas. Era um corredor de pedras, com algumas tochas fincadas na parede para não deixar o caminho em plena escuridão.

Em certo momento, o guarda parou e fez outro sinal para Sylvie. Ela, apesar de receosa, entendeu que deveria seguir sozinha a partir dali. Não faltavam muitos degraus e ela já conseguia enxergar uns feixes de luz vindo de uma porta no final da escada.

— Olá, Sylvie. Estava lhe aguardando. - disse uma voz assim que ela atravessou a porta.

O chão estava coberto por uma névoa rasa e fina que estava sendo emanada de um cristal posicionado no centro da sala. Armas e artefatos antigos estavam distribuídos e decorando diferentes estátuas que semicircundavam a gema brilhante central.

Fazendo companhia para Sylvie naquele local somente mais uma pessoa. Um ser baixo, de capuz escuro, que ganhava uma aura sinistra quando combinado a atmosfera em que estava inserido. O oráculo.

— Olá! - respondeu Sylvie sem reação, esperando por algo. - Não querendo desrespeitá-lo, senhor, mas poderia me responder a que se deve minha presença aqui hoje?

— Senhor? - deu uma risadinha e tirou o capuz revelando seu rosto.

O oráculo possuía uma aparência jovial. Sylvie espantou-se e concluiu que deveria ter menos idade que Tyler. Sua cabeça era isenta de cabelo e seus olhos, cor de gelo, parecia penetrar na alma de quem o encarasse por muito tempo.

— Acho que não precisamos de tanta formalidade. Vamos apenas conversar. - disse o menino. - Temos alguns assuntos para serem esclarecidos.

— Temos? - duvidou Sylvie. - Sobre o que?

— Sobre você. - afirmou o oráculo.

— Por essa eu realmente não esperava, mas é só somente mais uma coisa para colocar na lista das coisas inesperadas de hoje. Não é mesmo?

— Certamente, Sylvie. A vida sempre nos surpreende de algum jeito. - concordou. - Tenho certeza que você não esperava que seu filho fosse estar longe de você de maneira tão abrupta.

— Nem eu, nem as outras mães. Elas estão sofrendo tão quanto eu. - respondeu.

— Como eu disse, viemos falar de você. Você saiu de Valmees para uma vida mais pacífica e não foi isso que conseguiu. Ironicamente, o destino deu um jeito de levar sua vida de volta para lá.

— Deixei essa vida para trás. Foi o certo a se fazer no momento. - retrucou Sylvie.

— Existe uma diferença entre seguir em frente e deixar para trás. As pessoas confundem isso. - explicou o oráculo. - Você não pode deixar para trás algo que faz parte da sua essência. Você pode ter vindo para cá, mas nunca deixou seu vilarejo de lado. É obvio que você tem orgulho do que fazia! Do contrário por que exibiria um quadro de uma conquista própria na sua sala?

— É apenas um item de recordação. Lembrança de um tempo distante. - ficou pensativa.

— E por que iria querer lembra-se de algo que quer deixar para trás? Você se acostumou a rotina daqui. É segura, mas confesse que não é o suficiente para você. Tentou acomodar-se passando seus conhecimentos para os jovens. Mas de onde vieram esses conhecimentos?

— Como eu disse, são apenas lembranças. Passado. - Sylvie estava em estado de negação.

— Alguns fantasmas do passado voltam para nos assombrar. E nem sempre isso é uma coisa ruim! Talvez a vida esteja mostrando que você deva repensar alguns aspectos.

— Você está querendo dizer que eu devo voltar para Valmees? Isso não me parece uma opção no momento. Não pretendo voltar ao ponto de partida da minha vida!

— Nem sempre voltar ao início significa retroceder. E sim uma oportunidade de olhar as mesmas circunstâncias sob novas perspectivas.

— Prossiga...

— Todos temos diferentes personificações de nós mesmos dentro da gente. Umas levam mais tempo para amadurecer do que outras. Você criou uma imagem de caçadora no local em que sempre viveu, e precisou dar lugar a Sylvie mãe. - observou enquanto ela assentia com a cabeça. - Depois assumiu a posição de professora e aprendeu a passar suas experiência para outros.

— Um belo resumo superficial da minha vida. Mas disso eu já sabia. - rebateu. - Ainda não entendi onde quer chegar com isso.

— Que mesmo voltando para lá, não significa que exercerá a mesma função de antes. Você pode, mas não precisa. Seu coração continua lá, mas sua mente mudou. Agora é questão de entender como conciliar isso e, no fundo, eu sei que você sabe.

— Eu sei? - ponderou Sylvie.

— Isso somente você poderá dizer, porém entendo que possa ser difícil sair da sua acomodação e saltar em direção ao desconhecido. - repensou. - Especialmente quando o dito desconhecido é mais conhecido do que esperamos.

— Não seria mais fácil você me dar a resposta ao invés de ficar apenas insinuando as coisas? Economizaria o tempo de nós dois.

— Mas é algo que eu não posso fazer. Cabe a você refletir e enxergar tais possibilidades que o destino reserva para você.

— Agora o destino tem algo reservado para mim? - disse cética. - Só falta dizer que existe algum tipo de profecia trágica para mim.

— Todos temos nossas próprias profecias aguardando para serem concretizadas. Umas mais fortes do que outras, mas não menos importantes. - argumentou. - Certas coisas realmente já estão destinadas a acontecer e, mesmo que algo atrapalhe sua realização, a vida dá um jeito de finalizá-las.

— Mais frases. Mais enigmas. Mais coisas para eu pensar. - Sylvie já não sabia em que focar naquilo tudo. - Você pode simplificar as coisas para mim, pelo menos?

— Vou fazer melhor, vou exemplificar para você. Acredito que você esteja sabendo da história de um homem atacado nos arredores de Awalles, certo?

— O tal guarda que foi ferido? Algumas conhecidas ouviram a história de moradores que viram o acontecido a noite e me contaram hoje. Mas, antes disso, eu não estava sabendo.

— As pessoas só enxergam o que querem ver. - suspirou. - Mesmo sabendo que estão numa zona de segurança dentro da cidade, as pessoas ficam na espera que algo possa acontecer a qualquer momento e isso faz com que elas vejam certas coisas que não são tão verdades assim.

— Quer dizer que não teve ninguém atacado? - questionou Sylvie. - Porque eu sei bem que alguns boatos não são verídicos e não me surpreenderia se esse também não fosse.

— Não foi isso que eu quis dizer. - respondeu o oráculo. - Realmente alguém foi atacado e ficou ferido. Duas pessoas, para ser mais exato. Porém nenhuma delas foi um guarda meu.

— E o que isso tem a ver com o fato de acontecimentos específicos estarem destinados a serem concluídos? - lembrou Sylvie.

— Uma das pessoas que foi ferida estava vindo visitar alguém aqui em Awalles. Alguém que não vida há bastante tempo e que precisava dar um recado urgente. - iniciou. - Ao chegar perto da cidade, ele foi atingido por um dardo envenenado e caiu inconsciente.

— E ele está bem? - interrompeu.

— Sim. Por sorte, meus guardas estavam fazendo uma ronda noturna e viram o exato momento em que isso aconteceu e conseguiram atingir o atacante. Trouxemos ambos para cá, por motivos diferentes. - explicou. - Não é de se estranhar que numa noite escura, qualquer pessoa acompanhada dos guardas e entrando aqui fosse confundido com um.

— E quais foram esses motivos? - perguntou curiosa.

— Eu não sabia quem os dois eram e com os dois abatidos, não é fácil extrair uma resposta. Finalmente o atacante acordou e pude conferir isso. Não era uma pessoa de boa índole e isso estava visível nos seus olhos. - de repente os olhos do oráculos ganharam um breve brilho, que logo despareu.

— Então ... - Sylvie fez um gesto com as mãos indicando que ele deveria prosseguir.

— Então eu o mantive preso aqui, esperando o momento certo em que ele seria útil.

— E por algum motivo eu estou acreditando que ele será útil para mim, certo? - e fitou o oráculo por alguns segundos. - Por isso me chamou aqui?

— Também. Eu te falei que queria falar sobre você e estamos falando. E ainda temos mais coisas a ser conversadas.

— Eu apenas não entendi uma coisa nessa história. - indagou Sylvie.

— Pois bem, pergunte.

— Você disse que a pessoa estava vindo visitar alguém, e que esse era o ponto de toda a sua explicação de destino e profecias. - deu de ombros. - Mas, como você sabe disso tudo?

— O veneno do dardo era mais forte do que esperava e ele passou dias ruins. Demorou, e ele finalmente acordou e nos contou o que pretendia fazer aqui.

— Posso saber o que era ou isso é mais uma coisa que eu deva pensar e descobrir sozinha?

— Não vai pensar e nem vai descobrir sozinha. - esclareceu o oráculo enquanto Sylvie adotava uma expressão de confusão. - Eu já te disse as profecias aguardam o momento certo para acontecerem, e acho que essa finaliza aqui.

— Agora até eu já entendi. A pessoa veio me ver. Estou me sentido importante! Mas quem é que quer tanto falar comigo a ponto de colocar a vida em perigo?

— Sou eu...  - disse alguém atrás dela.

Sylvie reconhecia aquela voz, mas algo fazia ela relutar em virar para descobrir se realmente era quem pensava. Congelou em seus próprios pensamentos. Algumas palavras do oráculo começavam a ganhar sentido em sua cabeça. E quando finalmente voltou a si, virou para trás.

A primeira imagem que viu foi o rosto de Tyler, mas não era ele. A semelhança física fazia que Sylvie confundisse a aparência devido a saudade de seu filho. Aos poucos os traços joviais do seu filho foram ganhando aspectos mais maduros, porém não menos familiar. O tempo não havia provocado nenhuma mudança significativa. Continuava sendo aquele que um dia ela amou. Era o pai de seus filhos. Gustav.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Crônicas dos Elementais" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.