O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 44
Saudades de um tempo feliz.




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Sem saber, acabei me acovardando novamente, pois quando uma criança necessita ir a um psicólogo, geralmente os pais e pessoas muito próximas, como era o meu caso, costumam ser entrevistadas primeiro, só depois a criança é levada a esse profissional. Eu, porém, parecendo criança manhosa, devido os acontecimentos acabei por me afastar do menino e nem mesmo telefonei para saber as novidades em relação a esse tratamento.

Uma semana depois, segui para São João da Boa Vista, aonde adquiri uma casa simples na Vila Brasil e em Setembro daquele mesmo ano, mudei-me em definitivo para aquela cidade, aonde já havia morado antes.

Não sei qual foi o acordo que Regis fez com seu pai e equipe, mas felizmente, seguindo muitos conselhos, ele resolveu continuar sua carreira com o mesmo sucesso e fama de sempre. O professor João Alberto, depois de falar com a equipe, com Regis e inclusive comigo, acabou concordando com a função, que até então sempre fora minha.

Como o menino sempre teve o sonho de se apresentar em sua cidade natal, fora marcado um show especial no dia trinta e um de Dezembro daquele ano, no recinto de exposições, onde todo ano, se realiza no mês de Julho a famosa EAPIC (exposição agropecuária, industrial e comercial de São João da Boa Vista).

Coincidindo com o réveillon, a prefeitura aproveitou para presentear os munícipes, cobrando a metade do valor do ingresso e ainda, após o show, uma grande queima de fogos. Portanto, o show de Regis, que também se intitulou “A festa de agradecimento”, iniciou-se às vinte horas, com a apresentação de diversos artistas regionais, e as vinte e duas horas, com meu amigo Regis, o qual não via desde Agosto passado.

O recinto de exposições contava com mais de trinta mil pessoas, de São João e região e embora Regis não soubesse, eu também fazia presente entre a multidão.

Devido à queima de fogos que aconteceria as zero hora, o show não poderia atrasar e como prometido por Regis há muito tempo, Dennis, o garotinho cantor de Poços de Caldas, estivera entre os convidados e cantara com ele duas músicas: “Saudade da minha terra” e “Caminheiro” (páginas 173 e 167), além de ter se apresentado entre os artistas regionais.

O show seguia normal, idêntico ao realizado em Penápolis, porém, entre tantas, ele anunciou a música:

— De meu amigo Willian Gustavo, vai maestro: “O trombadinha” .

Assim que a canção se encerrou, ele fez uma pausa de uns dez segundos e emocionado prosseguiu:

— Peço licença a todos pra prestar uma homenagem a uma pessoa. Quando eu tinha apenas seis anos de idade, conheci um amigo que me acompanharia por muito tempo. Na época começava meu grande sonho, um dia ser um grande cantor. E este amigo me ajudou, me ensinou a tocar e a cantar. Caminhou a meu lado passo a passo. Batalhamos e sofremos juntos. Em pouco tempo... pouquíssimo mesmo, conseguimos juntos gravar meu primeiro disco. Graças ao ótimo trabalho de uma gravadora de qualidade e a aceitação de vocês, meus amigos do Brasil, consegui conquistar sucesso e subir ao auge já neste primeiro disco. Em muito pouco tempo, de menino pobre e desconhecido daqui de São João da Boa Vista, morando atrás da cooperativa, me tornei rico e um dos mais conhecidos do Brasil. Esse amigo continuava a meu lado. Certo dia, capturado por pessoas de má índole, me vi preso no inferno, onde fui espancado e maltratado como um trapo humano. (Regis sentia lágrimas) Numa tarde, em tentativa de resgate pela polícia, um daqueles homens, maldosamente, cravou um punhal sobre meu peito, que atravessou meu coração. Esse amigo estava com a polícia... (ele chorava e eu também) e desesperado... sem saber como agir corretamente, em ato de desespero puxou o punhal. Viemos saber depois, que esta atitude errônea, foi um dos fatos que talvez tenha salvo minha vida… Em sala de cirurgia lá no Incor, eu deixei essa vida e fui me haver com Deus, mas não o vi; pois um de seus anjos me disse... Você tem que voltar, pois sua hora ainda não chegou. Eu assisti a minha cirurgia e vi que além dos médicos da equipe do doutor Marcio Hernandes, havia outro médico, invisível aos demais. Voltei à vida pra ser honesto… O amigo que tanto me ajudou, fazia parte de minha equipe de festas, mas o destino cruel nos jogou cada um pra um lado; por isto, em minhas festas, peço um minuto de permissão, para render-lhe uma grata homenagem. Meu amigo Willian Gustavo, onde você estiver que Deus Pai lhe proteja e o abençoe sempre. Saiba que aqui dentro de meu peito, bate um coração de gratidão e saudades. Esta música vai pela voz do vento até onde você estiver. Escrita em sua homenagem, por um de seus amigos de sua saudosa infância. De José Fernandes: “Meu amigo”.

Meu amigo fez uma casinha no canto da serra

Pra ir com seus filhos e nos fins de semana

Levar seus amigos para passear.

Meu amigo é homem de paz, não pensa em guerra

Hoje está colhendo em sua nova terra

Dias felizes naquele lugar.

Meu amigo na cidade grande fez muito sucesso

Trabalhou bastante, alavancou o progresso

E deu ao Brasil sua contribuição.

Se os homens fossem com ele tudo mudaria

E o mundo certamente reconheceria

Em nosso país uma grande nação.

Refrão

Já não anda tanto como antes

Tem mais tempo com sua família

Pode passear com sua esposa

E curtir seus filhos e a filha.

A tardinha tem vinho do bom

Pão caseiro no amanhecer

O almoço regado as semente e frutos da terra......

Que delícia isso que é viver.

— Esta é de sua autoria, título de meu terceiro disco: “Lágrimas de Artista”.

Todas as pessoas que agora me veem cantando

Julgam as vezes que sou feliz em meu lar

Elas não sabem que escondo o meu pranto

Preste atenção, minha história vou contar.

Sou uma criança e não tenho nenhum prazer

Mesmo cantando só me faz recordar

Que meu papai querido só vive bebendo

Embriagado e não pode me ajudar.

Antes de entrar no palco choro atrás das cortinas

Sempre cercado por estranhos com muito ardor

Foi meu papai que me deu este destino

E hoje em dia só me causa muita dor

Não respeitando minha idade de criança

E isso tudo prejudica meu pudor

Com a bebida e outro ser maligno

Só me maltrata e alega ser amor.

A Deus do Céu quero pedir cantando.

Uma benção que Ele possa me ajudar

Pra meu papai se lembrar de mim

E nunca mais ele se embriagar

Nem que precise a carreira eu abandonar

Mas quero de meu papai a proteção

Então seria a criança mais feliz do mundo

Nunca mais sofreria meu coração.

Eu estava parado, muito emocionado pela gratidão com que este meu amiguinho ainda conservava por mim.

Desculpe-me considerá-lo amiguinho; é que eu ainda o via frágil como uma criança pequena. Embora, no fundo soubesse que ele era o homem mais forte, o qual conheci na vida

Naquela noite, havia ido a seu show como mero espectador e não tinha a intenção em encontrá-lo, apesar de não acreditar que a saudade me deixasse resistir; e não deixou mesmo! Assim que ouvi sua linda homenagem mudei de ideia. Com isto, quase ao final de sua apresentação, cheguei até a porta de seu camarim, apresentei a dois seguranças fortes, minha credencial de músico da Sicam, eles me anunciaram ao professor João Alberto, que me recebeu com abraço e carinho, depois me colocou sentado em uma poltrona do bonito camarim, preparado para Regis, pela organização do evento de exposições.

Tornei a me levantar e fui prestar atenção às escondidas entre as cortinas, quando ele ainda encerrava sua festa:

— Encerrando esta última festa do ano, com uma linda música de meu amigo Cido Malta que pede a benção e a união da família, muitas vezes destroçada pela presença e prioridade da tevê dentro do lar sagrado.

E cantou tão bonito e emocionante como todas a música de Cido Malta, Família:

Minha família é feita de amor

A semente brotada brotou

E o jardim da esperança floriu

E a essência do amor se espalhou

E ninguém é melhor que ninguém

Um por todos e todos por um

Sem receita de comportamentos

Somos uma família comum

A família é a base de tudo

A família é o eixo do mundo

Sem ela não sou ninguém

Sem ela não vivo também.

Minha família é como outra qualquer

Bem igual a de Nazaré

Com suas lutas, suas idas e vindas.

Mas perseverante na fé.

E o coração é para amar

E as mãos para partilhar

E os caminhos da perseverança

De mãos dadas nós vamos trilhar.

A família é a base de tudo...

Exatamente cinco minutos antes das zero horas, Regis encerrou sua linda apresentação, comentando sobre a queima de fogos e da contagem regressiva para o novo ano, que se daria pelo locutor da rádio e então seguiu para o camarim. O professor, alegando que aquele momento teria que ser só meu, me deixou sozinho para esperá-lo. Levantei-me e aguardei por sua chegada com o coração ansioso. Ele, ao entrar todo suado e a me ver, parou na porta de entrada, permaneceu muito sério; então me aproximei, estendendo-lhe a mão, dizendo apenas:

— Regis!

— Não vou lhe dar minha mão! — negou ele sério. — Você me abandonou…

— Regis! Eu…

Abriu um lindo sorriso, correu me abraçando e dizendo:

— Você desapareceu! Esqueceu que eu te amo?

Não soube dizer nada; mas aquele encontro, aquele abraço sincero, parecia um presente dos céus.

— Achava que você tinha se mudado para Penápolis! — disse-me.

— Mudei pra cá! — disse-lhe com lágrimas.

— Por quê? Nem mesmo se despediu de mim!

— No dia da reunião fui a seu quarto, mas você estava dormindo! Achei melhor me afastar um pouco... deixar você crescer. Mas não foi fácil! Você pra mim é o filho que nunca tive!

— Sou o filho que você tem!

— Obrigado por falar assim!

— Você disse que mora aqui?

— Moro.

— Posso dormir em sua casa?

— É o melhor presente do mundo! — insinuei rindo e emocionado ao mesmo tempo.

— Você se esqueceu de que se torna responsável por aquilo que cativa?

— Essa eu sei! Do livro “O pequeno príncipe”!

— E olha que foi a voz da raposa! — concluiu ele. — Você me cativou aos seis anos de idade! Não pode me abandonar!

Após cumprimentar os músicos e ter o consentimento de todos, Regis foi comigo para minha casa, que nem mesmo era longe do recinto.

— Só que estou a pé! — informei-lhe.

— Está pobre!? — brincou ele.

— Desempregado — brinquei. Depois corrigi. — Moro aqui perto!

— Então vou a pé com você!

A equipe de Regis deveria sair do hotel por volta das onze horas da manhã seguinte, com destino à São Paulo e se prontificaram a apanhá-lo em minha casa, então, enquanto lá fora havia a prometida queima de fogos, ele, como era ótimo em despistar seus fãs, denominados amigos, despiu-se daquelas vestes de apresentação, vestiu um velho short, camiseta e tênis, saiu por baixo do palco e aproveitando a escuridão do local, comigo se misturou entre a multidão, sem ser reconhecido por ninguém e juntos seguimos para minha casa, que ficava a aproximadamente seiscentos metros de distância.

Já em casa, preparamos juntos um lanche com leite e Nescau, que ele devorou rapidamente.

— É dia de ano! — o lembrou. — Não vai estourar nenhum champanhe?

— Pra ser sincero, nem tenho!

Fazendo uso de uma escova de dentes nova, escovou seus dentes e passamos conversando na sala até as duas horas da manhã, então fomos dormir, em duas camas de solteiro, que tinha comigo desde que mudara para São Paulo com ele. Ao deitar-se, ele ainda alegou:

— Saudade desta minha caminha confortável!

Levantei-me às oito horas da manhã seguinte. Às nove horas, apesar de feriado, chegou Orzila, que trabalhava comigo e que eu a considerava como segunda mãe, desde que voltara de mudança para São João.

— Nós temos uma visita— disse a ela.

— Quem é?

— Ainda está dormindo.

— É Regis? — perguntou-me ela.

Era incrível como aquela mulher sabia das coisas. Como ela poderia adivinhar em cheio quem seria a tal visita? Tudo bem que havia muitas pistas: eu era amigo próximo de Regis; ele fizera show em São João na noite passada; fazia tempo que não nos encontrávamos…

Ele só acordou, chamado por mim, às dez horas, onde fui até sua cama e chacoalhei-o, dizendo:

— Acorde! Daqui a pouco seu pessoal virá buscá-lo e a gente nem conversou.

Ele se espreguiçou e com cara de sono perguntou:

— Que horas são?

— Dez horas.

Levantou-se apressado, arrumou a cama como de costume, vestiu o short e foi ao banheiro. Retornei à sala.

Dez minutos depois, apresentei-o a Orzila. Ele a abraçou como se a conhecesse há muito tempo, perguntando:

— A senhora cuida de Willian?

— Cuido! — disse ela rindo. — E olha que esse menino dá trabalho!

— Eu sei! — riu ele.

Sentamos na sala, onde ele me disse triste.

— Willian, você precisa voltar a trabalhar conosco!

— Quem sabe, Regis! — aleguei também triste. — Vamos dar um tempo!

— Mais tempo? Nossa equipe não é mais a mesma sem você! Não consigo ser feliz, sabendo que estou sendo injusto com alguém!

— Você não está sendo injusto comigo! Realmente sinto falta de trabalhar na equipe. Mas injusto você não é!

— Qualquer hora eu abandono tudo!

— Não faça isso! Aí sim eu ficarei triste! Depois, só a homenagem que você fez pra mim durante o show, paga tudo o que fizemos juntos.

— Por que precisa ser assim?

— Se você der só uma palavrinha em meu nome em cada show seu, já me sinto recompensado.

— Isso não significa nada! — disse ele, tristemente.

— Significa que você se lembra de mim!

— Em cada show, eu menciono esta mesma homenagem. É o mínimo que devo fazer…

— Já me sinto recompensado!

— Sente nada! — negou ele. — Você está sofrendo ausente de nosso trabalho juntos! Eu também não sou feliz! A gente é um bicho bobo, que faz manha, se sentindo vítima e se acomoda, esperando que tudo se resolva por si próprio, quando na verdade deveria gritar... protestar... Porque não vai se resolver sem luta! Meu pai não é o dono do mundo! Nem em mim ele manda!

Eu nem sabia o que dizer, mas sabia que ele tinha razão.

— Não pode ser assim! — continuou ele, como se ele fosse o adulto e eu a criança. — Eu estou sozinho com minha equipe, sabendo que você deveria estar lá, você está ocioso aqui, sabendo que queria estar lá. A gente vai dando um tempo ao tempo! Só que este tempo está passando e ele não volta mais!

Exatamente às onze horas, o grande ônibus azul parou em frente de casa. Era hora da despedida. E que triste esta despedida. Parecia que eu tinha ciúmes de Regis. Não gostava que outros cuidassem daquilo que conquistamos juntos e principalmente, depois do triste episódio que quase o levou à morte. Mais do que me sentir realmente culpado, como insistia o senhor Pedro, me sentia mesmo que deveria estar com ele para protegê-lo, pois para mim, ele me parecia frágil e muito exposto. Sei que na verdade ele era muito forte; mais forte do que eu.

A maioria de meus vizinhos, que até então não sabiam de sua presença, correram para vê-lo. Dois seguranças desceram do ônibus para escoltá-lo, mas em gesto de menino humilde, ele pediu permissão e correspondeu com muito carinho, cumprimentando e até abraçando a maioria das pessoas, enquanto eu adentrei ao ônibus, para me despedir dos demais componentes de sua equipe.

A última pessoa que me despedi, antes do motorista que havia descido, foi Pinduca:

— Cuide bem desse menino — disse-lhe emocionado. — Ele é dom de Deus!

— A gente sabe disso! — respondeu o músico. — E ele te ama muito! No coração dele ninguém substituirá você, jamais!

Regis subiu no ônibus, antes que eu tivesse descido e então tornamos a nos despedir; na saída, me despedi do motorista, desci, a porta se fechou e eles partiram.

Aquele resto de domingo, primeiro dia de Janeiro de um mil novecentos e oitenta e quatro, não teve mais nenhuma beleza para mim. Apesar da alegria em tê-lo reencontrado, houve a tristeza em vê-lo partir. Era como um filho, que sai de casa para sempre, muito antes da hora.

O clip da música "Meu Amigo" no voz de seu verdadeiro autor.


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Notas finais do capítulo

A música "Meu Amigo" acima foi escrita em minha homenagem. Não é homenagem a Willian e sim a mim mesmo, Celso Innocente por José Fernandes. Quanta honra.
ASSISTA-O por favor.



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