Contos de Anthöria escrita por Flávio Trevezani


Capítulo 4
O Senhor do Vale Verde - Parte 01


Notas iniciais do capítulo

Quem conheceu o Velho Senhor do Vale Verde, rabugento e nada receptivo, habitando o pequeno vale longe de toda e qualquer sociedade, detestando qualquer forma de ser que se considere racional e superior, não tem a menor ideia de como e porque ele acabou lá e quem aquele pequenino Ignon é e tudo que ele representa. Por isso, vou começar bem do princípio, sem grandes mistérios e segredos.



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Hucki nasceu saudável e perfeito e como em todos os casos, seus pais prepararam o ritual do chamado como todos os pais Ignons fazem ao terem um filho. O ritual acontece nos primeiros dias de vida da criança, quando essa começa a emanar uma energia mágica especial, perceptível pelos sábios e sensitivos apenas por presenciá-las, mas por aqueles sem a capacidade e sensibilidade, é notado quando plantas começam a florescer no entorno de onde a criança habita e animais se atraem até a região, de forma pacifica e serena, devido à pura e doce energia emanada pelo Ignon ainda bebê.

Assim o ritual foi preparado e tudo seguia devidamente como deveria. Mas em meio ao ritual, algo inusitado aconteceu. Um eclipse solar tornou o dia noite por poucos minutos, e devido ao nervosismo e principio de caos que se iniciou naquele momento, o mestre do ritual não completou seu chamado apropriadamente devido graças ao pânico causado por alguns presentes, uma vez que o ritual do elo duovits era uma cerimônia social para todos aqueles que moravam na região e um evento presenciado por todos.

O ritual trata-se de um canto, onde uma velha canção mágica especial que é cantada pelo velho sábio da cidadela, seguido em coro por todos que a sabem, e uma pequena gota de sangue do recém-nascido é derramada sobre um recipiente contendo a água mais pura de uma nascente, as folhas de uma árvore sagrada, a gota de sangue de seus pais e a gota de sangue dos duovits de seus pais. No momento em que todas as partes haviam se unido, faltava apenas à gota de sangue do recém-nascido, porém, assustados com o eclipse, que por eles era tido como o fechar de olhos do Deus do Sol, que significava que os deuses estavam descontentes com algo sobre a terra e como forma de castigo ausentavam-se privando-os de suas essências mais importantes, como a luz, a água, o calor, a vida. Assim, praticamente todos eles se retesaram a pedir clemência, enquanto alguns corriam em busca de abrigo ou familiares. Entendam, pequenos seres medindo um terço de um humano comum não seriam tão caóticos se os mesmos não possuíssem um elo mental e emocional com feras grandes e poderosas, que ao perceberem o medo e o caos, também ficaram revoltas e assustadas e logo começaram a incitarem batalhas devido a toda situação ali ocorrida. Em meio ao medo e pânico causado pelos mais jovens que nunca haviam presenciado tal circunstâncias, o recipiente foi derrubado, antes que a gota de sangue do rebento pudesse ser adicionada, além de algumas trombadas, mordidas e arranhões entre duovits, aumentando ainda mais a mistura espalhada pelo chão.

Ao eclipse começar a concluir seu processo, o ritual havia sido quebrado e a magia que emanava da criança havia cessado. Em ato de desespero, o pai da criança cortou a mão de seu filho e lançou o sangue da criança, mais que gotas, que é algo que jamais pode acontecer, sobre o elixir do recipiente derramado ao chão as margens da nascente de água cristalinas, que era o local sagrado do ritual do elo duovit. Como em todos os rituais a solução brilhou e emanou uma forte luz, que começou a evaporar, como sempre ocorria nos rituais tradicionais, porém, o passo seguinte seria essa energia mágica se desprender do recipiente e partir pelo ar e pelos céus em busca da criatura escolhida que fosse responder o chamado. Mas essa Luz se expandiu fortemente e finalmente penetrou a terra e escorreu junto ao elixir pelo riacho que surgia da nascente, desaparecendo.

Definitivamente não era isso que deveria acontecer naquele momento e todos se entristeceram, pois o velho sábio, os pais e os demais presentes compreenderam que o ritual havia se perdido e a criança não seria respondida por nenhuma criatura e se tornaria um Anatur. Assim ele recebeu o nome de Hucki, que significa na língua antiga “piscada” ou “fechar de olhos”, que é a forma que são chamados os eclipses pelos antigos.

Hucki cresceu sendo bastante vigiado por todos, afinal, muitos dos quais se amedrontaram e criaram euforia sentiam-se culpados por Hucki ser um anatur. Já os jovens, estes não sentiam culpa e alguns não sentiam pena dele e sim, temiam-no, como um amaldiçoado. Pois no momento de seu ritual os deuses fecharam os olhos, sinal de que estes não tinham gozo sobre ele. E assim ele se tornou um jovem ignon sufocado por muitos e indesejado por outros. Isso fez com que Hucki crescesse um tanto quanto ríspido, pois não queria a pena de ninguém e nem queria ser evitado e odiado como sentia que era pelos jovens de sua idade. Assim ele foi se tornando um ignon afastado, mal humorado com outros Ignons e logo desenvolveu a aversão por comunidade.

Assim que completou sua maioridade, decidiu que sairia da cidadela onde vivia, o que causou reboliço e confusão, afinal, todos sabiam que anatures não podem deixar o meio comum, pois não tinham como se defender de perigos, ameaças, predadores e possíveis ataques e perseguições. Mas mesmo contra a opinião de tudo e todos, inclusive de seus pais, ele resolveu sair da cidadela e mudar-se para um lugar isolado e de difícil acesso, longe de todos e morar sozinho, pois não gostava de gente, apenas dos bichos e da natureza. E no momento que partiu, sentiu em seu coração uma forte atração a um lugar, um lugar que sempre o encantara e trouxera paz e desejo de retornar mais e mais vezes, um vale. Era um vale ao sul da cidadela cortado pelo pequeno riacho que ganhava força ao se encontrar com outros pequenos riachos exatamente dentro do vale, virando um pequeno rio.

O Vale o encantava, pois desde pequeno, quando todos os sufocavam com extrema proteção ou o perseguiam e discriminavam, ele acabava fugindo e por algum motivo acabava indo parar no pequeno vale. Quando finalmente pode sair de casa e montar sua própria casa, ele decidiu ir para o lugar que sempre o acolheu, nos bons e maus momentos e nunca o descriminou ou o tratou de forma diferente por ser um anatur. Assim surgiu o Ignon do vale verde, que com o passar dos anos se tornaria o velho do vale verde, antes mesmo de se tornar velho.

Hucki construiu sua casa nas raízes da maior árvore do vale, como de costume pelos Ignons, no topo de uma pequena colina descampada as margens do pequeno rio que corria no vale. Com o passar dos anos, sua casa foi ficando mais bem acabada e requintada, mesmo que de forma simples. Afinal, o maior prazer de um solitário era indiscutivelmente um belo e aconchegante lar. Como eu já havia explicado, Ignons cuidam da natureza e por isso, animais e criaturas possuem uma grande empatia pelos Ignons e os Ignons por eles. Logo, Hucki não se sentia sozinho, pois, com o passar dos anos, caminhando e desbravando o pequeno Vale Verde, ele passou a conhecer cada canto, segredo e habitante do mesmo. E todas as criaturas que ali habitavam eram suas amigas, claro, com exceção de algumas mal humoradas como ele, na qual ele tinha que tomar cuidado, como a raposa feroz da montanha, que não era típica dali, mas que apareceu há alguns anos, ferida, e ele cuidou dela. Mesmo assim, diferente da maioria das raposas que são medrosas e dóceis de certa forma, a raposa feroz estava mais para lobo do que raposa e era com certeza muito maior que qualquer raposa que havia no vale. Também havia os Malacares, uma espécie de macaco felídeo, uma criatura ágil, esperta e carnívora, um espécime exclusivo da floresta de Mirinthia, que sozinho era possivelmente enfrentado, até mesmo pelo Hucki, que é anatur e não possui duovit, mas eles andam em bando e assim podem ser bem perigosos se ameaçados, mas ele sabia lidar com os Malacar muito bem, ainda mais depois de muitos anos de convivência, apesar do inicio de sua convivência ter sido um tanto quanto tensa e assustadora. E o morador mais temido do Vale verde, o Bangur, um imenso Lagarto que vive nas cavernas do estreito do vale, que de tão grande era confundido com um dragão e passou a ser chamado de dragão sem asas. Uma criatura grande, feroz e muito poderosa, mas que dificilmente sai de seu território, então é um problema fácil de ser contornado na opinião dele.

Além de muitas outras criaturas que ali habitavam como coelhos, pequenos roedores, pássaros de vários tipos, cores e tamanhos. Espécimes de cervos e inclusive o raro cervo de galhada brilhante. Dizem que a galhada deste cervo tem o poder de curar qualquer enfermidade, por isso muitos caçadores de outras raças o procuram ferozmente, mas ali, no âmago de Mirinthia, nenhum dominante conseguiria chegar. Além de ser um local longínquo e isolado, há muitos perigos no caminho até chegar ali, por isso tantas criaturas habitam o coração de Mirinthia, pois a floresta possui uma magia natural viva poderosa, que dota muitas criaturas e até a própria floresta de poderes, tornando o lugar perigoso e mortal para aqueles que desejam desbravá-la e possuem más intenções.

E assim eram os dias de Hucki no Vale Verde, cuidar das pequenas criaturas que precisavam de sua ajuda. Algum bicho de árvore que ficava preso em algum buraco de tronco ou em algum galho alto de mais. Tentar cuidar de árvores danificadas após tempestades, acompanhar futuras mamães em seus partos e auxiliá-las durante os primeiros dias de vida de seus bebês. Evitar rixas muito tensas e destruidoras entre os machos grandes como os porcos do mato, os cervos de galhada brilhante ou os grandes pássaros migratórios no período das cheias. Sua vida era cuidar de seu Jardim e sua horta, pois Hucki cultivava tudo que comia, porque Ignons são vegetarianos, como todo bom e velho Ignon, mesmo ele nem sendo tão velho assim, mas era chamado desde novo de o velho solitário do vale verde, por viver como um ermitão solitário.

Às vezes fazia um móvel novo para sua casa com galhos que quebravam e caiam das grandes árvores da floresta, dando um ar cada vez mais aconchegante a seu lar. Uma toca grande nas raízes da Imensa Amoreira selvagem. Sua casa era feita de um grande salão principal, onde ficava sua cozinha e sala de estar, ao fundo, atrás de uma raiz que delimitava o espaço, ficava seu quarto, com uma aconchegante cama de palha e uma pequena abertura que dava para ver o céu e o tempo lá fora. Ele também construía vasilhames de argíla que ele queimava em seu forno nos fundos da árvore, um forno feito dentro de um buraco na pedra, para ajudar a assar o barro e evitar queimadas.

Hucki tinha uma bela casa e qualquer visitante adoraria ser recebido nela, pena que ele não recebia ninguém. Claro, havia pouquíssimas exceções, dentre elas, sua mãe que o visitava com frequência. Apesar de não aparentar, Xexalur, mãe de Hucki, não era tão jovem, pois o teve já bem madura, afinal quando os Ignons fazem a sua jornada pelo mundo, alguns exploram apenas os limites da floresta de Mirinthia, outros por sua vez desejam desbravar o grande continente, havendo até aqueles que cruzam os mares, coisa muito incomum e aterrorizante para um Ignon. Sua mãe e seu pai se conheceram ainda jovens, antes de partirem para suas jornadas e prometeram se casar após retornarem desta. Ela fez uma longa jornada e quando retornou ainda esperou alguns anos por seu pai, que finalmente retornou após ter alcançado o Irankur. Por isso ela não era tão jovem, mesmo os Ignons aparentando muito pouco a idade, ir até o vale verde não era uma tarefa muito fácil para ela. Por sorte, ela possuía Racul, seu duovits cervo de cara Azul, um cervo tão grande e forte quanto um cavalo, que a ajudava nessa pequena viagem de visita.

Vou aproveitar esse momento e frisar algo importante. Entendam que um duovit não é um animal de estimação ou meio de transporte. O duovit é uma extensão do ser de um Ignon, eles estão ligados por um elo mágico muito forte, ao ponto de saberem o que o outro está sentindo, podendo sentir seus medos, angustias, dores e alegrias. Logo, o duovit é um parceiro, um companheiro visto de igual para igual e montar em seu duovit é algo que demonstra desrespeito, quando isso é feito por mero capricho. Logo montar em seu duovit, que geralmente é muito maior e serve perfeitamente como montaria, só é aceitável em casos de necessidade, emergência ou desejável por ambas as partes e acreditem, poucas criaturas gostam de serem montadas. Por isso é, até de alguma forma, vergonhoso ser visto montando seu duovit, como sinônimo de fraqueza ou velhice, que no caso de idosos, é completamente aceitável. E sabendo que uma vez que a criatura aceita o chamado de duovit, ela passa a ter uma vida e juventude muito maior e longânime que teria como uma fera selvagem, vivendo tanto quanto seu parceiro Ignon e com maior jovialidade e virilidade, por isso Racul continua o mesmo cervo de cara azul forte e dócil de que Hucki se recorda de criança.

Sua mãe sempre o visita quando possível e trás junto a ela algumas coisas da cidadela, como Mantas e cobertores para protegê-lo do inverno que se aproxima, ervas e condimentos que não podem ser cultivados por ali e suas comidas favoritas. Essa é uma das poucas vezes que ele fica realmente feliz em ver outro Ignon. Além de sua mãe, existe outra pessoa que o visita e que lhe causa agradabilidade. Você deve estar pensando que este é seu pai, mas seu pai nunca o visitou desde que ele saiu de casa para morar no vale verde sozinho. Isso porque esta saída foi contra sua vontade e um tanto quanto tortuosa, apesar de Hucki sempre ter a visita de Macalure, o urso magro de seu pai. Ele sempre ronda sua casa e o vale, buscando vistoriar como as coisas estão, possíveis perigos e notícias de Hucki, com certeza, o que prova que seu pai vai ao vale, afinal, Ignon e Duovits não se distanciam muito um do outro, mas ele nunca apareceu para lhe dar um oi apenas sequer. De qualquer forma, a pessoa que também o visita e lhe causa, como posso dizer, satisfação ao menos é Balramar, o Chefe da Cidadela onde ele cresceu e o Ancião responsável por seu ritual não ocorrido no fim das contas. Balramar, sempre o visita quando as obrigações de Chefe lhe permitem ausentar-se.

A visita do Chefe Balramar e de sua mãe sempre lhe rendem conversas, notícias do povo, que mesmo ele dizendo não ter menor interesse, gosta de saber dos novos enlaces, dos novos nascidos e das partidas daqueles que um dia foram, mesmo de forma exagerada e sufocante, gentis com ele. De toda forma, com exceção de sua mãe e o velho ancião, visita de qualquer outro ignon nunca é bem vinda e às vezes acontece. E em alguns casos, quando é proveniente da curiosidade dos jovens ignons que buscam ver o velho rabugento que habita solitário o vale verde, ele sempre proporciona uma visita inesquecível, com ajuda de seus amigos animais do vale, com direito a perseguição, correrias, fugas, medo e quedas por ladeiras e dentro de riachos. Não que ele queira machucar ninguém, mas gosta de manter curiosos distantes, porque não é apenas por ele não gostar de visitas indesejadas, mas porque os animais também não gostam de visitas indesejadas e ele gosta dos animais. E eles tem isso em comum.

Você deve estar se perguntando como ele consegue fazer os animais obedecerem ele, certo? Na verdade, todo ignon tem certo poder de entender e se fazer entender com alguns animais, mas nada muito além de como você e sua mascote interagem. Mas realmente, Hucki e os animais do vale possuem um elo muito além disso, ao ponto destes sempre o ajudarem a colocar pra correr visitantes indesejados e ele ser capaz de entender, onde até mesmo ele não entende muito bem como, o que os moradores do vale precisam, desejam ou buscam. Assim ele vive harmoniosamente com os moradores legítimos do Vale e consecutivamente eles aceitam e convivem bem com ele.

Esse convívio é algo bastante próximo, ao ponto dele saber o nome de cada criatura que ali habita. Mais uma vez, você deve estar se perguntando, como ele sabe o nome das criaturas, certo? Pois bem, assim como nós, cada criatura tem um tom, um timbre e uma vibração especifica ao som que produz, seja guincho, coaxar, canto, pio, relincho, latido, miado ou que for. E, acredita Hucki, que devido ao longo convívio com tais criaturas, ele já consegue distinguir quando alguma criatura chama outra, desta forma ele traduziu, se é que podemos dizer assim, o nome de cada uma, para facilitar o convívio. Mas às vezes ele acha simplesmente que viver isolado o está levando a insanidade e nada passa de fruto de sua imaginação. De uma forma ou de outra, é assim que ele vive, e muito bem, com os habitantes do vale.


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